Há uns anos li o livro de Joyce Carol Oates
"Nous étions les Mulvaneys" (1) e impressionou-me. Fiquei a gostar da escritora de quem ignorava tudo na
altura. Creio que admirei nela a sensibilidade e a compreensão da complexidade da vida. Ou, melhor: a doçura e a crueldade da vida.
É verdade que a tinha conhecido través de Rosamond
Smith - um dos pseudónimos que usa para os livros
policiais (2). Devo dizer que são livros de grande violência psicológica e física que nos deixam uma marca profunda porque verdadeiros, procurando fundo a causa do problema.
No jornal Le Monde (3) encontrei um artigo, “La ténacité de Joyce Carol
Oates”, que me levou a procurar mais livros dela. É uma mulher inteligente,
corajosa, com uma teimosia em escrever à prova de tudo.
imagem Le Monde
Nunca desiste e é capaz de reescrever uma obra, tal como aconteceu ao livro "Marya: a life". Pronto o livro, com editor escolhido e tudo, decide não o publicar e volta a escrever tudo do princípio. Segundo a escritora, o livro que sai depois, em 1988 "ficou mais profundo, mais poético, mais misterioso".
“Cada
obra é única e imprevisível. Por vezes uma história aparece de repente, outras
vezes é difícil defini-la, tenta abrir caminho até nós e não a vemos
claramente. Mas seja como for é sempre um desafio.” (art.cit.)
Nasceu em 16 de Junho de 1938, na
cidade de Lockport. Cresceu longe da agitação da cidade, na quinta da família, no Upstate de New York, em Millerspot.
Era a mais velha dos três filhos de
Carolina Bush – dona de casa de origem húngara - e de Frederic
James Oates, fabricante de ferragens. Com eles vivia a avó materna, Blanche,
a quem Joyce se sentia muito ligada. Só depois da avó ter morrido soube que o
bisavô materno se suicidara e que eram húngaros de origem judaica. Quando o bisavô chega aos Estados Unidos o único trabalho que encontra é o de coveiro, por isso ela vai escrever as memórias da avó, a filha do coveiro.
No ensino médio vai frequentar
escolas mais importantes no centro da cidade. Com 17 anos chegou a trabalhar no
jornal da escola. Entra para a Syracuse
University onde se vai licenciar em Literatura Inglesa, em 1960.
Segue-se uma carreira de professora
universitária. De 1978 a 2014 ensinou na Princeton University. Dirigiu um
Programa de Escrita Criativa e foi Professor Emerita in the Humanities. Ainda hoje é “visiting
professor” na University of California, em Berkeley.
As suas preferências literárias eram
muito variadas. E escrevia. Confessa que desde muito jovem lia muito, lia tudo: Faulkner, Dostoievsky, Thoreau,
Kafka, Flannery O’Connor, Thomas Mann, e Ernest Hemingway.
Confessa a importância deste último escritor: "As minhas primeiras histórias foram compostas no espírito de "In Our Time" (publicado em 1924).
Admira as escritoras Emily e
Charlotte Brontë e amava a figura de Jane Eyre. Lewis Carroll teve, no entanto, uma grande influência nos primeiros tempos.
Segundo explica a escritora no artigo citado, Carroll e a sua “Alice no país das maravilhas” foram uma referência importante. “Tal como Lewis Carroll – explica– eu inventava histórias que ilustrava com
os principais personagens que tinha à mão, os gatos ou os frangos.”
Havia um galinheiro na quinta do Upstate e Joyce recorda a figura do seu “animal de estimação”, Happy, um frango
que ela passeava por toda a parte. Com certa ironia amarga, conta que ele fez parte da sua primeira
lição de Metafísica. Certa manhã ao entrar na cozinha vê Harry “branco, sem pele nem cabeça a refogar mergulhado numa gordura amarelada” na panela. (4)
Desta estranha experiência da morte Joyce tira as primeiras histórias e ensinamento-chave: "A existência pode ser doce e cruel simultaneamente, Happy e unhappy."
Como referi, o primeiro
livro que li dela impressionou-me. Intitulava-se “Nous étions les Mulvaneys” e li-o na edição francesa.
Quem eram estes
Mulvaneys? Eram uma família normal e extrovertida que comunicava. Ninguém
calava as mágoas, todos protestavam ao mesmo tempo. Ouviam-se uns aos outros mas
queriam ser ouvidos. Comunicavam – era isso.
Eram felizes na
quinta, a High Point Farm, onde havia cavalos, cães, ovelhas, campos. E
uma série de gatos. E até pássaros.E campos, campos. E árvores enormes. E o céu azul.
“Seis
pessoas, gatos e cães, visitantes e convidados frequentes – pois os nossos pais
gostavam muito de receber” (pg.33) – diz Judd Mulvaney o mais novo da
família que nascera muitos anos depois dos outros.É ele um dos narradores.
“O poder que
as coisas tinham. Tudo e
ra absoluto, intenso e quase doloroso nessa época”
recorda ele. (pg. 34)
À roda da mãe, Corinne,
de cabelo ruivo e despenteado a fugir debaixo do chapéu de
palha. A mãe que sabia rir de tudo e lhe dizia: “Quantos mais formos os loucos
dentro de casa, mais nos divertimos!” (pg.35)
E Judd “imaginava-se” lá – ele que nessa altura ainda
não tinha nascido. Sim, imagina-se à
volta da "mãe-maria-rapaz e que
sabia assobiar como um homem” que a família se define e se encontra, nas
diferenças que a compõem.
A família ia
crescendo e o tempo correndo – sem ninguém saber para onde. Até ao dia em que um
simples acontecimento, “aquilo” como
lhe vão chamar sempre, destrói a vida dos Mulvaneys. O que aconteceu na festa de fim de curso a Marianne, a única filha, e aquilo. A tristeza,
a vergonha, a raiva e a impotência. E a separação.
Não vou contar
o que se passou mas Judd fica sozinho com os pais e vive e bem
de perto o descalabro de High Point Farm, a queda dos sonhos e as
esperanças de todos. A história é contada
ora sob o ponto de vista de Judd ora dos outros. Judd quando começa a contar tem já trinta anos. Sente-se a nostalgia de um tempo em que não era nascido de que ouvira só falar depois. “Queria ter estado presente, ter visto."
Do modo como a família tinha subido de classe tendo consciência, no
entanto, de que os outros nunca os tinham aceitado como “pares”. Eram felizes sim. E
invejados. E quando veio a derrocada foi muito fácil para esses outros julgá-los.
“Estavam fora do seu lugar” dirão ele depois de “aquilo” acontecer. As
expectativas, os anseios, a esperança – tudo se esvai na desgraça dos Mulvaneys.
Joyce Carol Oates escreve
e publica continuamente. O escritor John Updike compara a sua
produtividade à de um Dickens ou um Balzac.
“Nasceu
fora do tempo, com cem anos de atraso.” (artigo citado).
Ela argumenta apenas: “Um artista não faz contas, faz o que tem a fazer, cria”. Não lhe importa o “quanto” escreve sim o "como". E fá-lo aplicada
e tenazmente.
“Devia ter 13 ou 14 anos quando a minha avó me
ofereceu uma prenda mágica. Uma máquina de escrever Olivetti portátil da qual
me apaixonei logo.” (3)
Fala da máquina
como um trabalhador do seu instrumento de trabalho, de um utensílio ou uma
ferramenta - porque o seu trabalho é escrever – assim o pensava ela adolescente.
É uma escritora que vibra com os problemas dos outros e com os próprios sentimentos, que admira e que escreve como sendo
uma dádiva de si.
E que sabe
apreciar, amar e recordar os outros. De
facto, em 1966, dedica um dos livros a Bob Dylan : “Where are you going? Where have you been”, por causa da canção “It’s all over now, baby blue”
que a tinha emocionado e inspirado.
No livro “The
Gravedigger’s Daughter” (5) conta a história da avó materna e os seus antecedentes judaicos.
Mais tarde, em 2014,
sai “Rapariga negra, rapariga branca”
(6) onde fala do problema crucial dos Estados Unidos que ainda hoje divide os
americanos: a relação com uma parte dos “nacionais” afro-americanos, descendentes dos escravos.
Assunto difícil de tocar ainda hoje, mas para o
qual creio que uma barreira se quebrou. Nos tempos que correm, fala-se de tudo,
questiona-se o uso excessivo da força contra os negros por parte da Polícia e
manifestam-se brancos e negros lado a lado.
Mas qual a opinião e os sentimentos dos americanos "brancos, homens, racistas"?
Em “Rapariga Negra, Rapariga
Branca” duas jovens americanas, uma negra e uma branca, tornam-se amigas num “campus” universitário e estudam juntas. Um dia a rapariga
negra desaparece. Anos mais tarde, a amiga tenta encontrá-la.
Desde 1986 (nos anos
do post-Vietname) que pensava falar desse assunto. Começou a escrever mas pôs de parte a
ideia, sentia que não era a altura certa. Volta a pegar no manuscrito e rescreve-o em 2011 quando Barack
Obama é eleito Presidente dos USA.
“Foi a eleição de Barack Obama que me deu a chave da história. Tinha
finalmente a possibilidade de contar uma história da América negra com um fim
positivo no horizonte.”
Cada ano sai mais um livro. Há muitos livros de
Joyce Carol Oates para procurar e ler.
A escritora recebeu
alguns prémios incluindo o importante National
Book Award pela novela “Them”
(1969); recebeu duas vezes o Henry Awards;
uma medalha, The National Humanities
Medal; e o Jerusalem Prize(2019).
Grande parte dos seus livros chegaram à final do Pulitzer Award. Em 2001 foi escolhida pela Ophrah’s Book Club.
E por que não ainda o
Prémio Nobel?, pergunto. Agora que morreram os meus escritores preferidos – Aharon
Appelfeld e Amos Oz - eu gostaria de a ver premiada.
É preciso que haja
mais mulheres Prémio Nobel porque escrevem tão bem como os homens e, no
entanto, a “disproporção” no número de premiados entre os dois géneros é
enorme!
***
(1)"Nous étions les Mulvaneys", Stock, 1998. "We
were the Mulvaneys", The Ontario Review, 1996
(2) Rosamund
Smith - entre 1990 e 2000, Oates escreveu romances policiais com este pseudónimo e com o de Lauren Kelly
(3) Le Monde de 17 de Julho de 2020, secção cultural, L'été des livres, "La ténacité de Joyce Carol Oates"
(4) Paysage perdue 2017
(5) "A Filha do
Coveiro", 2007, publicado em Portugal pela Bertrand
(6) “Rapariga negra, rapariga branca”, edição portuguesa, Livraria Bertrand.
https://pt.wikipedia.org/wiki/Joyce_Carol_Oates
https://www.publico.pt/2014/08/29/culturaipsilon/entrevista/joyce-carol-oates-nao-sou-eu-e-a-escritora-1667663
https://celestialtimepiece.com/2015/03/15/we-were-the-mulvaneys/