Um livro que fala da memória. Da necessidade de preservar recordações para as passarmos aos que vêm depois: o que vimos, o que existiu. Deixar um testemunho do que cada um pensou, viveu, reagiu e como isso se transformou em experiência.
Na memória, queremos reencontrar a vida de outros tempos - com as pessoas, os lugares, as experiências, as imagens. O livro intitula-se “Memórias Históricas” e o autor é Leonel da Cunha.
Tem como ‘epígrafe’: “O efeito da memória leva-nos aos ausentes para que estejamos com eles e assim trazê-los a nós para que estejam connosco”. A frase é do Padre António Vieira.
A ‘dedicatória’ é simples: “Dedico este livro aos meus pais que ainda continuavam vivos na minha memória.” Procurar manter “vivo na memória” o tempo que passa mais veloz do que alguma vez julgámos.
Pegando em imagens da infância e a partir da recordação da mãe, o autor vai atrás de um fio frágil - o da memória. À procura do que foram “os nossos tempos” ou, melhor, o “seu tempo”. O autor junta no livro algumas fotografias em que "revê" o tempo passado.
Como se
conserva na memória tanta coisa? Vai-se desenrolando esse fio mágico, uma
recordação arrasta a outra e a memória vai crescendo, alargando, abarcando
tudo. As primeiras lembranças, a infância, a escola, os amigos, o jogo da bola,
as dúvidas, alguma solidão.
A vida de um ser humano é feita de tantas pequenas grandes coisas – tantas mudanças, tantas escolhas, viagens, sentimentos, desilusões, aprendizagens.
Persistente, o autor volta atrás, escava nessas recordações e, através da personagem do pequeno Daniel, narrador e protagonista, tudo se vai abrindo como um leque de muitas cores.
A infância e, logo, a adolescência, a imagem dos amigos de então, da primeira juventude, do primeiro amor. Vemos crescer aquele miúdo e ser homem.
Larga a sua terra Vendas Novas para estudar em Évora e vemos como vai singrando na vida, inspirado na vontade de conquistar um lugar na vida - que dependesse do seu esforço e a partir do saber e da aprendizagem. O seu percurso pela vida é feito de esperanças e desilusões.
Ao
voltar à terra, sente tristeza por ver desaparecidos os
lugares antigos, as velhas ruas, os cafés: sua Vendas Novas
está modernizada. A recordação da velha estação do comboio confunde-se com as luzes da nova estação.
E, a partir dali, entramos na história do “belga” - afinal espanhol - que se chama David Moyano. Depois de muitas conversas que os vão aproximando, revela-lhe a sua participação na Guerra Civil espanhola - pelo lado dos Republicanos.
E o passado pessoal vai abarcar a memória “histórica” que lhe é comunicada. Essa comunicação abre outros mundos, o das lutas sociais e políticas que se lutaram – e lutam- para mudar a história e destruir regimes dictatoriais perniciosos. E defender a liberdade.
Ficamos a saber pelo tal Diário que, a dada altura, David vai combater integrado no grupo internacional de legionários - espanhóis fugidos ao “franquismo” do ditador Francisco Franco.
Combatentes que, durante a IIª
Guerra, vão lutar contra os alemães que já tinham invadido a Áustria e a Bélgica. Tempos e
lugares de tortura e de morte: David Moyano é levado com outros para o campo de concentração de Mauthausen, na Áustria (3) na Áustria - que o
amigo espanhol vai "conhecer" bem.
Campo de Mauthausen
Na estrutura do livro, vemos a divisão por capítulos, cada um girando em volta da sua particularidade. Logo no título aparecem as subdivisões: “Infância em Vendas Novas”; “Guerra Civil de Espanha”; “Campo de Concentração Nazi”.
O autor dá o seu contributo para o levantamento sociológico e antropológico da velha Vendas Novas: os costumes, os trabalhos ligados à terra, às pessoas, às profissões. A narração de um passado revelador de coisas vividas pelos habitantes dá-nos um conhecimento que nos remete para o presente.
Como escreve Leonel da Cunha no 'Epílogo': "é sabido que, com o tempo, as recordações esvaem-se, esboroam-se, tornam-se imprecisas. E (...) como sabemos nós somos sempre de um lugar, de uma família, de uma casa, de uma terra onde ficaram as nossas raízes."
Não é o seu primeiro livro. Já publicou mais dois (2) e todos eles estão ligados à evocação do passado e à importância de testemunhar. Uma leitura que aconselho.
(1) “Memórias
Históricas”, Edições Colibri, editor Fernando Mão de Ferro, Lisboa 2023. Com o patrocínio da Câmara de Vendas Novas.
Leonel da Cunha nasceu em Lisboa em 1935. Passa grande parte da vida em Vendas Novas. Concorre aos CTT, trabalha para a Direcção Geral dos Correios. É convidado pelo PNUD para organizar a distribuição do correio na Praia e no Mindelo. Fez estágios em França e na Suíça e coordenou a Implantação do Código Postal a nível nacional e deu formação nos países dos PALOP.
(2) Os outros livros são: “Vendas Novas das Passagens e dos Passantes – Cenas de uma vida tranquila”, 2016. E “O Caderno de Capa Preta – Memórias de um viver já vivido”, edições Colibri, 2018
(3) Mauthausen, na Áustria, era um campo dependente de Dachau, na Alemanha. Em 1939 começa a funcionar como independente - e vai ser o último campo de morte a ser libertado, em 1945, pelo Exército Vermelho.
Um tesouro para Vendas Novas. A memória dos bons escritores é a salvação do passado em todas as facetas, desde os acontecimentos históricos às pequenas coisas da vida quotidiana.
ResponderEliminarDe resto..."Quem vai saber o que eu vivi? Ninguém. 😊
Um beijo grande