Falar
de livros é uma das minhas obsessões. Gosto da personagem de "Alice no país das maravilhas" pela sua curiosidade e observação e adorei a estátua dela que vi num parque junto ao rio Cam, em Guildford.
Personagens, livros, escritores: talvez porque li desde muito cedo. Criança, instalava-me, num cantinho ou deitada no tapete, a ler; e, mais tarde, fui uma adolescente, que lia em qualquer lugar, mesmo à mesa da sala, ao serão, no meio das conversas, ou debaixo de um pinheiro, isolando-me com grande facilidade no meio da gente.
E - como vejo na fotografia - já devia ter a mania de escrever...
Personagens, livros, escritores: talvez porque li desde muito cedo. Criança, instalava-me, num cantinho ou deitada no tapete, a ler; e, mais tarde, fui uma adolescente, que lia em qualquer lugar, mesmo à mesa da sala, ao serão, no meio das conversas, ou debaixo de um pinheiro, isolando-me com grande facilidade no meio da gente.
E - como vejo na fotografia - já devia ter a mania de escrever...
O
meu pai era um pouco assim como eu. Introvertido, calado, lia em qualquer sítio, com barulho e gente a conversar à
sua roda, nos cafés, no meio das festas de família - ele, sentado na
cadeira de espaldar alto - porque nunca sonhou sentar-se num sofá -
concentrava-se na leitura.
Por vezes, ajudado por um lápis ou uma caneta, ia sublinhando, tirando notas que escrevia nuns papelinhos que trazia guardados no bolso, sempre a sonhar em escrever um dia o "seu" livro.
Por vezes, ajudado por um lápis ou uma caneta, ia sublinhando, tirando notas que escrevia nuns papelinhos que trazia guardados no bolso, sempre a sonhar em escrever um dia o "seu" livro.
Não
escreveu o livro "completo" que desejaria mas publicou muitas das
suas histórias, cheias de recordações, de humanidade e de vida, no
semanário da cidade, "A Rabeca". (1)
Há dias,
referi uma frase de Amos Oz (3):
"O
mundo escrito anda sempre à volta da mão que o escreve, onde quer que aconteça
o que ele escrever: onde tu estiveres, é o centro do mundo.”
“O está
à nossa volta” era disso que o meu pai gostaria de falar. Histórias dos
dias banais das pessoas vulgares - que, no entanto, ‘preenchem’ a vida com tantas coisas importantes para elas. As
memórias guardadas das vidas simples, a 'feridas' guardadas na lembrança, as coisas ligadas às
nossas raízes profundas e íntimas.
Interrogava-se
sobre muitas a maneira de escrever um romance? Como se faz?, perguntava.
Perguntava-o
com a humildade das pessoas honestas. Com certeza sabia que nada do que é
humano é banal, nem as pessoas são vulgares porque são humanas, logo diferentes mas semelhantes - e originais, quando se entregam à obra de arte seriamente.
Tinha
como sua própria, sempre presente, a máxima de Terêncio: “Sou homem e nada do
que é humano me é alheio” (“Homo sum;
humani nihil a me alienum puto.”)
Fazia
parte daquela parte da humanidade que sente o desejo - ou o dever - de expor os "seu
caso", ou o "caso" dos outros, por mais insignificante que esse “caso”
pareça.
O
escritor (ou o artista plástico) não tem obrigação de encontrar assuntos sublimes, o escritor tem de
ter coisas para dizer e saber contá-las de modo pessoal, original, seu. Tudo é
matéria de um livro!
Ele poderia perguntar – com Virginia Woolf:
"Qual a substância do romance"? Ouviria, atento, a
opinião dela e pensaria : o
romance não tem substância...
Virginia Woolf e a pintora Vanessa Bell, sua irmã
"A
'substância própria do romance' não existe. Tudo é a substância própria do
romance, todo o sentimento, todo o pensamento; toda a qualidade do intelecto ou
da alma nos serve; nenhuma percepção se deve afastar." (2)
Aharon
Appelfeld num livro muito belo- "L'Amour Soudain" (3)
escreve sobre sentimentos profundos, ou pessoas, aparentemente, 'banais' e fala da necessidade de escrever
em termos simples, essenciais, sem enfeites inúteis, sem explicações demasiadas
para se chegar aos “outros”. Escrever
é “fazer sair as coisas do esquecimento” e isso bastava. (p.173)
O ideal seria escrever
com a simplicidade da linguagem da Bíblia: "factos e não descrições que escondam o essencial" (p.108)
– sem enfeites, factuais, sem adjectivos em demasia, frases curtas e
compreensíveis.
“A escrita tem de ser clara, ordenada sem nada que seja supérfluo. Deve ir directa ao facto, sem contorções nem metáforas.” (p.204)
Aharon Appelfeld era, na realidade, uma pessoa de fácil contacto. Tivemos ocasião de o saber nas várias vezes (demasiado poucas, afinal) em que o encontrámos em Jerusalém.
Encontrávamo-lo na sua Cafetaria preferida "Tmol ve Shilshom" (Ontem e anteontem) que é, no fim e ao cabo, o título do grande romance de Y.S. Agnon.
Era um prazer ouvi-lo, ver o interesse sincero e a curiosidade com que nos olhava e ouvia. Porque ouvia - talvez mais do que falava. E falava a sério sem nunca se pôr ele próprio em evidência...
“A escrita tem de ser clara, ordenada sem nada que seja supérfluo. Deve ir directa ao facto, sem contorções nem metáforas.” (p.204)
Aharon Appelfeld era, na realidade, uma pessoa de fácil contacto. Tivemos ocasião de o saber nas várias vezes (demasiado poucas, afinal) em que o encontrámos em Jerusalém.
Reuven Rubin, Jerusalem
Encontrávamo-lo na sua Cafetaria preferida "Tmol ve Shilshom" (Ontem e anteontem) que é, no fim e ao cabo, o título do grande romance de Y.S. Agnon.
Era um prazer ouvi-lo, ver o interesse sincero e a curiosidade com que nos olhava e ouvia. Porque ouvia - talvez mais do que falava. E falava a sério sem nunca se pôr ele próprio em evidência...
Appelfeld e Manuel Poppe, Jerusalém, 2001
O protagonista
do romance, Ernest Blumefeld é um escritor que, sabendo-se gravemente doente,
quer atingir depressa o “nó” do que quer escrever, rasgando, cortando linhas e inteiras
páginas inúteis, para chegar “à raiz da
palavra e do acontecimento que recorda”. Para voltar atrás e perdoar e ser
perdoado.
Na
sua ingenuidade e credulidade de pessoa pouco instruída, Irena, a empregada,
vai ajudá-lo a reencontrar um mundo apagado na memória, o mundo perdido dos
avós, as suas tradições judaicas, das montanhas mágicas dos Cárpatos.
Para
ela o compreender, Ernest vai encontrar um 'modo' e escrever da maneira simples e directa que procurava há
tantos anos. Por sua vez, Irena abre-se ao entendimento e é ela quem lembra recordações
do seu passado, escondidas, porque as julgava sem interesse para Ernest,
mas que lhe vão servir para ele ir ao fundo, ao íntimo, da ferida que era o passado,
o seu íntimo.
No romance as duas personagens aproximam-se,
gradualmente, abrindo a alma, na vontade de se ajudarem e até ao fim vão-se
aproximando mais e mais. Enquanto a morte ronda a casa e Irena todas as noites
fecha as janelas para a Morte não entrar.
Talvez
por isso o amor aconteça, repentino, tardio e forte. Para sempre, até a morte vir e levar um dos dois.
“Escrever é escavar numa ferida e mostrar
uma parte secreta da alma”
escreve Aharon Appelfeld, anos mais tarde (2008), noutro livro: “E a fúria não se calou”.
Tudo
varia neste mundo, em todos os seus aspectos, inclusive na Arte. Nada pára,
tudo se movimenta, progride - ou regride – e a riqueza do mundo que nos envolve
é enorme, é infinita, quer no bem como no mal. E tudo é tão rápido e efémero!
A romancista Virginia
Woolf escreveu: "A 'substância própria do romance' não existe. É tudo: todo
o sentimento, todo o pensamento, toda a qualidade do intelecto ou da alma nos
serve, nenhuma percepção se deve afastar." (L’ Art du Roman', Introdução, p. 20)
"(…) a
capacidade do espírito humano é ilimitada, a vida é infinitamente bela e
repugnante, os nossos semelhantes são adoráveis e nojentos, a ciência e a
religião têm destruído a fé (…) É com tudo isso, é nessa
atmosfera de dúvida e de conflito que os romancistas hoje devem criar.”
O
que significa que quem escreve, deve tirar de dentro de si, da sua experiência
o que o “tocou”, o que viveu intensamente, o que “viu” e isso deve comunicar ao
outro ser humano, para evitar a solidão e a angústia do ser humano…
“Escrever é escavar numa ferida e mostrar a
parte secreta da alma…” – dizia
Appelfeld…
Aharon Appelfeld, na Cafetaria Tmol Shilshom (com a Gui)
Foi o que meu pai quis fazer: tirar coisas e pessoas do esquecimento, ser a testemunha das vidas delas, da pobreza, das desilusões.
Os episódios de vida, as recordações autobiográficas, de uma infância dura, e da luta para avançar em direcção ao saber e à plenitude - ia buscá-los ao fundo da memória. Sem esquecer as "raízes" quando, já médico, ia de burro pelas serras ver os doentes, tantas vezes sem receber paga a não ser o olhar com que lhe agradeciam.
Anos depois da sua morte, um grupo de amigos teve a ideia de publicar em livro esses escritos - edição apoiada pela Câmara Municipal de Portalegre.
Assim, quinze anos depois da sua morte, saiu um volume com textos de amigos ou pessoas que o conheceram, juntamente com as histórias publicadas n' "A Rabeca", que se intitulou: "Feliciano Falcão Memória Viva". (5)
Os episódios de vida, as recordações autobiográficas, de uma infância dura, e da luta para avançar em direcção ao saber e à plenitude - ia buscá-los ao fundo da memória. Sem esquecer as "raízes" quando, já médico, ia de burro pelas serras ver os doentes, tantas vezes sem receber paga a não ser o olhar com que lhe agradeciam.
Anos depois da sua morte, um grupo de amigos teve a ideia de publicar em livro esses escritos - edição apoiada pela Câmara Municipal de Portalegre.
Assim, quinze anos depois da sua morte, saiu um volume com textos de amigos ou pessoas que o conheceram, juntamente com as histórias publicadas n' "A Rabeca", que se intitulou: "Feliciano Falcão Memória Viva". (5)
A janela aberta era a do laboratório do meu pai
Evocar a vida passada, ser testemunha de um mundo sem voz, “calado”, dentro de nós, e "abri-lo" aos outros.
Foi
isso que o meu pai quis fazer: tirar do esquecimento, testemunhar. Deitar para fora
de nós tudo o que calámos –ou escondemos, ou esquecemos- até ao momento em que sentimos
a necessidade de escrever.
Penso
que quer Appelfeld quer o meu pai queriam falar das mesmas preocupações, revelar
o que fora a vida – para que o passado não se perdesse. Para o "tirar do esquecimento".
***
Abro o livro do meu pai e leio:
Com o burro morto na véspera. Enterrado no baldio. Com os corvos no alto. (...) Eu no fim da primeira infância, alvoroçado com esta viagem mágica. Descido da Serra a enfrentar o destino incerto. Alvoroçado todo nos olhos e no corpo."
Esta
é também uma pequena homenagem ao meu pai –o inesquecível amigo de toda a vida.
***
(1)
Virginia Woolf, L’ Art du Roman, Aux Editions du Seuil, França, 1963
(in A porta estreita da Arte, artigo de 1922, op. cit., p. 67)
(2) "L'Amour Soudain",
Éditions de l’ Olivier, Points, Paris 2004
(3)
“The Common Reader” (o título indica a intenção da escritora de
escrever para o “leitor comum”, "aquele que lê para seu prazer pessoal”) é uma
colecção de Ensaios, publicados em 2 séries: a primeira, em 1925, e a segunda,
em 1932.
4) “Et la fureur ne s’est pas encore tue”, Éditions
de l’ Olivier, Points, Paris 2009
(5) "Memória Viva de Feliciano Falcão", edições Colibri, 2003
NOTA: Num comentário a um post no meu blogue, O Falcão de Jade, (em 25 de Outubro de 2009) em que falei desses textos do meu pai, Manuel Poppe lamenta que ele não tenha podido continuar a publicar:
"Nesse livro póstumo -diz ele- escrevi um texto - que se intitulava "Lancelote e o Nevoeiro"- e dizia quanto lamentava que "os camaradas" tenham subestimado o que escrevia e o tenham levado a abandonar essas memórias vivas. Calaram-no' e impediram a publicação, na saudosa Rabeca dos magníficos textos autobiográficos a que chamou "Evocação das Raízes" - acusados de textos "egotistas" e demasiado "pequeno-burgueses"!" (F.Falcão estava filiado no PCP, desde Abril de 1975).
(5) "Memória Viva de
NOTA: Num comentário a um post no meu blogue, O Falcão de Jade, (em 25 de Outubro de 2009) em que falei desses textos do meu pai, Manuel Poppe lamenta que ele não tenha podido continuar a publicar:
"Nesse livro póstumo -diz ele- escrevi um texto - que se intitulava "Lancelote e o Nevoeiro"- e dizia quanto lamentava que "os camaradas" tenham subestimado o que escrevia e o tenham levado a abandonar essas memórias vivas. Calaram-no' e impediram a publicação, na saudosa Rabeca dos magníficos textos autobiográficos a que chamou "Evocação das Raízes" - acusados de textos "egotistas" e demasiado "pequeno-burgueses"!" (F.Falcão estava filiado no PCP, desde Abril de 1975).