segunda-feira, 23 de dezembro de 2019
domingo, 22 de dezembro de 2019
A propósito de Cartas... e de José Régio
Há 50 anos, neste dia, 22 de Dezembro do ano de 1969, morreu José Régio. Fecham as "comemorações do 50º aniversário da sua morte? Creio que ele e a sua obra serão sempre "comemorados."
Encontrei
o rascunho (de inícios de 1968) e uma carta que enviei a José Régio pedindo-lhe
ajuda para a minha Tese.
Frequentava
o último ano do Curso de Filologia Românica e escrevia o relatório final para
apresentar no Seminário, preparativo da Tese, que eu intitulara “Temática
social nos escritores da ‘presença’". Escrevi-lhe, então:
“Querido Amigo,
Venho incomodá-lo. Venho
pedir-lhe ajuda para a minha tese. Escolhi a “presença” para a minha tese de
Licenciatura, dirigida pelo Professor Jacinto do Prado Coelho. Penso intitulá-la
‘“A temática social nos ficcionistas da “presença”’.
Haveria, com certeza, muitíssimas
coisas interessantes a tratar, mas parece-me que este ponto tem sobre outros a
vantagem de ainda não ter sido tratado (penso que o não foi até agora) – daí
julgar que pode ter interesse.”
E
a carta terminava, mais ou menos com esta frase:
“Eu conto com o meu Amigo para me
ajudar”.
Podia ser ingenuidade minha, mas a verdade é que pude sempre contar com ele. Era isso mesmo que eu sentia: confiava cegamente nele e sabia que me iria ouvir. Naquele momento e sempre.
Podia ser ingenuidade minha, mas a verdade é que pude sempre contar com ele. Era isso mesmo que eu sentia: confiava cegamente nele e sabia que me iria ouvir. Naquele momento e sempre.
Quantas
vezes, na lonjura do tempo, ouço a sua voz pausada e nítida. Posso
imaginá-lo a passear na sala de aula, para trás e para diante, enquanto nos
ditava uma retroversão para francês, cheia de construções difíceis.
José
Régio - ou o Dr. Reis Pereira - viveu muito próximo de mim, na minha cidade: eu
na Rua dos Canastreiros e ele na Boavista – que não ficava muito distante.
Régio
não era apenas o meu professor do liceu - era, também, o amigo do meu pai desde
que tinha chegado como professor do liceu a Portalegre e à casa que encontrou “como se fora feita para morar nela”.
Cresci
a “cruzar-me” com ele não só nas aulas, ou nas imediações do liceu, mas também
nos Cafés, nas esplanadas de Verão, e em casa dos meus pais. Ou em casa dos meus avós, na Serra.
Conhecê-lo
teve uma importância que só mais tarde compreendi. Ajudou-me a “crescer”, indicou-me
os “marcos” que delimitam e assinalam a
nossa passagem pela vida – os marcos de que fala na “Lição inútil ou Carta a um
Juvenil Individualista” (nº 14-15 da “presença”, 23 de Julho de 1928).
Posso
ouvir a sua voz, apesar de não ser directamente a mim que se dirige mas a mim, também,
enquanto jovem que era.
“Prometi escrever-te – lembras-te? – no
momento em que precisasses de mim. Chegaste à idade em que já se dão passos que
decidem. (...) Não creio (nem quero) que as minhas palavras te decidam qualquer
coisa. (...) Mas crê, tenho-te observado. Sei que tens em ti possibilidades
várias e que és dum estofo rico.
Assim ouso erguer-me na
encruzilhada que te disputa: (...) como um marco de pedra, digo-te: “daqui a
tal parte, tantos quilómetros...” Talvez isso te ajude a escolheres um dos teus
muitos caminhos da encruzilhada. Um dos teus muitos. Que também te não
aconselho a escolher qualquer um – mesmo bom – que venha de fora.”
Ajudou-me
a reflectir na possibilidade da escolha, de fazer isto e não aquilo, a sentir - do modo que é o meu - aquilo que é o Bem, o Belo, o Único, o Essencial do que acontece nesta nossa
breve passagem pelo cosmos.
Naquele tempo, pedi a
sua ajuda, confiante. A resposta veio passado um certo tempo e desse atraso se
desculpava:
“Já recebi duas cartas tuas a que
seria muito penoso não dar sequer umas palavras de resposta. Mas pouco te posso
ajudar: Estou cheio de trabalho, “não chego para as encomendas”, tenho muitas
vezes de me fazer duro; e creio que já não sou exactamente o mesmo doutros
tempos. (...)
Quanto ao plano que me apresentas
para a tua tese, parece-me excelente. Terás de realizá-lo conforme as
conclusões a que chegues tu própria, -pois mais vale um trabalho ainda
incompleto mas pessoal do que um aparente esgotamento do assunto à custa
de este, de aquele, de isto, de aquilo…
Deves ler e reler a presença:
Nos seus artigos de teoria está a sua doutrina. E ler ainda, claro, as obras de
criação artística dos seus teóricos ou não teóricos.” (Vila do Conde, 5/3/68)
Trocámos cartas durante um certo tempo, pouco mais de um
ano, e eu guardo 5 cartas e os dois cartões que me escreveu. E
a ajuda – que ele considerava mais “psicológica” do que outra coisa – continuou.
Em 27 de Novembro de 1968, escreveu:
uma bela "Pietà", na Casa de José Régio
“Se a minha carta, deficiente
como era, te pôde ser de algum auxílio psicológico, até comigo mesmo fico um
bocadinho satisfeito.
Quando quiseres ou puderes
enviar-me a cópia do trabalho que apresentaste, com afectuosa curiosidade o
lerei. E alguma coisa te direi a seu respeito, já que assim o desejas.
Quando quiseres “voltar a
incomodar-me”, (sirvo-me da tua linguagem, que não poderia ser a minha…) só
terei nisso prazer.
Numa das últimas cartas, em resposta ao meu entusiasmo pela
leitura de “A Velha Casa”, escrevia:
“(...) escreveste uma carta
bastante longa, que eu sinceramente gostei de ler por vários motivos.... Um
deles é que me falavas d A Velha Casa com um entusiasmo que naturalmente
me foi muito grato. Considero A Velha Casa uma obra...(ousarei
escrevê-lo?) importante não só na minha produção como até na produção literária nacional.
Todavia, exceptuando aqueles raros leitores que, se gostam de entrar nessa
velha casa gostam a valer, - essa obra em cujo sexto volume trabalho ainda foi
muito pouco lida. Lida – como deve sê-lo.
(...) Já vês como gostei de que
tivesses gostado de A Velha Casa e da convivência com os seus
habitantes.” (Vila do Conde, 5/5/69)
Seria
um bom assunto a tratar: este desamor
que ele sentia, por parte dos outros, à sua prosa. E o esquecimento que a sua prosa não merece.
Ler
“A velha casa” foi uma aventura enriquecedora em que eu senti “pulsar” o coração
do autor, o seu amor pelas personagens. A Maria Angelina, a Clara, o Pedro
Sarapintado e o protagonista, Lélito são pessoas vivas que poderia encontrar e
com quem teria prazer em falar, trocar ideias, perguntar coisas.
Cinco volumes cheio de gente viva, de sonhos e de desespero. De desgostos e desilusões. E expectativas. Como é próprio da condição humana, em qualquer lugar do mundo.
Também as suas Novelas e Contos são extraordinárias de humanidade e compreensão.
Cinco volumes cheio de gente viva, de sonhos e de desespero. De desgostos e desilusões. E expectativas. Como é próprio da condição humana, em qualquer lugar do mundo.
Também as suas Novelas e Contos são extraordinárias de humanidade e compreensão.
José
Régio morreu no dia 22 de Dezembro de 1969, faz hoje exactamente 50 anos.
A
minha amizade e admiração continuaram, vida fora. Com ele e com os seus livros, aprendi. Régio foi com certeza uma das pessoas de quem mais senti a companhia (e a falta)- enquanto
fui crescendo e aprendendo a viver a vida.
Podia sempre ouvi-lo. Bastava reler a “Carta a um Juvenil Individualista”:
“Prometi escrever-te – lembras-te? – no
momento em que precisasses de mim. Chegaste à idade em que já se dão passos que
decidem. (...) Não creio (nem quero) que as minhas palavras te decidam qualquer
coisa.”
Sabia que estava
“lá” quando eu precisava e, mesmo que não dissesse nada, “sentia” a sua presença.
Ajudou-me
a partir “como ave no ninho” e a
escolher a minha vida.
A
tal tese nunca foi acabada. Quando José Régio morreu, deixei de me interessar
por ela. Começara a trabalhar no liceu de São do Estoril, tinha os meus filhos
e outra vida para continuar.
“Por um momento, as suas mãos ali
pousaram,
Como aves no ninho.
Depois abriram-se, e voaram.
Saberão o caminho?”
Fecho
com estes versos de um poema (1) de que gosto muito.
Até
sempre, grande poeta, meu professor e amigo.
(1) Poema intitulado “Voo”, in Cântico
Suspenso, Portugália Editora, Lisboa, Novembro 1968
quarta-feira, 18 de dezembro de 2019
segunda-feira, 16 de dezembro de 2019
VIRGINIA WOOLF, 'O FAROL' E OUTRAS COISAS
Releio “Rumo ao farol”, agora em inglês (To
the Lighthouse, 1928). A primeira edição sai, em 1928, na editora Hoggarth que Virginia e Leonard Woolf dirigiam. A capa é da irmã, Vanessa Bell. Vou lendo mais atentamente - em inglês leio
mais devagar.
"O Farol" atrai-me e vou
seguindo a evocação das pessoas, com a grande visibilidade que a autora lhes dá. O modo como as descreve e as ouvimos falar, as cores, nítidas, vivas ou assinalando as luzes e sublinhando as sombras, dentro e no exterior das personagens, é notável.
O mar e as ondas – que a fascinam e sempre fascinaram- na tranquilidade e na turbulência e o farol, sentinela luminosa, parecem viver para nós, contemplamo-los ao mesmo tempo que ela.
Do azul vivo à cor rosada do por-do-sol, Os céus - têm tons de aguarelas, são aguadas que vão mudando as nuances e variam conforme o momento do dia ou conforme os sentimentos ou a emoção das personagens.
O mar e as ondas – que a fascinam e sempre fascinaram- na tranquilidade e na turbulência e o farol, sentinela luminosa, parecem viver para nós, contemplamo-los ao mesmo tempo que ela.
Do azul vivo à cor rosada do por-do-sol, Os céus - têm tons de aguarelas, são aguadas que vão mudando as nuances e variam conforme o momento do dia ou conforme os sentimentos ou a emoção das personagens.
Sente-se a
angústia da passagem do tempo, da ausência e da morte. A história é simples: uma família - os Ramsey- reúnem-se na casa de campo, em férias, com amigos. A casa fica situada perto do
farol.
Todas as manhãs a ideia é preparar a "ida ao farol" - que se vai arrastando durante todo o tempo de férias, sem nunca se concretizar. O passeio não se realiza. O farol é possivelmente um desejo nunca realizado.
Mrs. Ramsay, a protagonista (?) passa, entra e sai e prende-nos aquele movimento maquinal, certo, idêntico, cheio de afazeres, de todos os dias.
Depois temos as tensões entre os personagens. As relação complexa entre os esposos, ele professor de filosofia cheio de dúvidas sobre
a própria importância, que aguarda sempre a opinião e aprovação da mulher.
Reencontramos no romance as tensões e as 'oposições' que a autora gosta de explorar: a mulher e marido; a separação e a conexão; o real e o fantomático - a palavra fantasmas (“ghosts”) aparece inúmeras vezes ao longo do livro.
As atitudes das personagens podem ser paradoxais e a própria imagem do farol é "vista" de modo diferente, por cada uma delas
Anos mais tarde, dez anos para ser exactos, no regresso à casa perto do farol, o mesmo James vê-o sem a imaginação que tinha em adolescente: para ele, é agora, apenas, "uma torre estreita e alta às riscas brancas e pretas".
Virginia Woolf por Vanessa Bell
Sem a emoção da infância - o farol era 'realmente' a "torre prateada" que imaginara na infância, ou "a torre "às riscas brancas e pretas", sem o fantástico de antes - como ele o via agora?
Virginia Woolf aconselhava aos que pretendiam ser "escritores", a sinceridade, a verdade, o trabalho constante. Em "L'art du roman" -livro extraordinário- escreve:
No que contava não havia assuntos proibidos ou coisas escondidas. Escrevia em L'Art du Roman, requerendo essa liberdade de dizer a verdade, seja ela qual for: ‘Sempre que virem um letreiro a dizer
'proibido passar', passem logo, não parem."
É um livro difícil de seguir, por vezes, exige muita atenção. Cruzam-se ideias, trocam-se os momentos, o tempo é incerto, a lembrança ora pertence ao passado ou ao presente, flui.
A sua escrita segue "o fluxo de consciência liberto, que flui ao acaso, cruzando vários tempos, na memória do passado e na actualidade do hoje”. Perdemos por vezes a noção das diferenças porque há uma interligação entre todas, conforme as recordações afluem e se associam e se repelem.
Um livro sério, como todos os livros de Virginia Woolf que aconselho. Existe uma edição portuguesa com uma boa tradução do escritor Mário Cláudio.
“Escrevam
todos os dias, escrevam livremente; mas comparando sempre o que escreverem com o
que os grandes escritores escreveram. É humilhante, mas é essencial. Se
quisermos conservar, criar, é o único meio.”
Escrever sempre sobre o que sentia e conhecia - do que era "seu" - e, disso, só isso queria escrever. Porque "o que importa aos outros", aos que lêem, pensava, "é a nossa verdade". No que contava não havia assuntos proibidos ou coisas escondidas. Escrevia em L'Art du Roman, requerendo essa liberdade de dizer a verdade, seja ela qual for: ‘Sempre que virem um letreiro a dizer
'proibido passar', passem logo, não parem."
É um livro difícil de seguir, por vezes, exige muita atenção. Cruzam-se ideias, trocam-se os momentos, o tempo é incerto, a lembrança ora pertence ao passado ou ao presente, flui.
A sua escrita segue "o fluxo de consciência liberto, que flui ao acaso, cruzando vários tempos, na memória do passado e na actualidade do hoje”. Perdemos por vezes a noção das diferenças porque há uma interligação entre todas, conforme as recordações afluem e se associam e se repelem.
Um livro sério, como todos os livros de Virginia Woolf que aconselho. Existe uma edição portuguesa com uma boa tradução do escritor Mário Cláudio.
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