E
foi assim que o amigo navajo começou
a história prometida da vida dos índios navajo - de que vos falei no meu último “post”.
Estávamos ainda em San Francisco. Hoje, de regresso a casa, parece impossível pensar que foi verdade tudo o que ouvimos. No entanto, sabemos que foi assim que se passou.
Estávamos ainda em San Francisco. Hoje, de regresso a casa, parece impossível pensar que foi verdade tudo o que ouvimos. No entanto, sabemos que foi assim que se passou.
-
Há tantas coisas a contar, começou. Terei coragem? Terão vocês paciência para me
ouvir até ao fim?
-
Nós ouvimos-te com atenção, podes crer!, disse o Ratinho.
-
Sim, interessa-nos saber a tua história! Eu sei muito pouco da história, ainda
estou a aprender com o Ratinho. E com a Jana, claro.
Talvez
imaginasse alguma coisa, para além das casas coloridas de San Francisco, a cidade das flores e da Baía
azul, e das árvores nas florestas que rodeiam a cidade, batidas pelo vento
forte.
Talvez visse as pradarias sem fim, as montanhas altas onde o seu povo e
outros afins viveram. Das quais foram senhores durante milhares de anos – até
terem sido escorraçado por outros povos invasores.
Ou
talvez pensasse mesmo na Grande Marcha
final. E no modo como foram encurralados em reservas, longe das paisagens onde
os antepassados tinham vivido.
-
Não é simples contar a história que se segue. A dos índios Navajo ou Diné, dos Crow, dos Apaches, dos Kiowas e outras tribos de nativos americanos que viveram na
Califórnia. E foram aniquiladas e humilhadas.
Olhou
em volta, a ganhar coragem. Não devia ser agradável lembrar a decadência das
grandes tribos índias. Com as suas tradições, costumes, artes.
-
Eram grandes guerreiros, corajosos. Vencedores de combates duros na conquista
de espaço e na obsessão de defender o terreno das suas caçadas ao búfalo,
animal de que dependia a sua sobrevivência em quase todos os aspectos...
-
Como é que o búfalo vos servia? Era o Ouricinho.
-
O búfalo dava tudo: a pele que depois de seca servia para fazer as tendas, o
vestuário que os protegia. A carne que se podia conservar muito tempo. Os
chifres serviam-nos para fazer utensílios fundamentais...
-
Sim, percebo bem. Facas, pentes...
O
Ouricinho ficou de olhar fixo a apertar as duas patinhas com força, nervoso. O
índio não lhe respondeu, mas sorriu.
delta dos dois rios |
Ficou pensativo e olhou para nós.
- Tenho culpa de ser índio?, perguntou.
E continuou:
- O grande chefe dos Sioux, Sitting Bull, disse: “Deus fez-me índio. Tenho culpa de não ser branco? Sou malvado porque tenho a pele vermelha? Porque sou um Sioux? Porque amo o meu povo? Deus quis que eu fosse índio.”
O
silêncio era grande, ninguém queria interromper. Sentíamos a intensidade
daquele pensamento. Qual a culpa de ter uma pele diferente? E sentimos a recordação transmitida de geração em geração. Como se ouvíssemos os cantos de guerra,
as danças ou as preces ao Deus Manitou.
Sierra Miwok |
- Deus quis que eu fosse índio - repetiu. Havia muitos outros índios perto de nós: os Miwoks que viviam na Sierra Miwok, que vem da palavra
“minwik” que quer dizer ‘povo’ e ‘índios’.
-
Eram muito diferentes de vocês? Ou tinham alguma coisa em comum?, perguntou o Ratinho.
-
Falávamos entre nós a língua utiana,
tal como os Ohlones e outros povos, como os Yurok. Havia
boas relações com estes vizinhos se bem que vivessem mais ao Norte perto de
Sacramento. Mas a cultura e as tradições eram diferentes.
- Os Ohlones foram colonizados muito cedo pelos espanhóis. Foram baptizados e escravizados e obrigados a trabalhar na construção das Missões dos franciscanos, que iam do Novo México até ao Texas.
Respirou fundo.
- Os que se rebelaram e fugiram, dispersos, acabaram por morrer à procura de
outras terras. Os Invernos são gelados. E não encontravam nada para comer.
-
E os Navajos? O que fizeram de
especial para se defenderem?, perguntou a Gatinha.
- Assim
contaram os sobreviventes da marcha aos descendentes que ainda vivem.
Como eu.
-
Sabíamos que ia ser tão dura a chegada como o fora a viagem. Não tínhamos ilusões. Estávamos no Vale do Rio Pecos, longe de tudo o que amávamos, destinados a ficar para sempre. Sofremos muito. Tudo ali era estranho e agreste.
- Sofreram?
- Sim, todos. A família do chefe Manuelito, por exemplo, viu mudar muito a situação que antes tinha.
-
Falavam uma língua diferente. Tinham sido famosos guerreiros e nós sabíamos, havia respeito mútuo, mas a cultura e as tradições eram outras. E cada um
tinha de lutar pelos seus e defendê-los. Os Invernos gelados, sem fogo para nos aquecermos, não perdoavam. E
pouco havia para comer.
-
Nós fizemos guerra aos espanhóis e aos mexicanos, nos finais do século XVIII e
mais tarde ainda. Lutando pela nossa terra!
-
Ah! espantou-se o Ouricinho. Foi horrível, não foi? Eles tinham espingardas!
-
Sim, muita gente do meu povo morreu, mas houve uma coisa positiva. Os espanhóis
traziam cavalos, ovelhas que nós lhes tirámos.
-
A nossa terra. Como se lamentava Gerónimo, chefe dos Apaches. E citou, de cor: “Amo este clima, esta terra. É a minha terra, a minha casa, a terra do
meu pai e querem expulsar-me? Quero acabar aqui os meus dias...”
indios Sioux |
-
Os Navajos também amavam a sua terra. A história deles é dolorosa. Queriam a terra que sempre fora deles.
Índio "navajo"
|
- E depois como foi? Conta...
- Houve um contrato com o Governo americano, em
1846. Depois de guerras e matanças de lado a lado, depois das aldeias índias destruídas e das culturas queimadas, puseram-nos numa reserva.
um chefe Navajo e um nativo americano |
Interrompeu-se um momento e disse ao Ouricinho.
-
Oh, Ouricinho, tu és ingénuo e bom. Eu conto se tu me queres ouvir. Houve tantas lutas depois disto! Os problemas não
se resolveram, ficaram até piores se isso for possível.
- Mas como pôde ficar pior a vossa situação? Já era tudo tão mau!
Kit Carson o “caçador de índios” |
-
Gostava que ouvissem esta passagem de um livro que fala da nossa tragédia.
E tirou um molho de papéis dum bolso. Leu.
“Em 1864, o General Carson, Kit Carson o
“caçador de índios” lança o assalto final ao povo Navajo. Destruição por toda a
parte onde o exército passa, com a intenção de apagar todos os vestígios do
modo de vida dos Navajo. Tendas queimadas, gado morto, os campos plantados
destruídos. Os navajos que se renderam, foram levados para ‘Fort Canby’ e os
que resistiram foram mortos. Os que sobreviveram ao ataque e fugiram, morreram
de fome e com as temperaturas geladas do Inverno.”E tirou um molho de papéis dum bolso. Leu.
Calou-se,
sem força. Até o Ratinho, tão corajoso, tinha lágrimas nos olhos e eu própria chorava dentro de
mim.
General James Henry Carleton |
- Sim, o pior foi quando o exército dos Estados Unidos, chefiado
pelo General James Henry Carleton e com a ajuda do General Kit Carson, nos escorraçou de Fort Canby. Kit Carson odiava os índios. Quando nos atacava a frase preferida era: "Rendição ou morte!"
Fort Canby |
Percebemos
que se arrepiara ao recordar esta figura. Encheu o peito de ar e disse:
- Sim, o pior veio mais tarde, com as nossas forças destroçadas, os nossos melhores guerreiros mortos, então, em 1864, o exército levou-nos para longe,
para o Fort Summer, no Bosque Redondo.
Fort Summer |
Perguntou:
- Já
ouviram falar da "longa marcha"??
-
Não, nunca.
Ouvira falar de perseguições, de destruições dos acampamentos e aldeias
índias mas não me lembrava da “Marcha”,
desconhecia mais essa provação.
-
Eu conto. Na Primavera de 1864, vários grupos de navajos são conduzidos pelo exército dos USA para fora das suas
terras do Arizona e do México oriental. A Marcha empurrou muitos navajos para a
morte.
- Isso foi um abuso, uma violência!, indignou-se o Ratinho.
–
Sim, amigo, foi. Muitos foram ficando para trás, pelo caminho. Os mais frágeis,
as crianças e as mulheres grávidas não aguentavam. Os meus avós
seguiram e sobreviveram e contaram aos descendentes:
“As mulheres grávidas ficavam para trás e acabavam com um tiro na
cabeça”
-
E os velhos? Os doentes?, perguntou a medo a Gatinha japonesa.
-
O fim era o mesmo – um tiro. Se conseguiam fugir, cedo os gelos e a fome
davam cabo deles.
- Havia muita crueldade nos soldados e oficiais. Era como se fossemos gado a ser levado, a pé, cerca de 400 milhas. Íamos para
um lugar ignoto, sem saber a que distância, quanto tempo ia durar. Nada nos
disseram.
durante a "marcha" |
Pegou nos papéis que guardava ainda na mão. Leu devagar.
- Vou ler mais um pouco dos documentos que trouxe comigo que explicam
melhor tudo.
“Nenhuma
simpatia ou remorso tiveram para este povo. Nenhum respeito – nunca foram
informados para onde iam, onde seriam recolocados e qual a distância para
chegar a esse ponto. A distância era
cruel mas o facto de não terem recebido qualquer tipo de ajuda por parte dos
soldados foi devastadora para os mais frágeis”.
sobreviventes |
Pensava o que os outros amigos deviam também estar a pensar : a dor que teriam tido, mal alimentados, exaustos, vestidos sem defesas para o frio, sem preparação para resistir a uma viagem tão longa.
-
E depois, navajo? O que aconteceu? O Ouricinho estava sobre brasas, vermelho e furioso.
-
O final da história dos navajos é
triste e trágico, disse o Ratinho. Eu sei.
- Sim, tempos muito difíceis para os navajos. Fomos conduzidos para um território na região atravessada pelo Rio Pecos. Caminhámos longos meses com o gelo da noite e com o sol
abrasador da manhã. Atravessámos três rios: o rio Puercos, o rio Grande e o rio Pecos.
-
E quando chegaram, o que aconteceu?
A família do chefe Manuelito em Fort Summer
- Sofreram?
- Sim, todos. A família do chefe Manuelito, por exemplo, viu mudar muito a situação que antes tinha.
- Conta mais, por favor.
- Os Apaches, nossos inimigos de sempre, já estavam encerrados no tal Fort Summer, em Bosque Redondo. Era uma situação grave para nós e para eles.
-
E o que aconteceu? Lutaram?
-
Houve conflitos grandes porque não havia lenha que chegasse para nos aquecermos todos. Nem comida. Havia mulheres e crianças que morriam de fome. Matava-se por um
pedacinho de pão.
O Ratinho insistiu:
O Ratinho insistiu:
- Os Apaches eram muito diferentes de vocês? O que tinham em comum?
o chefe Apache Crazy Horse |
- Como acabou? Conta! Não pode ter acabado mal! Não é justo!
O
Ouricinho sofria, preocupado. Queria ver um final feliz.
- Uns anos mais
tarde foi assinado um "acordo" - entre os Navajos
e Oficiais americanos - que criou uma Reserva no coração da “navajoland”.
Depois de anos de prisão no Bosque Redondo, o nosso Povo voltou à sua terra, ao Território Índio que lhe pertencia.
Navajos, 1902
Depois de anos de prisão no Bosque Redondo, o nosso Povo voltou à sua terra, ao Território Índio que lhe pertencia.
Festa de "navajos" nos dia de hoje
|
O pequeno índio calou-se. O Ratinho e o Ouricinho
tinham um “nó” na garganta.
- Tinha de acabar bem! Eu sabia!
O Ouricinho parecia aliviado. Todos o estávamos.
Deu uma gargalhadinha contente e continuou:
- Ainda não sei o teu nome, amigo índio. Qual é? Chamamos-te sempre "navajo"!
O índio riu-se e brincou com o Ouricinho:
- Ou "navajito", não é? O nome que escolhi é Zah Peterson...
- Como o cão da Jana, o Zac?
- Não. Zah como o Dr. Peterson Zah, o meu herói. Que foi Presidente dos Navajos e é um grande homem, herdeiro dos heróis guerreiros navajos.
O Ouricinho parecia aliviado. Todos o estávamos.
Deu uma gargalhadinha contente e continuou:
- Ainda não sei o teu nome, amigo índio. Qual é? Chamamos-te sempre "navajo"!
O índio riu-se e brincou com o Ouricinho:
- Ou "navajito", não é? O nome que escolhi é Zah Peterson...
- Como o cão da Jana, o Zac?
- Não. Zah como o Dr. Peterson Zah, o meu herói. Que foi Presidente dos Navajos e é um grande homem, herdeiro dos heróis guerreiros navajos.
O Ratinho e o Ouricinho abraçaram-se ao índio Zah, quase sem o deixarem respirar. Ele, comovido, baixara os braços para responder ao abraço. Tinha lágrimas nos olhos. E assim acabou a história do nosso amigo Navajo...
Mas não se preocupem, vou continuar a falar dos ameríndios! Os nativos americanos, os que já lá estavam...
***
Hoje em dia,
muitos navajos continuam a viver nas Reservas, a trabalhar para manter
viva a Cultura dos antepassados. Reúnem-se, falam da antiga tradição.
Dançam, cantam, em festas e representam peças de teatro ou "quadros" que recordam velhas histórias. "navajos".
E tentam recuperar a língua que falavam, aprendendo-a e ensinando-a - a língua utiana e as outras línguas que falavam com outras tribos.
Em
2005, foi criado um Memorial que “recorda
solenemente os sombrios dias de sofrimento de 1863 a 1868, quando o o Exército
dos Estados Unidos perseguiu e prendeu 9.500 Navajos e 500 Mescaleros Apache.”
Durante,
pois, a Campanha Militar da "perseguição étnica" dos Índios Navajos e Apaches Mescaleros,
realizada a partir de 1860.
***
NOTA
(*)
Quero, porém, contar que o amigo navajo
do Ratinho e do Ouricinho foi “feito”
por uma índia descendente de “navajos” cujo trabalho é dar vida a estes “bonecos”. Sim, o amigo navajo é um boneco.
"A artista, Jane Tapeha, vive numa Reserva Índia e faz esculturas, em madeira leve, pintadas com as cores vivas dos índios.
Existem cerca de 250 tipos diferentes de bonecos que representam as coisas ensinadas às crianças das tribos, desde sempre.
"A artista, Jane Tapeha, vive numa Reserva Índia e faz esculturas, em madeira leve, pintadas com as cores vivas dos índios.
Existem cerca de 250 tipos diferentes de bonecos que representam as coisas ensinadas às crianças das tribos, desde sempre.
Na cultura índia, o boneco
(doll) tinha a função de educar as meninas e os meninos índios. Pode dizer-se que eram
uma “ferramenta” de ensino, de aprendizagem religiosa e cultural.
Cada boneco teria uma função específica e acreditava-se que eram o espírito de uma animal, pássaro, planta, um objecto ou uma pessoa. Eram entidades benéficas que tinham vivido noutros tempos entre os homens para lhes ensinar actividades básicas da vida como caçar, fazer utensílios, armas e curar.
Tinham, ainda, o poder de restaurar a harmonia de um lar."
NOTA 2
As fotografias foram retiradas de "sites" sobre os índios ameríndios, cuja cedência agradeço
Cada boneco teria uma função específica e acreditava-se que eram o espírito de uma animal, pássaro, planta, um objecto ou uma pessoa. Eram entidades benéficas que tinham vivido noutros tempos entre os homens para lhes ensinar actividades básicas da vida como caçar, fazer utensílios, armas e curar.
Tinham, ainda, o poder de restaurar a harmonia de um lar."
NOTA 2
As fotografias foram retiradas de "sites" sobre os índios ameríndios, cuja cedência agradeço