terça-feira, 17 de dezembro de 2024

Chove na Rua Morta

   Chove na Rua Morta, ao lado da minha casa. Vejo passar em frente da janela,    indiferentes mas apressando o passo, cobertos com sombrinhas sem varetas, tapando-se com sacos de plástico ou com uma simples folha de bananeira, as pessoas da minha rua.

É a estação das chuvas.

           Com a chuva vem o fascínio das histórias lidas na adolescência, a sugestão de aventuras e de perigo num mundo para mim desconhecido.

           Chove na Rua Morta.

A chuva fina cai, sem parar e a humidade entranha-se no corpo, nos cabelos, forma pequenas gotas que pingam devagar ou se prendem, como diamantes minúsculos, nas teias de aranha dos ramos das árvores.


Os frutos como amêndoas grandes que os miúdos cobiçam estão agora luzentes da água da chuva e parece-me ver pingar gotas de vidro que lentamente descem pelos troncos.


Se não chovesse, veria os rapazes a trepar pelas árvores até ao alto, equilibrando-se em malabarismos assustadores, ou fazem cair dos ramos lançando-lhes pedras. 

A chuva cai forte e bate com fragor nas caixas dos ares condicionados, com um ruído que me lembra tambores de guerra.

Histórias que li de outros mundos, civilizações bárbaras de escudos e lanças e guerreiros defendendo um castelo no alto das muralhas - cercados.

É a estação das chuvas. E lembro “Os tambores da chuva”, de Kadaré. Ou “O deserto dos tártaros”, de Buzzatti.

Torrentes de água suja descem pela rua inclinada e inundam os passeios.

Longe, detrás de tudo e sempre presente, a floresta impenetrável, com a sua névoa eterna envolvendo a copa das árvores e, mais longe ainda, os picos das montanhas das quais nunca se vê o contorno bem definido.

A floresta parece então afastar-se de nós e, no limiar do horizonte, o ôbô brilha em todos os tons de verde.

É a estação das chuvas.   

Parece-me ouvir o mar, embravecido, perto do horizonte onde o céu escurece. Os barcos baloiçam doidos no branco intenso da espuma da baía. 

É a estação das chuvas.

Continua a chover na Rua Morta.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2024

Recordações da Iha: A Rua Morta

 
a baía de Ana de Chaves 
 

A minha primeira casa em São Tomé ficava no Bairro dos Cooperantes e era um pequeno condomínio com várias vivendas.

O nosso apartamento – que seria apenas de passagem até encontrarmos uma casa - estava virado para a Rua Morta. Era uma rua tranquila, com poucas casas de construção recente, e estava perto de uma das saídas da cidade. De facto, seguindo-se pela estrada da Chácara que ficava à esquerda da Rua Morta, começando a subida a caminho da Roça do Monte Café - subindo, subindo ia-se ter ao lugar onde estava a velha Pousada.

Virando para o lado direito da rua, íamos  direitos ao centro da cidade já perto do rio Água Grande e em direcção à praia.

O rio Água Grande

A varanda era o meu poiso mais certo. Sentava-me num banco a ver o que se passava na rua. Os meus vizinhos andavam a pé, equilibrando em cima da cabeça tudo o que era possível imaginar: cachos de bananas, latas, garrafões de água ou gasóleo e lenha para os fogareiros.

Passavam devagar, com calma – o ‘levi-levi’  que me habituei a aceitar naquela terra de gente generosa e tranquila.

As meninas iam para o liceu, com o pacote de livros atado com uma fita elástica no alto da cabeça e eram elegantes porque com essa posição mantinham sempre as costas muito direitas.

Falavam, gesticulavam. Lembro-me que riam muito, davam-se pequenos encontrões amigáveis e nunca se zangavam. Os rapazes que iam para a escola em grupos diferentes levavam também à cabeça um caderno ou os livros e muitas vezes um lápis ou uma caneta entalados na orelha.

Esses iam sempre na brincadeira e, quando passavam mesmo em frente da minha janela, pousavam os livros no chão e começavam a deitar pedras aos caroceiros da rua. Havia um caroceiro mesmo do lado de lá da rua em frente da minha varanda.

 

É verdade que na Rua Morta havia muitas dessas árvores – a que se costumava também o chamar "amendoeiras da Índia".

Eram árvores enormes, com um tronco grosso e uma folhagem muito densa. Os frutos, chamados caroço, eram uma espécie de “amêndoa” com o mesmo feitio e a casca envolvida numa película verde.

 
caroceiros ao pé da praia

Diziam na Ilha que a madeira era muito densa e sólida  que, por isso mesmo, era usada para fazer mobiliário e barcos de pesca  - tal como a madeira do ‘ocá’, outra árvore gigantesca, cujos troncos eram tão largos que se podia escavar um barco inteiro. 

"Barco", quadro do pintor Nézò

Como eu estava sempre por ali a observar aquelas aventuras, um dia os miúdos disseram-me que a amêndoa era muito saborosa e deram-me a provar. Eu gostava mais das amêndoas que já conhecia, confesso. E lá subiam pelo caroceiro, trepando, agarrando-se com os joelhos e fazendo grandes esforços com os braços.

Para comer aquela amêndoa doce, arriscavam-se a partir um braço ou uma perna, porque a dada altura, ao treparem pela árvore acima, os pés escorregavam de repente.

A maior parte das vezes - quando não conseguiam subir tão alto e chegar à amêndoa -começavam a lançar-lhe pedras cá de baixo. A ideia era sempre a mesma:  apanhar o fruto e comer a amêndoa.

Por vezes feriam-se uns aos outros pois as pedras faziam ricochete nos ramos e, ao caírem, atingiam os desprevenidos.

   

O Água Grande, quadro de Albertino Lopes


Ao fundo da rua, já no centro da cidade, passava o Água Grande. Corria muito fundo entre duas balaustradas brancas e ia por ali tranquilo desaguar na Baía de Ana Chaves, onde havia uma pequena praia de areia branca. Soube então que "água" é o nome são-tomense para "rio".

No leito do rio crescia uma planta que depois me disseram chamar-se matabala (1), um tubérculo com muita rama verde à volta. Soube que era o substituto da batata em São Tomé, no momento em que lá vivi,  porque a batata não existia desde a independência, devido à dificuldade de aprovisionamento. Assim, as sopas que comia em São Tomé eram feitas à base de matabala.

Era uma planta originária da América tropical  e que fora introduzido em São Tomé e Príncipe já a partir do século XVI. Nesse século, o arquipélago de São Tomé e Príncipe tornara-se num importante ponto de passagem - e entreposto comercial - na rota marítima transatlântica entre a África e as Américas. 

Na altura não conhecia a terra e ainda não sabia nada disto. Quando ia até ao centro gostava era de ficar a contemplar o rio encostada à balaustrada que lhe dava um ar senhorial. 

E gostava de ver a rama deste tubérculo, enorme, com folhas muito verdes e brilhantes a enfeitarem o leito do Água Grande - abertas em leque como pequenas palmeiras.


 o jardim da casa da Rua Damão

Noutros períodos, na “estação das chuvas”, vi muitas vezes o Água Grande perder a sua limpidez e calma e galgar as margens, rugir em torrente volumosa, levando tudo à sua frente. 

As águas vinham lá de cima do óbó, dos altos da floresta virgem, a engrossar sempre o caudal, a rebolar com um ruído assustador.  

Vivíamos já na Rua Damão, numa vivenda com as paredes pintadas a branco com uma risca azul-vivo, à moda do meu Alentejo, e com um belo jardim. E nessa zona longe do rio não havia dessas enchentes, mas ouvia contar essas histórias.

 
"com uma risca azul-vivo"

Do alto das montanhas altíssimas meio enevoadas nos picos a água desse rio e de outros  despenhavam-se e vinham a engrossar sempre o caudal, a rebolar e desabavam em vagas lamacentas sobre a cidade. 

 Água Grande saía do seu leito, subia até à balaustrada e inundava as casas frágeis, os alicerces das cabanas de madeira com tectos ondulados de latão. Entrava de roldão nas lojas e era assustador.

Agora estávamos já na estação das chuvas mas chovia poucas vezes, havia sobretudo muito calor - e eu podia ficar apoiada ao corrimão da ponte a contemplar a rama frondosa lá em baixo. E a ver as pedrinhas redondas e brancas brilharem no fundo, como se podem ver nos ribeirinhos porque a corrente era ainda fraca.

Gostei muito da minha primeira rua, das suas árvores e dos passeios que podia dar até ao Água Grande  - só nunca percebi por que lhe chamavam a Rua Morta, pois era uma rua cheia de vida!

 * * *

 (1) Quem era Ana de Chaves? Era uma nobre, filha de Cezília de Chaves -  considerada uma mulher extremamente formosa de sangue judeu - e do jovem Príncipe, futuro Dom João III, que foi rei com 19 anos. Casado depois com Catarina da Áustria, o Rei vai desterrar mãe e filha para São Tomé e Príncipe por volta de 1530. Mais tarde, Ana de Chaves casa com um sobrinho do governador Álvares de Caminha, Gonçalo Álvares. Morre em São João dos Angolares.

https://pt.wikipedia.org/wiki/Ana_Chaves

 https://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_III_de_Portugal

(2) O caroceiro é uma árvore tropical (‘terminalia catappa’), da família das ‘combretáceas’. Chega a atingir 20 metros de altura e tem uma copa frondosa com folhas largas e flores rosadas ou esbranquiçadas, sendo cultivada não como planta ornamental mas também pelos frutos, o “caroço” e pela madeira resistente de onde se fazem barcos.

(3) A "matabala" (nome científico "colocasia esculenta") é uma planta herbácea cujas folhas podem atingir 70 cm, produz tubérculos comestíveis em tons brancos e avermelhados e substitui o uso da batata que, depois do fim da colonização portuguesa, desapareceu do mercado. Durante o colonialismo, a matabala fora usada apenas para alimentar o gado porcino.