sexta-feira, 24 de agosto de 2018

Falar de livros e de escritores... E da beleza da vida!

"Daffodils", em Guildford
Falar de livros é uma das minhas obsessões. Gosto da personagem de "Alice no país das maravilhas" pela sua curiosidade e observação e adorei a estátua dela que vi num parque junto ao rio Cam, em Guildford. 
Personagens, livros, escritores: talvez porque li desde muito cedo. Criança, instalava-me, num cantinho ou deitada no tapete, a ler; e, mais tarde, fui uma adolescente, que lia em qualquer lugar, mesmo à mesa da sala, ao serão, no meio das conversas, ou debaixo de um pinheiro, isolando-me com grande facilidade no meio da gente. 

E - como vejo na fotografia - já devia ter a mania de escrever...
O meu pai era um pouco assim como eu. Introvertido, calado, lia em qualquer sítio, com barulho e gente a conversar à sua roda, nos cafés, no meio das festas de família -  ele, sentado na cadeira de espaldar alto - porque nunca sonhou sentar-se num sofá - concentrava-se na leitura.
Por vezes, ajudado por um lápis ou uma caneta, ia sublinhando, tirando notas que escrevia nuns papelinhos que trazia guardados no bolso, sempre a sonhar em escrever um dia o "seu" livro.

Não escreveu o livro "completo" que desejaria mas publicou muitas das suas  histórias, cheias de recordações, de humanidade e de vida, no semanário da cidade, "A Rabeca". (1)
Há dias, referi uma frase de Amos Oz (3): 
"O mundo escrito anda sempre à volta da mão que o escreve, onde quer que aconteça o que ele escrever: onde tu estiveres, é o centro do mundo.”

“O está à nossa volta” era disso que o meu pai gostaria de falar. Histórias dos dias banais das pessoas vulgares - que, no entanto, ‘preenchem’ a vida com tantas coisas importantes para elas. As memórias guardadas das vidas simples, a 'feridas' guardadas na lembrança, as coisas ligadas às nossas raízes profundas e íntimas.
Interrogava-se sobre muitas a maneira de escrever um romance? Como se faz?, perguntava.
Perguntava-o com a humildade das pessoas honestas. Com certeza sabia que nada do que é humano é banal, nem as pessoas são vulgares porque são humanas, logo diferentes mas semelhantes - e originais, quando se entregam à obra de arte seriamente. 

Tinha como sua própria, sempre presente, a máxima de Terêncio: “Sou homem e nada do que é humano me é alheio” (“Homo sum; humani nihil a me alienum puto.”)

Fazia parte daquela parte da humanidade que sente o desejo - ou o dever - de expor os "seu caso", ou o "caso" dos outros, por mais insignificante que esse “caso” pareça.
O escritor (ou o artista plástico) não tem obrigação de encontrar assuntos sublimes, o escritor tem de ter coisas para dizer e saber contá-las de modo pessoal, original, seu. Tudo é matéria de um livro!

Ele poderia perguntar – com Virginia Woolf: "Qual a substância do romance"? Ouviria, atento, a opinião dela e pensaria : o romance não tem substância...
Virginia Woolf e a pintora Vanessa Bell, sua irmã
"A 'substância própria do romance' não existe. Tudo é a substância própria do romance, todo o sentimento, todo o pensamento; toda a qualidade do intelecto ou da alma nos serve; nenhuma percepção se deve afastar." (2)

Aharon Appelfeld num livro muito belo- "L'Amour Soudain" (3) escreve sobre sentimentos profundos, ou pessoas, aparentemente, 'banais' e fala da necessidade de escrever em termos simples, essenciais, sem enfeites inúteis, sem explicações demasiadas para se chegar aos “outros”. Escrever é “fazer sair as coisas do esquecimento” e isso bastava. (p.173)
O ideal seria escrever com a simplicidade da linguagem da Bíblia: "factos e não descrições que escondam o essencial" (p.108) – sem enfeites, factuais, sem adjectivos em demasia, frases curtas e compreensíveis. 

A escrita tem de ser clara, ordenada sem nada que seja supérfluo. Deve ir directa ao facto, sem contorções nem metáforas.” (p.204)

Aharon Appelfeld era, na realidade, uma pessoa de fácil contacto. Tivemos ocasião de o saber nas várias vezes (demasiado poucas, afinal) em que o encontrámos em Jerusalém.
Reuven Rubin, Jerusalem

Encontrávamo-lo na sua Cafetaria preferida "Tmol ve Shilshom" (Ontem e anteontem)  que é, no fim e ao cabo, o título do grande romance de Y.S. Agnon. 
Era um prazer ouvi-lo, ver o interesse sincero e a curiosidade com que nos olhava e ouvia. Porque ouvia - talvez mais do que falava. E falava a sério sem nunca se pôr ele próprio em evidência...
Appelfeld e Manuel Poppe, Jerusalém, 2001

O protagonista do romance, Ernest Blumefeld é um escritor que, sabendo-se gravemente doente, quer atingir depressa o “nó” do que quer escrever, rasgando, cortando linhas e inteiras páginas inúteis, para chegar “à raiz da palavra e do acontecimento que recorda”. Para voltar atrás e perdoar e ser perdoado. 
"Encontrar a linguagem simples e essencial da Bíblia" eis o que procurava Ernest.
Na sua ingenuidade e credulidade de pessoa pouco instruída, Irena, a empregada, vai ajudá-lo a reencontrar um mundo apagado na memória, o mundo perdido dos avós, as suas tradições judaicas, das montanhas mágicas dos Cárpatos.
Para ela o compreender, Ernest vai encontrar um 'modo' e escrever da maneira simples e directa que procurava há tantos anos. Por sua vez, Irena abre-se ao entendimento e é ela quem lembra recordações do seu passado, escondidas, porque as julgava sem interesse para Ernest, mas que lhe vão servir para ele ir ao fundo, ao íntimo, da ferida que era o passado, o seu íntimo.
 No romance as duas personagens aproximam-se, gradualmente, abrindo a alma, na vontade de se ajudarem e até ao fim vão-se aproximando mais e mais. Enquanto a morte ronda a casa e Irena todas as noites fecha as janelas para a Morte não entrar.
Talvez por isso o amor aconteça, repentino, tardio e forte. Para sempre, até a morte vir e levar um dos dois.
“Escrever é escavar numa ferida e mostrar uma parte secreta da alma” escreve Aharon Appelfeld, anos mais tarde (2008), noutro livro: “E a fúria não se calou”.
Tudo varia neste mundo, em todos os seus aspectos, inclusive na Arte. Nada pára, tudo se movimenta, progride - ou regride – e a riqueza do mundo que nos envolve é enorme, é infinita, quer no bem como no mal. E tudo é tão rápido e efémero! 
A romancista Virginia Woolf escreveu: "A 'substância própria do romance' não existe. É tudo: todo o sentimento, todo o pensamento, toda a qualidade do intelecto ou da alma nos serve, nenhuma percepção se deve afastar." (L’ Art du Roman', Introdução, p. 20)
"(…) a capacidade do espírito humano é ilimitada, a vida é infinitamente bela e repugnante, os nossos semelhantes são adoráveis e nojentos, a ciência e a religião têm destruído a fé (…) É com tudo isso, é nessa atmosfera de dúvida e de conflito que os romancistas hoje devem criar.” 
O que significa que quem escreve, deve tirar de dentro de si, da sua experiência o que o “tocou”, o que viveu intensamente, o que “viu” e isso deve comunicar ao outro ser humano, para evitar a solidão e a angústia do ser humano…
“Escrever é escavar numa ferida e mostrar a parte secreta da alma…” – dizia Appelfeld…
Aharon Appelfeld, na Cafetaria Tmol Shilshom (com a Gui)

Evocar o que foi a vida passada, ser a testemunha de um mundo “calado”, fechado dentro de nós, de sonhos, de sofrimento, de alegria, de desespero e de esperança.

Foi o que meu pai quis fazer: tirar coisas e pessoas do esquecimento, ser a testemunha das vidas delas, da pobreza, das desilusões. 
Os episódios de vida, as recordações autobiográficas, de uma infância dura, e da luta para avançar em direcção ao saber e à plenitude - ia buscá-los ao fundo da memória. Sem esquecer as "raízes" quando, já médico, ia de burro pelas serras ver os doentes, tantas vezes sem receber paga a não ser o  olhar com que lhe agradeciam. 
Anos depois da sua morte, um grupo de amigos teve a ideia de publicar em livro esses escritos - edição apoiada pela Câmara Municipal de Portalegre. 
Assim, quinze anos depois da sua morte, saiu um volume com textos de amigos ou pessoas que o conheceram, juntamente com as histórias publicadas n' "A Rabeca", que se intitulou: "Feliciano Falcão Memória Viva". (5)

A janela aberta era a do laboratório do meu pai

Todos os escritos do meu pai (artigos sobre literatura, pintura e música que usara em conferências e palestras, muitas delas no grupo "Graal" de Portalegre e também os seus escritos de ficção foram publicados, depois da sua morte, no livro "Feliciano Falcão Memória Viva". 

Evocar a vida passada, ser testemunha de um mundo sem voz, “calado”, dentro de nós, e "abri-lo" aos outros.
Foi isso que o meu pai quis fazer: tirar do esquecimento, testemunhar. Deitar para fora de nós tudo o que calámos –ou escondemos, ou esquecemos- até ao momento em que sentimos a necessidade de escrever.

Penso que quer Appelfeld quer o meu pai queriam falar das mesmas preocupações, revelar o que fora a vida – para que o passado não se perdesse. Para o "tirar do esquecimento".
***
Abro o livro do meu pai e leio:

"Pus este monólogo a falar de mim. E dos outros. Das minhas vivências, Monólogo sobre a existência. Sobre vida escura. Sem brancura. vejo aquela tardinha de Outono, tão longe, quando fizemos a abalada para a cidade. Os ouriços arregoados dos castanheiros a mostrarem as castanhas luzidias. 
Com o burro morto na véspera. Enterrado no baldio. Com os corvos no alto. (...) Eu no fim da primeira infância, alvoroçado com esta viagem mágica. Descido da Serra a enfrentar o destino incerto. Alvoroçado todo nos olhos e no corpo."

Esta é também uma pequena homenagem ao meu pai –o inesquecível amigo de toda a vida.
***
(1) Virginia Woolf, L’ Art du Roman, Aux Editions du Seuil, França, 1963 (in A porta estreita da Arte, artigo de 1922, op. cit., p. 67)
(2)  "L'Amour Soudain", Éditions de l’ Olivier, Points, Paris 2004 
(3) “The Common Reader” (o título indica a intenção da escritora de escrever para o “leitor comum”, "aquele que lê para seu prazer pessoal”) é uma colecção de Ensaios, publicados em 2 séries: a primeira, em 1925, e a segunda, em 1932. 
4) “Et la fureur ne s’est pas encore tue”, Éditions de l’ Olivier, Points, Paris 2009 
(5) "Memória Viva de Feliciano Falcão", edições Colibri, 2003

NOTA: Num comentário a um post no meu blogue, O Falcão de Jade,  (em 25 de Outubro de 2009) em que falei desses textos do meu pai, Manuel Poppe lamenta que  ele não tenha podido continuar a publicar: 
"Nesse livro póstumo -diz ele- escrevi um texto - que se intitulava "Lancelote e o Nevoeiro"- e dizia quanto lamentava que "os camaradas" tenham subestimado o que escrevia e o tenham levado a abandonar essas memórias vivas. Calaram-no' e impediram a publicação, na saudosa Rabeca dos magníficos textos autobiográficos a que chamou "Evocação das Raízes" - acusados de textos "egotistas" e demasiado "pequeno-burgueses"!" (F.Falcão estava filiado no PCP, desde Abril de 1975).

quinta-feira, 16 de agosto de 2018

O MEU PAI MORREU HÁ 30 ANOS




Li, numa biografia de Van Gogh, a descrição do seu enterro. O meu pai adorava Van Gogh. O enterro dele foi muito semelhante ao do pintor.

Van Gogh, Searas e corvos

“O enterro realizou-se por volta do meio-dia. Um calor tórrido. O cemitério estava rodeado de searas.”

Nenhum outro texto me deu a sensação de reviver um momento como este: tocou-me profundamente porque foi como se revisitasse,  nestas poucas palavras, o dia do enterro do meu pai.
O mesmo sol ardente do meio-dia, num Agosto quente, o calor tórrido sobre a cabeça das pessoas que, compungidos, alguns chorosos, viam a última “imagem” de um Homem, de um Amigo.
Van Gogh

O cemitério de Portalegre, os ciprestes altos, o silêncio fundo que envolvia agora tudo - depois do ruído de passos que se ouviram pelo caminho - desde a Capela do Hospital até ao portão de ferro pintado de verde do cemitério. 
Em redor, o nosso olhar abrangia campos e campos até ao fim da vista. 
Etienne Martin, Searas  e papoilas


Eram as mesmas searas a arder dos quadros de Van Gogh, douradas e salpicadas de uma ou outra papoila. 
O horizonte longínquo envolto numa bruma leve, quase um fumozinho que se escapasse de uma chaminé, ou nuvem criada pela humidade da manhã e pela evaporação – quem sabe? - era uma pintura de Etienne Martin.
Tudo se fechara ali, na minha relação com o meu pai enquanto vivo. Tudo começara muito tempo antes, no momento em que a parteira me embrulhara na toalha e me levara ao meu pai...
o meu pai, por Sartori, veneziano, amigo de Aldo Zari

“Pôs-me nas mãos suaves do meu pai. Ele olhou-a, numa interrogação muda. Julgara que eu era um rapaz. Ela disse-lhe, abanando docemente a cabeça:
- Não, Sr. Doutor, é mais uma menina.
Eu era muito pequenina e tinha uns olhos de chinesinha, meio fechados, uns cabelos negros e lisos, espetados no ar, com a minha franja de farripas. O meu pai segurou-me com as suas mãos grandes, e olhou-me. Teria sido uma desilusão?
Devo tê-lo olhado também e "sei" que me senti segura naquelas mãos - e protegida pelo olhar do meu pai. 
Sei que essa sensação de segurança a guardei pela vida fora. Até ao fim.”
Passaram tantos e tantos anos. Sombras lentas passaram, vidas foram cortadas. As searas verdejaram e douraram. As folhas de Outono amareleceram e caíram -e foram pelo ar, varridas pelo vento forte. "Sombras, folhas secas caídas e arrastadas pelo vento" é a linguagem dos Salmos quando referem a efemeridade da vida.

Falo-lhe, agora, com saudade:
Mas sabes? as rosinhas de toucar que cresciam, livres, na azinhaga da quinta, de que gostavas tanto, voltam todos os anos na Primavera. No mesmo lugar onde as fui colher para ti, nessa manhã de Agosto. 
E voltam as madressilvas perfumadas aos bosques, os lírios, as joaninhas, os grilos. E voltam os pássaros de que nos ensinavas os nomes..."
um passarinho de Van Gogh
Sim, o resto da nossa "relação" ia ser, para mim, a memória de pequenos átimos vividos, de um sorriso, um olhar, um entendimento sem palavras mas com ternura  - e está  fechada no coração.
flores de Maio, as 'boninas' dos campos
Quando chega esse mês, encho-me de angústia invencível. O meu pai morreu num dia 17 de Agosto.
Para sempre separados? Nunca mais ? E os anjos de Botticelli?

Anjo, de Botticelli
Never more, never more” - grasnava o corvo de E. A. Pöe, a frase que escreveste na dedicatória no último livro que me ofereceste,  em Roma.
"Never more"? Não, pai! Para sempre. Como a beleza das coisas. As árvores floridas de lilases. As searas ou os girassóis ardentes de Van Gogh.



domingo, 12 de agosto de 2018

As papelarias das minhas terras ...


canetas e cadernos (foto de M.J.F.)
Estava eu, na Praceta de São João, sentada num dos bancos de madeira, e pus-me a pensar.
árvores e céu azul (foto de M.J.F.)
A praceta, cheia de árvores, que em tempos foi soturna e sombria, com as pedrinhas soltas e os buracos onde ficava a chuva e as folhas de Outono a apodrecerem, é hoje um lugar luminoso.
Dantes, tinha casas em volta, lojas e, no centro, um quadrado, cercado por um muro baixinho com algumas flores sempre secas.
Havia três ou quatro passagens abertas no muro para as pessoas atravessarem ou para a cruzarem em diagonal para apanhar a rua da estação. À roda, giravam os carros que paravam e buzinavam para deixar alguém em frente de uma loja, ou arrumado em qualquer canto por umas horas.
Há uns anos, a praça foi completamente reestruturada por um jovem arquitecto que, por acaso, é um dos amigos de infância do meu filho. Dois gémeos, os chamados por nós “Zés” porque um era o Manel Zé e o outro o Zé Manel. Um é comandante da TAP e o outro, Manuel José Ayres, é o arquitecto.
A praceta ficou com mais luz, sem o muro que eu detestava, um chão plano onde não se tropeça nas pedrinhas da calçada portuguesa, onde as crianças podem correr ou jogar à bola e onde há mesmo um pequeno parque infantil cheio de cores. 
Praça de São João foto de M.J.F.)

Os carros não circulam, nem buzinam, há um pequeno parque para arrumar quatro ou cinco carros e mais nada.
Tem uma escadaria aberta para a estação e é fácil apanhar o comboio sem ir dar uma volta e, quando se sai dele, está a praça logo em frente. Há mesas de madeira com cadeiras onde os alunos do liceu podem estudar (?), ler, conversar, namorar – o que é positivo. 
Uma das mesas tem mesmo um tabuleiro de xadrez e damas desenhado, e muitos senhores mais crescidos, reformados, ficam ali a jogar e a conversar com os amigos, de boné enterrado na cabeça.
Outros ficam nos bancos, pensativos, a olhar para trás, para o passado, enquanto vêem passar diante deles a miudagem do liceu. O que pensam não sei. Há uma certa nostalgia no olhar deles. Como se nem eles nem o banco onde se sentam exista de verdade.
o banco e a memória (foto de M.J.F.)
Mas eu queria falar era de papelarias! De facto, na praceta, há duas papelarias de que me lembro desde que para aqui viemos viver – quando fui colocada no Liceu de São João.
Papelaria Bonanza (foto de M.J.F.)

Papelaria Ricco (foto de M.J.F.)

Papelaria Bonanza, (foto de M.J.F.)

São a Papelaria Bonanza e a Papelaria Ricco que continuam a servir toda a gente. Mudou a gerência, mas tudo permanece idêntico, se bem que com nova decoração.

Papelaria Ricco (foto de M.J.F.)

Papelaria Ricco e livros novos e usados (M.J.F.)

Papelaria Ricco  (M.J.F.)

Adorei sempre o ambiente e o cheiro das papelarias desde que era miúda e ia à Papelaria Viriato, entre o Rossio e a Igreja de São Lourenço, em Portalegre, comprar as coisas de que mais gostava: livros, lápis de cor e aguarelas, cadernos, apara-lápis e borrachas de todas as cores. Algumas borrachas até tinham cheiro de frutas!
Portalegre (foto M.J.F.)


Portalegre (foto M.J.F.)
Subindo pela Rua Direita, havia mais papelarias, claro. Havia, perto da casa dos meus avós – que moravam na Rua da Sé, paralela à Rua Direita, a Livraria-Papelaria do Sr. Tiago Morgado, dirigida pelo filho, também Tiago, que sempre conhecemos como Sr. Tiaguinho. 
Quantos livros comprei nessas papelarias. Havia a magnífica colecção Romano Torres que publicava traduções (consideradas “versões”) de muito bons de romances ingleses e outros.
Portalegre (foto M.J.F.)

Comprei – e sofri - com David Copperfield e Tempos Difíceis o Charles Dickens, ou “Sem Família” seguido de “Em família”, de Hector Mallot.
Li, encantada, as aventuras de “Ivanhoe”, de Sir Walter Scott, “A Mulher de Branco” ou “O Diamante da Lua”, Wilkie Collins que íamos comprar na Papelaria do Senhor Tiago.


Continuando a subir a rua, do lado direito, havia a Papelaria Margalho onde me recordo de ver, além dos artigos de papelaria, livros para crianças, brinquedos e todos os jornalinhos da B.D. dessa época: “Diabrete”, “O Cavaleiro Andante”, e as histórias do Tintin.
Havia, nesses anos, uma revista que eu preferia acima de todas: era “O Mundo de Aventuras”, mas esse ia-o buscar à Tipografia Casaca, do meu querido avô, que o guardava para nós.
os meus avós, na Serra com o meu filho Diogo e o Zé Manel e o João, meus sobrinhos
Por isso, à saída do Liceu, na 5ª feira, lá estávamos - a minha irmã mais velha e eu – a buscá-lo. Um beijo ao avô, sentado na sua secretária, ao fundo da tipografia, a corrigir as eternas provas d’ A Rabeca, o semanário republicano mais importante da nossa terra. Quando chegávamos a casa, era separado em páginas soltas e dividido por nós e pela nossa mãe que gostava de o ler como nós!
Café Alentejano, anos 50
Café Alentejano, hoje

Havia também, antes de chegar ao Café Alentejano, a Papelaria do Sr. Silvino, onde pouco parávamos porque quando chegávamos lá acima já tínhamos comprado tudo.
Portalegre (foto M.J.F.)
Finalmente, para lá do histórico - e ainda “vivo”- Café Alentejano, perto da Porta de Alegrete, ficava  a Papelaria de Maximiliano Rato que, para além de tudo o que havia nas outras lojas, tinha as “sonhadas” bonecas -as mais belas da cidade - e os melhores brinquedos.
Era passagem obrigatória, antes do Natal para podermos fixar bem o que iríamos pedir ao Pai Natal e ficar à espera da surpresa que vinha pela chaminé e ficava junto do fogão da cozinha.
Portalegre (foto M.J.F.)
Surpresa, sim, porque a verdade é que pensávamos: “Como pode ele lembrar-se das prendas todas”? Ou: “Será que este ano vai fazer confusão?” A nossa surpresa era ver que ele acertava em quase tudo o que lhe pedíramos na “cartinha” (obrigatória) que escrevíamos para a “Estrada do Céu”.
Natal 
Sempre a mesma “ilusão” desses tempos quando entro numa Papelaria: o que vou descobrir de especial?
A verdade é que hoje encontrei uma novidade: uma ‘Bic’ a escrever “roxo vivo” e, outra, “azul turquesa”.
E, para grande alegria encontrei ainda uma esferográfica Parker que me atraiu pela sua cor vermelha, pois nunca vira esse tipo de caneta  em encarnado - e que me custou 15 euros.
bela foto do amigo J.F. hoje desaparecido

Saí, contente. As papelarias a mim nunca me desiludem…E, na memória, voltei à minha cidade natal, Portalegre! E sonhei com mais livros!