Para falar de Giacomo Leopardi, as palavras usadas por outros autores são “genialidade”,
“sensibilidade”, “nobreza de ânimo”.
Ora essa alma gentil, com a sensibilidade à flor
da pele tem, no corpo, um defeito visível: uma corcunda, causada por queda ou escoliose - agravada pelas milhares de horas de leitura sentado em casa e nas bibliotecas. A sua saúde ressentiu-se gravemente dessa dedicação ao
estudo. O problema físico fará isolar o poeta - ele que tanto amava a beleza e a perfeição e tanto procurava a convivência, o amor e a amizade.
O pai, o conde Monaldo Leopardi, e a mãe, marquesa Adelaide Antici eram de família nobre que tinha dificuldades
financeiras e destinam o filho à carreira eclesiástica. Giacomo, porém,
recusou pois considerava-se um ateu.
Em 1822, o jovem foge de casa e vai viver para Roma em casa de uns
tios. Roma desilude o poeta. Deixa a cidade e vai viver em Pisa e em Florença. Impaciente, regressa a casa
dos pais. Pouco tempo depois volta a ir viver para Florença.
Florença, Ponte sobre o Arno
Em Florença, apaixona-se por uma jovem que lhe recusa o amor. Será o tema do "Diário do primeiro amor" que escreve mais tarde.
"A Janela", de Caspar David Friedric
Conhece naquela cidade Antonio Ranieri (1806-1888), que vai ser o seu único amigo. Ranieri, escritor e político napolitano que o admirava e o protegeu
até à morte. Fala-se de um possível interesse amoroso de Giacomo Leopardi por Antonio Ranieri - mais um amor não correspondido como todos os seus amores. Ranieri foi sim o amigo fiel e dedicado que o ajudou a morrer. (3)
Ranieri convida-o para a sua casa de Nápoles onde Leopardi viverá até à morte. Morre em casa do único amigo que tivera durante a vida. A única pessoa que o acompanhou e lhe deu amizade e que depois da sua morte vai publicar na
Librairie Monnier, em França, uns estudos sobre Leopardi
e traduzir algumas das suas obras.
Um eterno descontente Giacomo Leopardi? Diria que era alguém com uma sede de algo de absoluto que não encontrará nunca.
Um poeta atento à realidade mas com as características sentimentais dos
românticos: a subjectividade humana finíssima aliada ao pessimismo, à melancolia e ao cepticismo.
Caspar David Friedrich, "O viajante"
Reconhecido - de Nietzsche a Beckett e tantos outros - como uma das figuras-chave da Literatura Italiana do
século XIX, é para muitos ainda hoje o poeta mais fino e sensível depois de Dante.
Leopardi era ainda um estudioso
da literatura e da filosofia clássicas e um leitor de livros em línguas
clássicas e modernas. Tinha estudado muito e considerou-se um filósofo pessimista
e desencantado. O Universo e a Natureza eram-lhe adversos, pensava. E o poeta era um solitário.
“(...) A quem agrada ou a quem convém esta
infelicíssima vida do Universo, conservada com o dano e com a morte de todas as
coisas que o integram?”(4)
Por vezes, as suas descrições de paisagens recordam as pinturas de um seu contemporâneo, o pintor alemão Caspar David Friedrich? Um dos mais importantes expoentes da pintura romântica do seu tempo. (5)
Árvores em fileiras, de Caspar Friedrich
As paisagens, com as árvores em fileiras alinhadas onde se esconde o infinito, a Natureza adversa, quase sinistra de certas árvores agressivas. Como não recordar certas paisagens e certos queixume de outros românticos?
O poema que aqui trago, “O Infinito”, é um dos poemas mais
famosos em que surge a ideia do "vago", do "indefinido", da "sugestão" de um mundo infinito pela nossa imaginação projectado no futuro.
A obra “O Infinito” foi escrita em Recanati, entre a Primavera e o Outono de
1819. Pertence aos seus primeiros poemas chamados de “idílios”, poemas gregos de um autor que traduzira, Teócrito.
Leopardi traduziu algumas das suas líricas que conhecia bem -cuja peculiaridade é a de propor uma imagem
pequena, restrita e limitada que no entanto indica algo muito maior e diverso. E longínquo. Eis o poema L'Infinito - que tentei traduzir o melhor que soube.
O
Infinito
“Sempre
me foi cara esta colina erma,
E
a fileira de árvores que, de tantos lugares
Do
limiar do horizonte, a vista impede.
Mas,
sentando-me e olhando, intermináveis
Espaços
para além dela, e sobre-humanos
Silêncios,
e profundíssima calma
No
pensamento finjo; e por pouco
O
coração se não assusta. E como o vento que
Ouço
soprar entre estas plantas, aquele
Infinito
silêncio a esta voz
Vou
comparando: e lembro a eternidade,
E
as estações mortas, e a presente
E
viva, e o som dela. Assim nesta
Imensidade
se afoga o meu pensar;
E
naufragar é-me doce neste mar.” (**)
Nesta composição -uma das mais célebres de
Leopardi - podem encontrar-se informações úteis sobre os temas que o
poeta ama e de que falará – em especial a sua 'poética
do indefinido e do vago'.
"E como a imensidade e o infinito seriam um para ele um mar onde se poderia afogar-se em paz."
A propósito destes termos vago ou indefinido, referi acima uma das suas mais belas poesias, Le Ricordanze, que começa com dois versos de grande beleza, e sonoridade inesquecível: “Vaghe stelle dell’Orsa", io non credea/Tornare ancora per uso a contemplarvi".
Lembra Petrarca, lembra Camões? Na melodia, talvez, sim. Mas Leopardi tem a sua imaginação – diferente e romântica. A de um momento vivido
no passado, sim, mas que pela sugestão romântica da Natureza, está “virado para a
imaginação do infinito”.
Caspar David Friedrich (1774-1880)
Encontramos Leopardi, na “observação
do horizonte, dificultada por uma sebe (que pode aqui ser uma fileira de
árvores) no alto de uma colina” que “impede
uma visão total da paisagem e do horizonte” - mas que na imaginação sugestão do poeta numa composição cujo tema é, paradoxalmente, “o infinito”.
Se repararmos, há uma imagem escondida, limitada, tapada da vista, mas que é,
efectivamente, vista numa dimensão real e uma imagem ou, melhor, uma “sugestão”
(“nel pensier si finge”) que o poeta “cria”,
numa dimensão virtual e que lhe causa quase medo.
"Zibaldone"
Em
1821, no ‘Zibaldone’ - o "caderno" companheiro da
vida literária do poeta, o “notebook” onde apontava os
seus pensamentos, filosofia, opiniões, críticas e onde também se referia aos seus escritos -explicando-os ou comentando-os - Leopardi falou do poema L'Infinito. E nada melhor do que ouvir o que poeta diz sobre o que pensa da própria obra.
“Das
sensações que agradam pelo indefinido poderás ver o meu idílio no infinito e
lembrar a ideia de um campo num grande declive de tal modo inclinado que a vista dessa
lonjura não chegue ao vale, por causa daquela fileira de árvores -cujo final se perde de
vista (...)
As
suas descrições da natureza sugerem-me sempre as
paisagens de Caspar David Friedrich nesta visão da
Natureza agreste entre - ele Leopardi - entre o simbolismo e o idealismo.
(...)
ou pelo comprimento dessa fileira ou por ela estar num declive (...) de
modo que pareça elevar-se sozinha no horizonte, e que este não se veja,
produz um contraste especialíssimo e sublimíssimo entre o infinito e o
indefinido, etc, etc..”
No poema há um "dualismo" muito presente nos românticos - ónde se joga continuamente com o
“confronto entre o limite e o ilimitado”.
Caspar David Friedrich, "A árvore dos corvos"
“Lembro a eternidade,
E as estações mortas”
( o passado morto que não quer
lembrar)
E a estação presente
E viva, e o som dela”
(quer acreditar que vai ser feliz)
Antero de Quental (1842-1891)
Resta ainda referir as semelhanças entre os poetas Giacomo Leopardi
e Antero de Quental e o que é muito interessante para nós, afirmam sobre a aproximação do pensamento e da poesia dos dois grandes poetas.
Desde o século XIX que muitos estudiosos dos dois poetas começaram a descobrir parecenças. Sabia-se há muito que
Antero de Quental era um admirador de Leopardi. Assim o afirmou, por exemplo, o escritor e crítico espanhol Miguel de Unamuno. (6)
Miguel de Unamuno, pintado por Zuloaga
Além de Unamuno,
também Tommaso Cannizzaro (8) que se correspondia com Antero os considerava muito próximos. Mais recentemente, Antonio Tabuchi (9)defendeu essa aproximação temática entre os dois.
Tommaso Cannizzaro
Antonio Tabucchi (1943-2012)
Recentemente, em 1919, foi publicado um livro de Andrea Raguso (7) sobre o mesmo tema, intitulado “Como exilados de um Céu Distante” onde o
autor afirma:
“(...) os dois poetas consideravam o
primado absoluto da poesia e é a partir que se podem estabelecer as
convergências com a literatura e o pensamento de Antero – quer na maneira de
entender o poético, a sua significação social e as suas condições de existência.”
Deixo algumas "pistas" que podem ajudar a ler melhor Leopardi. Há
muitos anos que não o lia e foi um prazer relê-lo. E continuarei a fazê-lo.
NOTA:
Apoiei-me na oitava edição da BUR, de 2015, Colecção Grandi Classici, com
introdução e notas do Professor Franco Gavazzeni e de Maria Madalena
Lombardi. É no fundo uma edição para estudiosos, ou estudantes,
muito bem anotada e com explicações completas e de grande utilidade.
***
(1) Giacomo
Leopardi nasceu em Itália em Recanati (nas Marcas) e morreu em Nápoles. Tinha 39 anos.
(2) “Canti”, editore BUR,
primeira edição1988, Colecção Grandi Classici, Segui a 8ª edição de 2015 como já referi.
(3) Antonio Ranieri (1806-1888), que vai ser o seu único amigo. Ranieri, escritor e político napolitano e amigo dedicado que o ajuda, acompanha até à morte.
(4) in “Dialogo della Natura e di un Islandese”, incluído nas “Operette morali”.
(5) Caspar David Friedrich nasceu em 5 de Setembro de 1774 em Greifswald e morreu em 7 de Maio de 1840. Foi pintor, gravador,
desenhador, escultor e grande paisagista alemão. É considerado o mais puro exemplar da pintura romântica.
(6)
Dom Miguel de Unamuno nasceu em Bilbau em 1964 e morreu em Salamanca em 1936. Foi
ensaísta, romancista, dramaturgo e filósofo. E teve uma reacção muito crítica e
forte contra o “franquismo”. Segundo afirma Antero de Quental era um admirador de Leopardi.
(7) Tommaso
Cannizzaro escritor siciliano muito respeitado nasceu em Messina em 1838 e ali
morreu em 1921. Manteve uma correspondência literária com Antero de Quental.
(8)Antonio
Tabucchi nasceu em Pisa em 1943, escritor e professor de Língua e Literatura
Portuguesa na Universidade de Génova foi também director do Istituto Italiano di Cultura em Lisboa.
Morreu em Lisboa em 2012.
(9) Existe desde 2019 o testemunho de Andrea Ragusa. “Como exilados de um Céu
Distante”, tese de licenciatura do autor na Universidade Nova de Lisboa, foi
publicado na Editora Arranha-Céus
(ver nota 2) Edição
da BUR de 2015, L' Infinito cap. XII.
Recordanze (*)
" Estrelas vagantes da Ursa, não pensava
Poder
voltar ainda a contemplar-vos,
Cintilantes
no jardim paterno,
E
conversar convosco das janelas
Desta
morada onde vivi criança
E
onde perdi as minhas alegrias.”
(*) e (**) são traduções minhas...
https://www.portaldaliteratura.com/autores.php?autor=3454
https://pt.wikipedia.org/wiki/Giacomo_Leopardi
http://abysmo.pt/produto/como-exilados-de-um-ceu-distante/