Rembrandt, O Filósofo Meditando, 1632
(Capa de "O bicho da terra")
Leio
o livro “Um bicho da terra” com o pensamento fixo no “bicho da terra tão pequeno” de que falou Camões n’
Os Lusíadas, numa passagem dramática,
de grande humanidade, que se refere à nossa condição humana solitária, precária,
indefesa perante as adversidades da vida, causadas pela força negativa dos
elementos da Natureza, pela agressão do mundo dos outros, pela indiferença dos
deuses e dos céus que nos contemplam (ou não) lá do alto.
“Ó
caminho da vida nunca certo,
Que
aonde a gente põe sua esperança,
tenha
a vida tão pouca segurança!
….
Onde
pode acolher-se um fraco humano,
Onde
terá segura a curta vida
Que
não se arme, e se indigne o Céu sereno
Contra
um bicho da terra tão pequeno?”
(Canto
I, estâncias 105-106)
No
romance, o “bicho da terra” é o judeu converso Uriel da Costa em cuja figura Agustina
Bessa Luís pega magistralmente.
Confesso
que comecei o livro imaginando: “será que
sou capaz de o levar até ao fim?” Não porque ponha em dúvida a qualidade literária
da escritora e, muito pelo contrário, reconheço-a,
porque tem livros que nunca esquecerei: A
Sibila, Os Incuráveis, ou O Susto, Ternos
Guerreiros, O Manto, ou Fanny Owen.
Sinto-a esquecida, abandonada por todos, morta em vida. Quem fala dela? E, no entanto, é uma escritora tão importante na nossa Literatura.
Aconteceu-me sentir-me confusa, a lê-la, perdida num labirinto de palavras e de
ideias para o qual nenhum fio de Ariana encontro à mão.
Mas é uma grande romancista com páginas geniais e figuras muito bem dadas,
fortes e inesquecíveis. Páginas e “criaturas” que lhe poderiam ter trazido um
Nobel que foi injusto não ter.
O
livro foi publicado em 1984 e vários outros saíram depois. Poucos li, confesso,
até ao fim - mas reconheço que têm sempre momentos extraordinários. Ficamos
presos a pensar na riqueza da sua linguagem, na violência e loucura das
personagens, no cuidado do pormenor com que descreve ambientes estranhos,
misteriosos, sombrios, numa língua um tanto “barroca” onde nos perdemos.
Por
curiosidade, interrompo para lhes contar uma história que me aconteceu com ela e
que ajuda a ver a pessoa que Agustina é. Encontrei-a pela primeira vez em Roma,
na nossa casa. O Manuel conhecia-a, mas eu não. Estivemos a conversar toda a
tarde. Passaram muitos anos mas ‘vejo-a’ com o seu ar tranquilo, quase
“angelical”, a contar, com uma pontinha de maldade e uma ironia corrosiva, uma
série de coisas que lhe tinham acontecido.
E a falar de pessoas que
conhecíamos. Ela, pelo menos, conhecia-as bem. Falou
tanto! E tão interessante era. Lembro-me que me ri muito com a conversa e o
humor dela.
Pusera o nosso cão nos joelhos e, placidamente sentada no sofá,
fazia-lhe festas, e ele regalava-se porque era muito mimoso o Zac. Vejo o
sorriso divertido dela e oiço as gargalhadinhas, como de inocente criança,
apesar da evidente ironia.
Anos
mais tarde, estávamos a viver em Israel, a Agustina viajou para receber,
em Jerusalém, um prémio que, recordo bem, teve das mãos de Shimon Peres.
Com
prazer, fomos esperá-la ao aeroporto Ben
Gurion. O avião deveria ter chegado em horário, tudo perfeito, mas a Agustina
não apareceu por mais que a procurássemos e, inclusivamente, a tivessem chamado
pelos altifalantes. Aguardámos um bocado e voltámos para casa, em Telavive.
O aeroporto fica situado a meio caminho de Jerusalém e de Telavive. O
Manuel contactou o marido que ficara no Porto e se angustiou logo, pois não
sabia de nada. Só sabia que o avião tinha partido!
-
Por favor, encontre a minha mulher!, disse.
Lá voltámos
ao aeroporto. Dessa vez, ia o Zac que não suportava ficar em casa sozinho durante muito tempo. E entrou no aeroporto connosco.
Voltámos
a dar as mesmas voltas, falámos com os serviços de apoio, e várias meninas
bonitas se interessaram logo quando souberam que se tratava de uma senhora já
não muito nova e que viajava sozinha. Ninguém sabia daquela pessoa perdida num
aeroporto do Médio Oriente.
Reuven Rubin, Jerusalem
Demos
mais uma volta e, a dada altura, o Zac seguiu em frente mais apressado e a
puxar para um lado enquanto dava ao rabo. Puxava e puxava e eu ia atrás dele,
pendurada da trela. E não esqueço o que vi: a Agustina tranquila, sentada
entre duas viajantes, com um vestidinho branco de lã, o casaco pousado no colo,
como se não tivesse acontecido nada de especial. O Zac já estava ao pé dela, a
lamber-lhe a mão, e ela fazia-lhe festas.
Sorriu-nos e disse apenas: “Eu sabia que haviam de me
encontrar. Não estava preocupada.”
Era quase noite e fomos levá-la ao hotel a Jerusalém. Regressámos a Telavive - finalmente aliviados!
No dia seguinte, fomos a Jerusalém assistir à entrega do prémio. Agustina agradeceu num belo discurso em espanhol que grande
parte da assistência entendeu porque os judeus sefarditas sabem castelhano.
Dias mais tarde veio almoçar a Telavive, com o nosso amigo Ariel Scweitzer, crítico de cinema, e o Zac fez-lhe as honras devidas!
Nunca
mais a vi, mas esta recordação é uma das mais agradáveis que tenho!
***
Voltando
ao bicho da terra… “Bicho
da terra”, dizem alguns, pela escolha que Gabriel da Costa fez, quando voltou a ser "judeu", em Amesterdão, o nome Adam: homem, filho da terra (em hebraico "adam" é "homem").
Gabriel da Costa além do nome Uriel que servia
para a convivência comum e familiar escolheu Adam Bormez para as
relações de negócios internacionais.
A
figura de Uriel da Costa é dramática. Cristão? Judeu? Incréu? Rebelde sem causa,
sem defesa? Espírito livre?
Perseguido em Portugal, como outros "cristãos-novos", é incompreendido na Holanda como "judeu" reconvertido à fé dos antepassados.
É
o símbolo da solidão do “bicho da terra” perdido, à procura dum sentido para aquilo
que o não tem, aos seus olhos “iluminados” pela inteligência e pela sabedoria,
num mundo religioso de circunscrição fechada, sem saída.
Rembrandt, "Jovem Senhor"
Judeu,
descendente de judeus de Espanha, filósofo e céptico (Porto 1585- Amesterdão
1640) de seu nome Gabriel da Costa Fiúza, estudou Direito Canónico, no Colégio
das Artes em Coimbra. Durante o seu percurso religioso, questionou as instituições
Católicas e Rabínicas do seu tempo.
Cristãos-novos,
alguns seus familiares, são acusados pela Inquisição Portuguesa de judaizantes.
Assim, quando o pai morre, deixando problemas de dívidas, a família de Bento Costa
Brandão decide fugir, uma noite, num barco holandês, refugiando-se em Hamburgo
e Amesterdão.
Explica
Agustina:
“Corria o processo de António Homem e ele
contaminara a consciência do cidadão nos Costa Brandão. (…) Tratara-se
evidentemente dum processo socrático, com acusações de ‘crime nefando’, não
praticado mas sugerido (…), subornos e invejas do foro universitário, a rede
policial alastrou e muita gente foi envolvida. (…) os Costa Brandão optaram pelo exílio.” (op.cit. pg. 99)
J. M. Turner, Auto-retrato (pormenor)
Durante
a travessia, Gabriel, nervoso e doentiamente sensível, de humor melancólico, sofre de vários males. A descrição
que nos faz Agustina desta figura, martirizada pela dúvida, pelo tormento das
alucinações, pela incerteza da sua fé impressiona.
J. M. Turner, "Enterro no Mar"
“Os longos cabelos, molhados da
brisa salgada, colavam-se às faces pálidas. Não tinha febre mas parecia muito
doente. As suas alucinações voltavam, e passava as noites muito inquieto.
Gritava que o atormentavam, que sentia os pés a arder sobre tições e que o fumo
claro, de lenha seca, subia até ao peito dele, como uma prova da bênção de
Deus. Era imolado, ao mesmo tempo fruto e bicho da terra, entregue ao altar do
Senhor que recebia a sua oferenda, impassível, em horrível significação de
perdão, atrás de todo o senso, oculto para além da noite da razão.”
(pg 101)
J. M. Turner, "Tempestade"
É
um futuro mártir? É um cordeiro em oferenda? E a “noite
da razão” o que significa nesta passagem? É ele, como afirma a escritora,
um precursor do Iluminismo? Para Agustina, ele tem já uma atitude de pré-iluminista.
O
espírito das Luzes e da Razão e da Dúvida viviam dentro dele. Era
“uma poderosa máquina de raciocinar”,
escreve Agustina Bessa Luís. O que lhe interessava não se prendia com a
filosofia apenas.
Os inquisidores em Portugal acusaram-no e não o consideraram nunca “exactamente católico”…
Sinagoga Portuguesa de Amesterdão
Mais
tarde, em Hamburgo e em Amesterdão, também os rabinos o não levavam a sério, no modo de ser, dizendo
que Uriel «não era exactamente judeu». Seria um homem livre? Não me parece que se sentisse livre, puxado como era para lados tão diversos.
A liberdade de pensamento, de ser ou não ser desta maneira, ou de ser ou não de outra religião “exactamente”, tem o preço da solidão e da incompreensão dos outros : esse é o preço que pagam os
espíritos livres.
Não é fácil abandonar tudo e partir. São muito boas as páginas em que se fala desta "partida", do que fica para trás, do que forçosamente se quer levar para se ter uma recordação próxima, no desconhecido que se avizinha.
A
descrição da viagem e do sofrimento de Gabriel é, também, na beleza da linguagem, e nas imagens, inesquecível.
“Ouvia-se o gemer das madeiras, o
rufar das velas que o vento inchava. A água tinha ervandijas repelentes, o
queijo morcões. Mas de noite, na tenda do convés, se o vento não soprava, havia
um conforto quase consolador, com o cheiro das comidas condimentadas e Gabriel
vestido com o seu roupão de chamalote.”
(pg.102)
Rudolf Bakhuyzen, "Amsterdam view from Mussel Pier"
Um
dia avista-se finalmente o porto de Amesterdão: “Estava, à vista, o porto de Emden e produziu-se grande excitação entre
os viajantes.”
J. M. Turner, "Nascer do sol no porto de Amesterdão"
Refere-se à chegada de Gabriel a Emden - antigo nome de Amesterdão. Onde ele vai
ser o “anjo da desordem” no “seio dessa sociedade místico-comercial”.
Rembrandt, "O anjo Rafael"
Deixo para uma próxima vez, na II Parte, a continuação desta trágica aventura que foi a vida de Gabriel-Uriel-Adam da Costa.