sábado, 4 de agosto de 2018

Férias, livros e escritores...


Falar de escritores é falar de livros e vice-versa, uns levam inevitavelmente aos outros. Igualmente, ao que escrevem nos livros e ao que pensam sobre os livros que escrevem. 
E, já agora, aos conselhos que gostaríamos de dar sobre leituras.
Virginia Woolf pintada pela irmã, Vanessa Bell

No entanto, hesito, penso na frase de Virginia Woolf e…não aconselho nada desta vez:
O único conselho que uma pessoa pode dar a outra a propósito da leitura é é de não pedir conselho nenhum, seguir sim o seu próprio instinto, usar a razão, chegar às suas próprias conclusões”, escrevia Virginia Woolf. (The art of fiction).
(nascida em 1882, suicida-se em 1941)

                                                    ***
Vou “reflectir” com os que lêem o meu blog. Sempre as mesmas perguntas: Para que se escreve? Para quem? Para que servem os livros?

Pessoalmente, penso que se escreve para falar com alguém. Comunicar. Já que mais não seja, para falarmos connosco e pormos em letra aquilo que sentimos necessidade de "deitar cá para fora". 

A pensar que um dia alguém lerá o que escrevemos. Queremos dar um testemunho do que se viveu, para que outros possam ler e – quem sabe? - comparar as nossas com as próprias experiências vividas.

Para que se lêem livros? Esta resposta é mais fácil: porque necessitamos deles como de água quando se tem sede!

José Régio falava da finalidade da Literatura, no nº 9 da revista “presença” (1928):
A finalidade da arte é apenas produzir-nos uma emoção tão particular, tão misteriosa, e talvez tão complexa: a emoção estética”. (*)
Orquídea, de Barbara Coleman DuBois
Literatura é pura e simplesmente um meio de expressão artística – como a pintura, a escultura, o cinema, a dança, a arquitectura, a música.” Provocar no outro uma emoção especial... e, assim, estabelece-se a relação privilegiada autor-leitor.
livros de Régio, em promoção, na Livraria Galileo
“Essa emoção estética – experimentamo-la quando o artista consegue despertar o nosso próprio instinto de recriação do mundo, encaminhando-o no sentido do seu. (…) A verdade é que na obra de arte o mundo existe através da individualidade do artista.”
na Livraria Galileo

Falar de nós, é falar do que “está à nossa volta”, falar da aparente banalidade dos dias das pessoas vulgares e que no entanto ‘enchem’ os seus dias. E que têm coisas importantes 'para eles' que querem contar. O escritor não tem de encontrar assuntos sublimes! 
Qualquer assunto pode ser o tema de algo que se escreva desde que com verdade, originalidade e necessidade de comunicar.
Dizia Amos Oz, que nasceu em 4 de Maio de 1939: “O mundo escrito…anda sempre à volta da mão que o escreve, onde quer que aconteça o que ele escrever: onde tu estiveres, é o centro do mundo.” (**)

Assim, eis-me a falar outra vez do livro dum escritor de que gosto e descobriu muito cedo a paixão de ler. E reencontro uma voz, uma companhia. Quando fala do amor pelos livros desde rapazinho e das conversas que tinha com a mãe sobre eles e como ela o empurrou para os amar e procurar sempre.
“Um dia (…) a minha mãe disse-me que, com o passar dos tempo, os livros podiam mudar talvez tanto como mudam os seres humanos. Com a diferença: os homens deixam-te mais cedo ou mais tarde, basta que não encontrem já em ti algum proveito, ou prazer, ou interesse, ou sentimento. Os livros nunca te abandonam. Podes esquecê-los muitas vezes, ou pô-los de parte durante longos anos, ou mesmo para sempre. (…) Mesmo que os abandones, e os tenhas atraiçoado, nunca to farão sentir: vão esperar, silenciosamente, humildemente, na prateleira. 
Dezenas de anos mesmo. Sem uma queixa. Até ao momento em que, de repente, na noite, sentirás um desejo enorme de um livro – o livro que puseste de parte ou que praticamente se apagou da tua memória muitos anos antes. (…) E ele não te desiludirá, descerá do seu poleiro para te fazer companhia quando precisares. Sem reserva, sem procurar pretextos, sem se perguntar se vale a pena, se tu o mereces. Responderá imediatamente ao teu apelo. Nunca te abandonará.”

Penso muitas vezes nesta particularidade dos livros: a companhia e a fidelidade, porque permanecem fiéis ao que vimos neles, não mudam - nós é que podemos mudar e ter outra "leitura", mas a companhia verdadeira permanece.
Amos Oz refere um escritor americano que o influenciou na escolha dos temas simples da vida, coisas do passado, da família, do quotidiano. Do frágil e desinteressante dia a dia que, de repente, nos aparece com uma luz especial. Dos sítios onde nada parece acontecer e onde tudo aconteceu.
Sherwood Anderson
Esse escritor é Sherwood Anderson esse escritor e o livro de ‘short stories’ – intitulado ‘Winesburg, Ohio’ que lê, em 1959, traduzido.
E pensa: Winesburg, Ohio, ou Telavive, ou seja lá onde for - "onde o escritor estiver, o centro do mundo é ele e o que ele escreve".
A “substância” do romance ou novela é exactamente o que vemos e nos impressiona e que sentimos que só nós o poderemos dizer de uma certa maneira diferente da dos outros.
Reabro o livro de Oz que deixei abandonado na estante, há muitos meses. E reencontro uma voz, uma companhia.

"Nada me pertence –
Só a paz interior
E a frescura do ar”,

escreveu o poeta japonês, Kobayashi Issa, e sinto que os livros fazem parte daquele pouco que nos pertence na vida de bom: a paz interior e a frescura do ar.
Outro escritor que fala de livros - e do que escrever significou para ele -é Giorgio Voghera, judeu triestino, dos chamados “anos da Psicanáliese” (***). 
O livro onde fala sobretudo dos outros e muito pouco de si, é "Gli anni di Trieste".
Trieste hoje (MJF)

Um dia, com uma certa idade, decide começar a escrever. E justifica-se, simplesmente, tal como escreve. 
Tive sempre a impressão de que a importância de uma obra narrativa, fosse ela qual fosse, era a capacidade de ‘testemunhar’ que oferece nos casos humanos, nas ‘tranches de vie’, que expõe”. 
Tinha coisas a contar e queria contribuir com o seu testemunho: as pessoas que conheceu, o que viveu, o que existiu “à sua roda”, o que o marcou.

Porque o olhar de cada um traz um aspecto novo da realidade existente – que nunca será igual ao de outro : sejam pessoas, lugares ou objectos.
Dizia-o José Régio: cada um tem olhar seu e as suas coisas para contar, por pouco importantes que pareçam. Dizer de uma certa maneira diferente, referia Régio. Desde que tenha o seu “tom”, pessoal e único. Desde que seja original.
                                      Giacomo Leopardi (1798-1837)

Voghera cita Leopardi: “De nada poderemos falar com tanta eficácia e verdade como daquilo que nos diz respeito pessoalmente. (…) não nos devem interessar somente os nossos pequenos problemas materiais mas, também, as paixões e os sofrimentos humanos e universais. Mesmo que seja através dos efeitos que eles tenham sobre a ‘nossa’ psique..”

E continua: “Do que não podemos duvidar é do sofrimento humano. (E também do dos animais, segundo o que eu penso.” – acrescenta Voghera.
 “Para mim, é importante ter qualquer coisa para dizer; não a perfeição formal, nem a página bonita, ou o pensamento poético. Todo o meu esforço consiste em dizer o que me ‘toca’ e ser o mais claro possível.” 

A clareza é de facto uma das qualidades de Voghera. Outra é a generosidade com que escreve dos outros, dos que foram da sua geração, dos amigos, dos mais velhos - dos quais quer deixar uma lembrança viva. Falar de si pouco lhe importa e só aparece quando estritamente necessária a sua aparição.

Gostaria de referir também, brevemente, o que escreveu Doris Lessing (****), em 1963.
Como escritora, interessam-me sobretudo os romances e os contos, apesar de acreditar que as artes – ou os diversos “géneros”- exerçam influência contínua umas sobre as outras, e o que está numa delas, em determinada época, estará provavelmente também nas outras.”
A mim, interessa-me especialmente o que ela escreve, logo a seguir:

Segundo creio, o ponto mais alto alcançado pela Literatura foi o romance do século XIX: a obra de Tolstoi e Dostoievski, Balzac, Turgueniev e Tchekhov – ou seja: a obra dos grandes “realistas”, e entendo realismo como a arte que emana, com vigor e naturalidade, de um ponto de vista intensamente defendido (…) são a forma mais elevada da literatura em prosa.”

E nota: “Os grandes homens desse século não tinham em comum nem a religião, nem a política, nem os princípios estéticos. Mas o que tinham em comum era um clima de discernimento estético; compartilhavam certos valores; eram humanistas. 
(…) Continuo sempre a ler Tolstoi, Sthendal, Balzac (…), o mesmo faz muita gente que conheço, sejam de esquerda ou de direita, comprometidos ou não, religiosos ou anti-religiosos mas que têm algo em comum: lêem livros – como me parece que devem ser lidos: para obterem inspiração alargar a nossa perspectiva de vida. 

(…) Voltar a ler Tolstoi ou Stendhal, porquê? O que procuraria neles era o calor, a compaixão, a humanidade, o amor pelas pessoas que ilumina a literatura do século XIX e que converte todos esses romances numa declaração de fé no homem.”
Tchekhov, por Isaac Levitan (1886)

Outra opinião sobre o que são os livros, ou qual a sua “substância” é a de Virginia Woolf :

"A 'substância própria do romance' não existe. Tudo é a substância própria do romance, todo o sentimento, todo o pensamento; toda a qualidade do intelecto ou da alma nos serve; nenhuma percepção se deve afastar."
Quem escreve, deve escolher dentro de si, dentro da sua experiência o que o “tocou”, o que “viu”, o que viveu intensamente, o que quer comunicar ao outro ser humano… Tudo pode, pois, ser essa substância!
E recordo Isaac Bashevis Singer que dizia isto mais ou menos: “cada um tem as suas histórias “próprias” para contar porque cada um tem a sua maneira própria de “ver” e de “falar delas”.
Todos os escritores têm (ou não) a particularidade de tratar os “mesmos assuntos”, de um modo especial, o  seu. E Singer soube escrever sobre todos os assuntos, com ternura e generosidade e com tanto pessimismo por vezes...

Bashevis Singer e os pombos seus amigos

Serão “artistas” completos se tiverem a sua mundividência própria, a sua voz, o seu tom pessoal. O que não está longe do que diz Wolf:
Todos os métodos (e assuntos) são bons, cada método serve desde que expresse o que queremos expressar – se formos escritores - ou que nos aproxime das intenções do escritor, se formos leitores.”

E mais: “O problema que se põe hoje aos escritores (1919), e que se pôs de certeza aos escritores do passado, é inventar os meios de exprimir livremente o que se quer exprimir. Devem ter a coragem de dizer que aquilo que lhes interessa escrever já não é “isto”, mas sim “aquilo”; e que será apenas a partir “daquilo” que irão construir a sua obra!” (p.18)

Como sombras, passamos e, connosco, tudo passa, mas, através dos anos, o escritor, o artista procura a sua razão de escrever - e o tempo pára por um momento, para o leitor...
sombras de Hogan

 A vida humana não dura se não um segundo. (…) É com tudo isso, é nessa atmosfera de dúvida e de conflito que os romancistas hoje devem criar.” (*****)
a maravilha que é a Livraria Galileo
em Cascais...

O que posso  dizer mais? Creio haver aqui muito que nos fará pensar sobre a importância livros...
***

(*) Literatura livresca e literatura viva”, in nº 9 da “presença”, de 9 de Fevereiro de 1928. Artigo reeditado, em Crítica e Ensaio I (refiro-me à colecção do Círculo dos Leitores)
(**) Amos Oz, "Une histoire d'amour et de ténèbres", Folio, Gallimard, 2002
(***)  “Gli anni di Trieste”, pg.208
(****) “Depoimentos dos Angry Men”, Perspectivas, Editorial Presença, 1963
(*****) Virginia Woolf “L’ art du roman,” A porta estreita da Arte, artigo de 1922, (pg. 67)

6 comentários:

  1. Gosto muito da maneira como liga o que escreve e as fotos que coloca e a forma como consegue despertar-nos a curiosidade para a leitura de todos os livros de que fala. Eu acho que as sugestões e os conselhos de leitura vindos daqui, são sempre bem vindos, porque são sempre de qualidade. Pena tenho eu é de não conseguir ler tudo!
    Mas com o tempo, vou lendo algumas coisas:))

    Daqui a pouco vou espreitar a Galileu! Lai, lai, rai, lai lai!! E a Dejá Lu! Yess!!

    Um beijinho e bom fim-de-semana e não demore muitoa clocar outro post! Please!! Please!!

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  2. Espero ir contigo! Da última vez que lá estive, tinham tantos livros do Régio, que fiquei espantada! E tão baratos...
    Tens muito que ver...

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  3. Maria João,
    Existem tantos, mas tantos livros bons para serem lidos! Já estou como a Isabel, vamos lendo alguns!
    Já reparou que os livros de Régio que tem em casa e deve ter os títulos todos, valem cada vez menos? Só se for pelas dedicatórias... este é apenas um exemplo! Mas é bom comprarmos livros baratos!
    Foi apenas um desabafo...
    Um beijinho.:))

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  4. Escritores, leitores, duas coisas diferentes, como fazer uma casa ou habitá-la. Como simples leitora, sigo os próprios gostos, leio só por prazer e deixo muitos livros a meio porque não me interessam. Mas deixo-me aconselhar por pessoas nas que confio intelectualmente, o tempo é ouro... Quando um livro nos engancha, a leitura torna-se num prazer sofisticado. Mas também é verdade que quanto mais se lê, mais exigentes vamos sendo (felizmente). Tu disso sabes mais do que eu, que és uma leitora empedernida. Por isso os clássicos sâo uma aposta segura, já superaram todos os filtros da modernidade...
    Também viajas muito, que é outro sofisticado prazer. És uma mulher muito afortunada! A ponto estás de ir à América!
    Feliz viagem, beijinho grande

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  5. Saudações Mrs Falcão além mares de terras distantes onde se faz leitura obrigatória de pérolas literárias. A vida passa tão depressa que ás vezes a alma não tem tempo de envelhecer ou dizer um "ola" para um amigo. Um abraço e até breve.

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  6. Ainda em férias, passo para cumprimentá-la por este
    texto de memórias e informação.
    Beijinhos
    ~~~~

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