sábado, 22 de agosto de 2020

Shulamit Lapid e o caminho para Bersheva

Recebi um livro muito interessante. Gosto muito de ter prendas como qualquer pessoa de bom gosto -e mimosa. 

Quando era miúda lembro-me de ir chorar para um cantinho quando as minhas irmãs faziam anos - e eu não recebia nada. Até que um dia a minha mãe viu e a partir daí tive sempre uma prenda no dia dos anos delas, uma em Março e outra em Junho e eu em Outubro! 

Assim juntei uma colecção de lencinhos de assoar que descobri há dias numa caixa escondida no alto de um armário. Muitos datavam da minha  infância.

A Gui que me conhece bem e sabe que temos gostos parecidos nas leituras mandou-me o livro da Shulamit Lapid, um livro policial chamado “Mecomon” ou, melhor, em português: “Da nossa correspondente da Gazeta do Sul"

Escritora israelita Shulamit Lapid nasceu em 1934 nos arredores de Telavive durante a era do Mandato Britânico.

O pai que viera da Transilvânia para Israel e era um tradutor e jornalista conhecido, um dos fundadores do jornal Maariv, jornal da tarde ainda hoje publicado em Israel.

Licenciada na Universidade de Jerusalém em Estudos do Médio Oriente e em Literatura Inglesa, é uma personalidade conhecida dos meios literários e jornalísticos e activista feminista.

Casou com Yosef “Tommy” Lapid (1931-2008), apresentador televisivo, jornalista e político ligado ao Partido Shinui (‘Partido da Mudança’ de tendência liberal) foi Ministro da Justiça.

Lapid é um judeu originário da Hungria cuja família foi enviada para o Ghetto de Budapest e dali deportada para um campo de concentração. Apenas ele e a mãe sobreviveram – salvos por Raoul Wallenberg (1) – e foram viver para Israel em 1948.

Raoul Wallenberg

No livro Gai Oni (“Valley of Strenght” ou “O vale da força”), um dos seus primeiros livros, Shulamit conta a história dos primeiros imigrantes vindos da Europa Central, no século XIX, para Israel.

Em 2010, o realizador Dan Wolman faz um filme baseado no livro Gai Oni que no fundo refere a criação do Kibbutz de Rosh Pina.

Num outro livro, intitulado “Havat Haalamot” (“A quinta das donzelas”), Shulamit vai descrever a realização do projecto especialmente dedicado às mulheres. 

Um lugar onde aprendem a ser iguais aos homens a trabalhar a terra, tarefa essencial para o desenvolvimento da agricultura e manutenção da sobrevivência nas unidades de produção agrícola, o  Kibbutz.

judeus durante o Mandato Britânico e Kibbutz.

Continua a escrever e -entre outros assuntos- muitos livros para crianças e jovens.

E um dia decide dedicar-se à literatura policial e de espionagem, criando uma personagem feminina Lizzy Badihi. 

Shulamit é apreciada e ganhou o Prémio Stimatzky, nome da mais famosa cadeia de livrarias de Israel.

Esta personagem vai entrar em todos os seis romances “thriller”. Não posso dizer que seja uma heroína como geralmente se imagina – elegante, viva, figura agradável. 

Lizzy é apenas uma criatura normal, de cerca trinta anos de idade, não muito alta, nada bonita e com uns pés enormes “que faziam lembrar as barbatanas de uma foca” – cruel descrição  da autora – e quando saía à noite usava um bâton bem vermelho e “uns brincos de plástico muito grandes pendurados das orelhas”.

O que estou a ler, na tradução italiana, é o primeiro de uma série de seis e saiu em 1989. A heroína, Lizzy Badihi, é jornalista num jornal de Beersheva, o “Hazman Darom” (O tempo do Sul, ou a Gazeta do Sul).

Beersheva é a cidade mais importante da parte Sul de Israel, perto do deserto do Neguev, a Princesa do Neguev.

Ao contrário do que os outros pensavam, Lizzy insiste teimosamente em resolver mistérios que ninguém queria que resolvesse. Arrastando os sapatos grandes, segue em frente.

Lago Tiberíades

Quando estava em Telavive, onde vivemos cinco anos, lembro-me de que ouvia falar de Yosef Lapid na televisão ou nos jornais - e o mais curioso é não sabia que moravam na rua em que nós morávamos, a saudosa Rehov Lassale.

 

legenda: Susanne Heffez, eu, o meu Zac, a Pizzy e o Gelsomino

Talvez até em conversas com a inesquecível amiga, Susanne Heffez que, adolescente, estivera com a família num campo de trabalho e, depois, no campo de concentração de Auschwitz. Tive a sorte de a conhecer - era uma mulher admirável, culta e corajosa - nunca a esquecerei agora que já não existe.

a nossa casa na Rehov Lassale

Nós, perto do Hayarkon e da Promenade que segue ao longo da praia até Jaffa, e eles perto da esquina da Lassalle com a Ben Yehuda.

Para já estou a gostar!

Em tempos de “coronavirus” nada melhor do que ter um bom policial ao lado. Faz esquecer muita coisa desagradável. Depois digo como é o livro.

 ***

(1(1) Raoul Wallenberg foi um arquitecto e diplomata sueco que, em Budapeste, durante a Guerra salvou dezenas de milhares de judeus húngaros, na Budapeste ocupada pelos Nazis.

 

https://pt.qwe.wiki/wiki/Shulamit_Lapid

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

SOBRE UM NÚMERO DA REVISTA ' A CIDADE' DEDICADO A RÉGIO E D’ASSUMPÇÃO


Ofereceram-me há dias uma preciosidade que não conhecia: o número duplo da revista cultural ‘a cidade’, de Portalegre (que saiu com a data de Outubro/Janeiro de 1989-90) é dedicado a José Régio e ao pintor Manuel D'Assumpção.
Uma homenagem no momento em que passavam 20 anos sobre a morte de ambos – o ano de 1969. Já em 1984 a revista " a cidade" dedicara um número a José Régio na passagem dos quinze anos da sua morte.
Apresenta colaboração muito interessante de vários autores como David Mourão Ferreira, Eugénio Lisboa, Matilde Rosa Araújo, Joaquim Pacheco Neves, António Martinó Coutinho, Fernando J.B. Martinho e António Ventura - portalegrenses.
E o que mais me sensibilizou nesta oferta foi ter sido feita por uma grande amiga, a Luisinha Saraiva, amiga desses anos passados - que fazia parte do "grupo cultural" que existiu em Portalegre em redor de Régio. 

José Régio (1901-1969) chega a Portalegre em 1929 para ser professor das disciplinas de Português e de Francês, no Liceu Mouzinho da Silveira - onde vai leccionar até à aposentação em 1965. 
Portalegre, aguarela de João Tavares

Relaciona-se com alguns colegas, entre eles João Tavares, aguarelista, de cuja filha mais nova vai ser padrinho, chamando-lhe Letícia (a princesa Letícia de "O Príncipe com orelhas de burro", saído em 1942.
Conhece Feliciano Falcão no ano 1941 quando, num artigo de "A Rabeca", este defende José Régio de um ataque baixo que lhe haviam feito. Data desse ano a amizade que durou toda a vida.
Faziam parte desse grupo amigos de Régio e do meu pai. O grupo reunia-se quase todas as noites de Verão na esplanada do Café Central ou na esplanada debaixo de um cedro gigante no Rossio a que chamavam apenas "O Cedro". 

Mais tarde, o ponto de encontro passou a ser o Café Facha, ao pé do Rossio. Houve, ainda, uns encontros musicais ligados ao grupo Amicizia. 
De Inverno, era frequente haver saraus musicais em casa de Feliciano Falcão. o. Ao grupo pertenciam igualmente o amigo engenheiro Ventura Reis - um grande coração - e os pintores Arsénio Ressurreição, Renato Torres e outros.  Muitos jovens de passagem por Portalegre onde faziam a tropa, como por exemplo - e em datas muito diferentes -  David Mourão-Ferreira ou Eugénio Lisboa.
José Régio e amigos: o Capitão Saraiva, a Luisinha, José Régio, Dr. Adelino Santos, Feliciano Falcão, Arsénio da Ressurreição e Eugénio Lisboa

José Régio era o pólo de atracção, o Mestre e  ao chegarem à cidade alentejana os interessados pela Cultura sentiam necessidade de o conhecerem.
Luísa Saraiva e o marido - o Coronel Carlos Saraiva recentemente falecido - nessa altura jovem capitão - viveram em Portalegre longos anos. 
Eram jovens, belos e cheios de vida, com os quatro filhinhos (com idades entre os 3 e os 7 ou 8 anos) com os quais eu, adolescente, adorava brincar. O destino não lhes foi suave. A tragédia rondou à volta desses meninos, dos quais hoje resta apenas um.
A revista tem, pois, um sabor muito especial e afectivo para mim. Foi o neto da Luisinha e do Coronel Saraiva quem ma veio trazer pessoalmente, a pedido da avó. 
José Régio nos anos 40
e nos anos 50


Manuel D’ Assumpção nasce em Lisboa em 24 de Abril de 1926 mas vai com 8 anos viver para Portalegre onde o pai vai exercer a profissão de fotógrafo. Morre em Lisboa, suicida, em 1969, com apenas 43 anos. 
Em Portalegre dá-se com alguns dos amigos do grupo de José Régio. Feliciano Falcão, por exemplo, apoia-o, escreve-lhe, incentiva-o.
 
Miguel Barrias

Lida também com o pintor Miguel Barrias, pintor nascido no Porto (1904 1955), que viveu em Portalegre nos anos 40. Foi professor de Desenho da Escola Técnica. Não sendo professor dele, ensinou-lhe técnica com certeza – queria ajudar, reconhecia o valor dele.
Hoje as suas obras estão espalhadas nem se sabe bem por onde - e também no Museu da Fundação Calouste Gulbenkian.


Em Portalegre encontrou muita gente que o respeitou e amigos que o acompanharam. São também eles que o recordam aqui, e não só os críticos de arte
Nicolau Saião, poeta e figura conhecida em Portalegre, escreve sobre Manuel D'Assumpção.
Carlos Garcia de Castro, por exemplo, que nos fala com amizade do jovem pintor e das suas aventuras de juventude, dando a volta à cidade na sua Lambretta
Recordam os passeios pela Serra de São Mamede ou, nos arredores da cidade, as festas populares.

Conta histórias que nunca se saberiam - da vida pessoal e familiar, enriquecendo o volumezinho. Histórias que dão a saber coisas da  vida do jovem, dos divertimentos, namoricos, das dificuldades monetárias que teve - e da sua dignidade- dos lugares por andava, onde vivia e pintava.
Também fala das relações difíceis com o pai que o levaram a alugar um quarto na Pensão Castro que pertencia ao pai de Carlos Garcia de Castro. O pai, o Sr. Rosiel, era um bom fotógrafo, que tirara um curso de Pintura mas que tivera de seguir com um Curso de Fotografia para viver e o seu estúdio de fotografia era o melhor da cidade. 
O pai estudara a pintura clássica e não entendia nem aceitava a pintura -surrealista e, depois abstracta- de Manuel não as compreendia nem o levava a sério.
D’ Assumpção decide partir para Paris em 1947, onde vai ser aluno de Fernand Léger  (ver pintura abaixo)-  e estuda arte com Jean Cassou, no Louvre. E onde conhecerá a pintora Vieira da Silva.
Fernand Léger 

Em Paris, foi amigo do poeta António Maria Lisboa cuja amizade o acompanhou até à morte do poeta, em 1953, deixando-o profundamente chocado.
  D’ Assumpção
O resto vem por si, o apreço de Maria Helena Vieira da Silva e Arpad Zsenes – e o apoio de tantos outros.
Manuel D’Assumpção
 
Viveu a loucura da juventude, pintou, morreu jovem mas nunca cresceu.
O último quadro que Manuel pintou,  em 1955, intitula-se “Último bailado” Homenagem a Paul Eluard (1895-1952) e esteve muitos anos pendurado no Café Plátano em Portalegre. Sei que o meu pai, Feliciano Falcão lhe emprestou livros do poeta Éluard nessa altura.
Manuel D'Assumpção, O "Último bailado", 1955

Muitas vezes os amigos de Portalegre o apoiaram e fizeram companhia. Contava também com o apreço de pessoas da terra que o admiravam e o ajudaram, emprestando-lhe livros de pintura ou de poesia, aconselhando, dando incentivos.

 “Que poderei eu dar ao meu menino

Que vai nascer?

pois nisto ninguém pensa,

Que ele tem de brincar para crescer?”

É Matilde Rosa Araújo que refere esta poesia da Biografia, no artigo “Régio e a Criança”,  e os versos que escolhe da poesia adapta-se aos dois.  
 E o menino que vai nascer – escreve -  precisa de ter alegria para crescer: e o menino, que Régio nunca foi (apesar da infância feliz), será o filho que assumiu uma estranha e amarga orfandade no mundo dos homens.”

E faz-nos pensar. E a criança que era Manuel D’Assumpção? Do que sabemos dele e da leitura da revista, parece-nos ter sido uma criança a quem se esqueceram de dar brinquedos. E amor.

            "Que ele tem de brincar para crescer?”