sexta-feira, 3 de maio de 2019

Lugares da minha infância



Na infância, íamos brincar para a Corredoura. Era um parque, em terreno inclinado, que subia até à Corredoura de cima, na rua da Rua da Escola Técnica.
Havia o parque infantil com os seus divertimentos, cavalinhos de madeira, o "sobe e desce", o escorregador e a areia onde caíamos.
Em redor, havia flores, arbustos recortando canteiros de pedrinhas, formando sebes torneadas, com bagas pequeninas e bem encarnadas.
Havia áleas de areia batida, com bancos de madeira, de cada lado, para as pessoas descansarem do passeio, quando estavam cansadas.

Evoco sempre o quadro de Miguel Barrias, onde sinto uma atmosfera de grande intimidade, nos dois vultos que passeiam, apoiados um no outro.
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óleo de Miguel Barrias

Para mim, aquele óleo, que vi muitos anos pendurado em casa dos meus pais -e que hoje me pertence- era a  Corredoura, no Outono, com as folhas pintalgadas de amarelo e vermelho. Talvez um choupo tremedor como o desta imagem outonal
Era o caminho que eu conhecia e ia dar ao parque infantil, ladeado entre duas filas de árvores, com um banco de madeira, de um lado e do outro.

A meio do parque, havia um lago, protegido com grades altas, onde nadavam peixinhos encarnados. De um dos lados, detrás do lago, viam-se árvores. 

Salgueiros. Olmos. Choupos. Vários tipos de choupos:  a rama de um choupo chorão pendia sobre o lago, tocando ao de leve nas águas verdes. O choupo tremente. O choupo branco - quantos estariam à volta daquele lago?
Levávamos miolinhos de pão nos bolsos para deitar no lago e chamar a atenção dos peixes. Vê-los nadar, em sinuosas linhas vermelhas, em direcção a nós, era um prazer enorme. 
Um dia tive a ideia de ir pescar! Peguei num carrinho de linhas e num alfinete que a Florinda me dobrou ao meio e prendi no bico do alfinete um bocado de pão.
Os peixinhos vieram velozes e comeram o pão. Claro que eu não pesquei nada, mas também sei que a minha intenção não era essa, porque se os pescasse, eles morriam...

Nem eu sonhava matar desse modo cruel um daqueles mágicos seres brilhantes e vivos que adorava ver!
Era na Corredoura que me lembro de encontrar as minhas amigas pequenas, a Tiça, a Julieta, a Gioconda. E lá vinham também as minhas irmãs, de laços na cabeça. 


O grupo era grande e juntávamo-nos sobretudo nos dias dos anos de uma de nós. As casas não eram grandes para permitir as brincadeiras que, ao ar livre, eram possíveis. Brincadeiras simples: o esconde-esconde, o ringue, jogar à malha ou ao macaco, ao pé-coxinho...

De Inverno, vestíamos camisolas de lã por debaixo desses tais bibes, e meias de renda grossa a sair das eternas botas de cabedal com atilhos de que eu gostava tanto.

Eu gostava muito de jogar à bola! Um dia ofereceram-me uma bola vermelha. Vejo-me na fotografia agarrada a ela, com força, com um travo de melancolia que às vezes tinha nas fotografias desse tempo.
A Corredoura está hoje enriquecida pelo restauro da bela Fábrica Real - actualmente, Câmara de Portalegre.

Num dos caminhos da Corredoura, havia um banco de pedra, caiado de branco, arqueado no espaldar. E um grande busto de perfil, de bronze, que soube ser do poeta José Duro, que morreu tuberculoso, jovem e infeliz.
Outros dias imagino-me a subir pelo caminho da Corredoura, de mão dada com a Rosalina, que me levava à escola. Preferia ficar em casa ou ir jogar à bola!

Não gostava nada de ir à escola e, quando passava perto do banco do poeta, de mala às costas carregada de livros e cadernos, sentia-me infeliz, e pensava: "Triste como o poeta, coitadinho!"
A Dona Maria da Alegria, a minha professora, esperava ao pé da porta do quintal,  tinha a respiração ofegante porque sofria bócio. Pelo menos era o que eu ouvia dizer. Tinha uma casa com e a sala de estudo dava para o jardim 
Um dia foi operada e ficou com uma cicatriz muito grande no pescoço, - tão grande que me afligia só de olhar para ela. Eu era amiga dela e fazia-me  pena.

Na memória, vejo as árvores cobrirem-se de folhas amarelas, depois os ramos secos e esticados e os troncos esbranquiçados dos salgueiros. Vejo a chuva miudinha começar a cair.

Depois chegava o Inverno, as folhas caíam todas, as árvores ficavam desprotegidas, despidas das suas folha.  Nessa estação, não íamos à Corredoura : só saíamos para brincar nos dias de sol. Mas continuava a ir à escola de mão dada com a Rosalina. 

Nos dias em que não tinha escola, ficava detrás dos vidros a ver os regatinhos de chuva escorregarem devagar pela janela. Ou, bem  chegada à braseira, ficava a ler - à espera das castanhas assadas que a Florinda fazia para nós.

Depois, vinha a Primavera e as flores brancas, ou cor de rosa, ou de todas as cores rebentavam em botões perfumados: as flores dos limoeiros, das laranjeiras.
Tão parecidos, flores lindíssimas, mas com um perfume ligeiramente diferente.
E o perfume dos lilases. Havia árvores de lilás, na Corredoura, com flores de pétalas de um roxo delicado, muito pequeninas, arrumadinhas em cachos pendentes.
Com a Primavera, voltávamos a ir brincar para a Corredoura...O ritmo das estações era claro e as nossas vidas pareciam "arrumadas" como as cantareiras dos brinquedos.
 a casa amarela

O tempo passa tão depressa. Onde estão hoje essas amigas? E a casa amarela e a toda a gente que lá vivia? Espalhados pelo mundo, alguns desaparecidos, deixam-me saudades desses. O que nós sonhámos as três, naquela casa. Hoje sonhamos ainda? Creio que sim, era impossível não continuar a sonhar. Com os filhos agora, elas já com netos...

imagem da nova Corredoura

E hoje o que resta da Corredoura? O parque da Corredoura está bonito, tem lindas árvores e alamedas no meio da erva - mas tão diferente? 
E o busto do José Duro? O poeta do livro triste a que chamou "Fel".

Disseram-me que o banco foi restaurado, mas ainda não o vi.

Escrevia o poeta, falando do seu livro de versos:

"E o livro que aí vai
É um livro brutal
É um poema a esmo
Pensei-o na rua, olhando toda a gente.

Escrevi-o no meu quarto, olhando-me a mim mesmo."

Berthe Morisot, Menina

1 comentário:

  1. Também não gostava da escola. Preferia as brincadeiras no meu quintal ou na rua, livre e sem preocupações de cópias e contas sem fim.

    Sonhamos tanto, mas os sonhos muitas vezes resultam diferentes. Não importa. O que importa é procurarmos a felicidade e continuarmos a sonhar.

    Gostei tanto de ler.

    Beijinhos e continuação de boa semana:))

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