A minha primeira casa em São Tomé ficava no Bairro dos Cooperantes e era um pequeno condomínio com várias vivendas.
O nosso apartamento – que seria apenas de passagem até encontrarmos uma casa - estava virado para a Rua Morta. Era uma rua tranquila, com poucas casas de construção recente, e estava perto de uma das saídas da cidade. De facto, seguindo-se pela estrada da Chácara que ficava à esquerda da Rua Morta, começando a subida a caminho da Roça do Monte Café - subindo, subindo ia-se ter ao lugar onde estava a velha Pousada.
Virando para o lado direito da rua, íamos direitos ao centro da cidade já perto do rio Água Grande e em direcção à praia.
A varanda era o meu poiso mais certo. Sentava-me num banco a ver o que se passava na rua. Os meus vizinhos andavam a pé, equilibrando em cima da cabeça tudo o que era possível imaginar: cachos de bananas, latas, garrafões de água ou gasóleo e lenha para os fogareiros.
Passavam devagar, com calma – o ‘levi-levi’ que me habituei a aceitar naquela terra de gente generosa e tranquila.
As meninas iam para o liceu, com o pacote de livros atado com uma fita elástica no alto da cabeça e eram elegantes porque com essa posição mantinham sempre as costas muito direitas.
Falavam, gesticulavam. Lembro-me que riam muito, davam-se pequenos encontrões amigáveis e nunca se zangavam. Os rapazes que iam para a escola em grupos diferentes levavam também à cabeça um caderno ou os livros e muitas vezes um lápis ou uma caneta entalados na orelha.
Esses iam sempre na brincadeira e, quando passavam mesmo em frente da minha janela, pousavam os livros no chão e começavam a deitar pedras aos caroceiros da rua. Havia um caroceiro mesmo do lado de lá da rua em frente da minha varanda.
É verdade que na Rua Morta havia muitas dessas árvores – a que se costumava também o chamar "amendoeiras da Índia".
Eram árvores
enormes, com um tronco grosso e uma folhagem muito densa. Os frutos, chamados caroço, eram uma
espécie de “amêndoa” com o mesmo feitio e a casca envolvida numa película verde.
Diziam na Ilha que a madeira era muito densa e sólida que, por isso mesmo, era usada para fazer mobiliário e barcos de pesca - tal como a madeira do ‘ocá’, outra árvore gigantesca, cujos troncos eram tão largos que se podia escavar um barco inteiro.
Como eu estava sempre por ali a observar aquelas aventuras, um dia os miúdos disseram-me que a amêndoa era muito saborosa e deram-me a provar. Eu gostava mais das amêndoas que já conhecia, confesso. E lá subiam pelo caroceiro, trepando, agarrando-se com os joelhos e fazendo grandes esforços com os braços.
Para comer aquela amêndoa doce, arriscavam-se a partir um braço ou uma perna, porque a dada altura, ao treparem pela árvore acima, os pés escorregavam de repente.
A maior parte
das vezes - quando não conseguiam subir tão alto e chegar à amêndoa -começavam
a lançar-lhe pedras cá de baixo. A ideia era sempre a mesma: apanhar o fruto e comer a amêndoa.
Por vezes feriam-se uns aos outros pois as pedras faziam ricochete nos ramos e, ao caírem, atingiam os desprevenidos.
O Água Grande, quadro de Albertino Lopes
Ao fundo da rua, já no centro da cidade, passava o Água Grande. Corria muito fundo entre duas balaustradas brancas e ia por ali tranquilo desaguar na Baía de Ana Chaves, onde havia uma pequena praia de areia branca. Soube então que "água" é o nome são-tomense para "rio".
No leito do
rio crescia uma planta que depois me disseram chamar-se matabala (1), um tubérculo com muita rama verde à volta. Soube que era o substituto da
batata em São Tomé, no momento em que lá vivi, porque a batata não existia
desde a independência, devido à dificuldade de aprovisionamento. Assim, as sopas que comia em São Tomé eram feitas à base de matabala.
Era uma planta originária da América tropical e que fora introduzido em São Tomé e Príncipe já a partir do século XVI. Nesse século, o arquipélago de São Tomé e Príncipe tornara-se num importante ponto de passagem - e entreposto comercial - na rota marítima transatlântica entre a África e as Américas.
Na altura não conhecia a terra e ainda não sabia nada disto. Quando ia até ao centro gostava era de ficar a contemplar o rio encostada à balaustrada que lhe dava um ar senhorial.
E gostava de ver a rama deste tubérculo, enorme, com folhas muito verdes e brilhantes a enfeitarem o leito do Água Grande - abertas em leque como pequenas palmeiras.
Noutros períodos, na “estação das chuvas”, vi muitas vezes o Água Grande perder a sua limpidez e calma e galgar as margens, rugir em torrente volumosa, levando tudo à sua frente.
As águas vinham lá de cima do óbó, dos altos da floresta virgem, a engrossar sempre o caudal, a rebolar com um ruído assustador.
Vivíamos já na Rua Damão, numa vivenda com as paredes pintadas a branco com uma risca azul-vivo, à moda do meu Alentejo, e com um belo jardim. E nessa zona longe do rio não havia dessas enchentes, mas ouvia contar essas histórias.
Do alto das montanhas altíssimas meio enevoadas nos picos a água desse rio e de outros despenhavam-se e vinham a engrossar sempre o caudal, a rebolar e desabavam em vagas lamacentas sobre a cidade.
O Água Grande saía do seu leito, subia até à balaustrada e inundava as casas frágeis, os alicerces das cabanas de madeira com tectos ondulados de latão. Entrava de roldão nas lojas e era assustador.
Agora estávamos já na estação das chuvas mas chovia poucas vezes, havia sobretudo muito calor - e eu podia ficar apoiada ao corrimão da ponte a contemplar a rama frondosa lá em baixo. E a ver as pedrinhas redondas e brancas brilharem no fundo, como se podem ver nos ribeirinhos porque a corrente era ainda fraca.
Gostei
muito da minha primeira rua, das suas árvores e dos passeios que podia dar até ao Água Grande - só nunca
percebi por que lhe chamavam a Rua Morta, pois era uma rua cheia de vida!
* * *
(1) Quem era Ana de Chaves? Era uma nobre, filha de Cezília de Chaves - considerada uma mulher extremamente formosa de sangue judeu - e do jovem Príncipe, futuro Dom João III, que foi rei com 19 anos. Casado depois com Catarina da Áustria, o Rei vai desterrar mãe e filha para São Tomé e Príncipe por volta de 1530. Mais tarde, Ana de Chaves casa com um sobrinho do governador Álvares de Caminha, Gonçalo Álvares. Morre em São João dos Angolares.
https://pt.wikipedia.org/wiki/Ana_Chaves
https://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_III_de_Portugal
(2) O caroceiro é uma árvore tropical (‘terminalia catappa’), da família das ‘combretáceas’. Chega a atingir 20 metros de altura e tem uma copa frondosa com folhas largas e flores rosadas ou esbranquiçadas, sendo cultivada não como planta ornamental mas também pelos frutos, o “caroço” e pela madeira resistente de onde se fazem barcos.
(3) A "matabala" (nome científico "colocasia esculenta") é uma planta herbácea cujas folhas podem atingir 70 cm, produz tubérculos comestíveis em tons brancos e avermelhados e substitui o uso da batata que, depois do fim da colonização portuguesa, desapareceu do mercado. Durante o colonialismo, a matabala fora usada apenas para alimentar o gado porcino.
Gosto muito de ler as suas histórias e imagino um S.Tomé e Príncipe na minha cabeça, com a ajuda das suas fotos.
ResponderEliminarBeijinhos e espero que esteja bem😊😊😊
Hoje antes de amanhecer, deu-me por ver S.Tomé no Google (abençoado seja, que não deixa nada no tinteiro...). Sugere uma grande beleza natural, e talvez por isso, imagino gente com muita paz, alegre e boa. Logo haverá de tudo um pouco...Para ti e Manuel deve ter sido um grande contraste com o vivido antes, terá deixado uma marca muito forte. Tudo o que é belo e diferente merece a pena, estimula e enriquece. Beijinhos
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