sexta-feira, 14 de junho de 2024

O AMIGO QUE VEIO DO FRIO FOI UM INTRUSO!


Vou contar mais uma história dos amigos Ratinho e Ouricinho e dos outros do grupo. Há muito que não escrevo sobre eles. Tempos estranhos para mim e para eles. Ultimamente viam-me sempre calada, sem  e, se calhar, foram-se habituando.

Claro que ouvia de vez em quando grande algaraviada e sabia de onde vinha: era da janela do meu quarto onde decidiram instalar-se no parapeito. Falavam uns com os outros, riam mas não me diziam nada.

 Lembro-me dos tempos em que decidi ter estes amigos. Há tantos anos! Primeiro veio o Ratinho Poeta; depois ele arranjou um aluno, o Ouricinho; depois a Gui trouxe a Gatinha japonesa e, pouco a pouco, o número foi aumentando. Havia sempre lugar para mais um.

 

Já são muitos e vão sempre aparecendo mais. Como na canção "traz um amigo também" eles foram trazendo uns e eu outros. Uma vez trouxe de San Francisco o índio Navajo

 

Aliás os dois amigos tinham ido a San Francisco comigo e foi lá que fizeram amizade. Ele ensinou-lhes muitas coisas e eles ficavam embasbacados a ouvir falar das planícies onde os índios corriam nos seus cavalos, livres.

Outros foram-se chegando a eles e a amizade é mesmo assim: contagiosa. O tempo passou e continuaram a dar-se bem uns com os outros. Com uns grupinhos fechados, de vez em quando, mas unidos.

Estavam zangados comigo. A verdade é que este Inverno fui viajar a uma cidade muito fria e deixei-os sozinhos


Era Inverno, nevava mas, quando os dias estavam bonitos e o sol aquecia, gostava de ir até uma praça muito agradável e
tranquila, a Hlavné Nemestié - onde havia um Café que me encantou, o "Maximilian Chocolat Café". 
A cidade onde fui era Bratislava e estive com a minha filha - porque há momentos em que há uma forma de solidão que nos aperta e temos sair de nós e ir ter com os outros. Sabemos que o que nos parece sufocar e nos faz estar tristes  - eles também o sentem.

 Estive, pois, uns tempos longos e Bratislava. Demos passeios pelo país, fui rever Viena, que não está longe, vi o rio Danúbio que já tinha visto em Budapeste e é sempre majestoso e lindo.  Há muitos lugares bonitos na Eslováquia. 

Como estava a dizer, adoro Cafés e encontrei muitos na minha vida. Na chamada mitteleuropa - que se refere ao Império Austro-Húngaro de que a Eslováquia  fez parte. 

O meu Café em Bratislava foi o "Maximilian".

 

Interior do Café Maximilan

Os Cafés eram o ponto de encontro da burguesia mas  também - e especialmente - um lugar de Cultura.  

Café degli Specchi, em Trieste

Lembro os Cafés de Trieste, cidade que ficou sempre ligada aos "costumes" austro-húngaros. Cafés que guardam uma atmosfera semelhante à destes cafés da Mitteleuropa - muito diferente do resto da Itália ou da Europa. 

 
A verdade é que foi em Bratislava que encontrei aquele que os amigos chamam hoje um intruso.
 
 
 Um simples ratinho, tal como o Ratinho Poeta. Um simpático Rato cor-de-rosa com dois dentinhos saídos e uma cauda longa como uma pequena cobra.

Muito meigo e brincalhão, começou a fazer-me boa companhia. E conquistou-me, como na história do "Principezinho". Não sei quem "cativou" quem: eu falava e ele ouvia - e poucos dias depois já estava a dormir na minha almofada.

Quando voltei para casa trouxe-o comigo. Nunca esperei a reacção dos amigos que cá tinham ficado - e que foi muito negativa. Não esperava isso deles. Tinham sempre recebido bem todos os que iam chegando.
Claro que o Rato cor-de-rosa é maior do que eles e é bonito; claro que é de uma cor diferente - e, infelizmente, nós sabemos que essas coisas contam na vida. Até por causa dos ciúmes que sempre surgem sem nos darmos conta disso. E o Ratinho e o Ouricinho são muito ciumentos. A Gatinha japonesa vive noutro mundo, tem outra filosofia , não liga a essas coisas.

Há gente a girar por todo o lado.  Aparece de repente e, quando se instalam, os que já lá viviam começam a encontrar defeitos e a pôr as culpas de tudo neles, os estrangeiros. 

O estrangeiro, o "métèque", o diferente, que Georges Moustaki tão bem cantou, nem sempre o aceitam.

 
San Francisco
 
Chama-se “racismo” e os amigos sabem o que é porque já lhes tinha falado disso quando trouxemos o índio Apache, de San Francisco.

Mas os bichinhos esquecem como as pessoas e quantas vezes também eles esquecem promessas feitas solenemente: “Nunca mais!” - tal como as pessoas. 

E é pena porque da solidão não sai nada de concreto e afastar o outro não nos leva a lado nenhum. Quanto a mim ficamos mais pobres e mais sozinhos se recusarmos a mão de alguém.

Estive a ler duas frases que, por acaso, encontrei numa velha agenda – enquanto procurava outra coisa: os irritantes códigos e ‘passwords’ que não estavam lá e nem sei onde guardei.

Uma das frases era de Elie Wiesel e diz mais ou menos: “Os dois sentimento mais fortes não são o ódio e o amor - mas sim o amor e a indiferença.” 

 

 Ele sabia um pouco disso porque esteve em Auschwitz: como era grande a indiferença para com tudo o que acontecia aos judeu. E, mesmo lá dentro, como se modificavam as pessoas pelo instinto de sobrevivência.

A verdade é me fez pensar é a indiferença que nos impede de fazer certos gestos; e que há coisas que fingimos não ver. E muitas outras coisas que se esquecem quando jurámos não esquecer. Como a estrela amarela dos judeus.
 
Luther King: "I have a dream"

A segunda frase é de Martin Luther King - tão falado e tão esquecido hoje - personagem importantíssimo da história da defesa dos Direitos dos Homens. Tão importante e tão incomodativo para o sistema que foi assassinado!

Acho que a maior parte das pessoas já não sabe - ou nunca soube - o que foi “A marcha sobre Washington” em 1963  nem o que disse no seu discurso "I have a dream". O sonho era que todos os homens se unissem e tivessem as mesmas oportunidades.

A frase de Martin Luther King falava da indiferença: “Pior do que aqueles que cometem actos censuráveis são os que os vêem e olham para o lado.” Os que olham para o lado para não ver ...

Muitas outras coisas se esqueceram na procura de “andar de acordo com os outros” - amparados no grupo que é "maior" ou parece mais forte e que - julgam eles - tem mais poder. 
Esses vão atrás de um chefe, como os carneiros  nos rebanhos. Sabendo que, quando se vai em rebanho, ou na multidão, podemos ser covardes, porque o rebanho nos protege.

 

Mas já estamos a passar para outra conversa. Quero falar do novo Ratinho a quem chamei Aviv - lembrando um amigo que tenho em Telavive e  a quem gosto de chamar assim porque “aviv” quer dizer Primavera - renascer- em hebraico e esse amigo ajudou-me num momento muito difícil. 

Ora o Ratinho cor-de-rosa fez-me pensar  também que depois da neve a Primavera ia chegar e ia ser linda. Já começavam a ver-se folhinhas novas no jardim.

Chegámos da viagem. Os amigos estavam à minha espera mas de repente fez-se um grande silêncio quando viram o desconhecido de repente fez-se um grande silêncio.
 :

- Têm aqui um amigo novo e ele gostava de ser vosso amigo - disse eu.

Foi então que do meio do grupo à janela  se ouviu uma voz fininha a dizer : 

“Já temos muitos amigos, não precisamos de mais...”

 Era o Ouricinho, claro. Ele e o Ratinho Poeta estavam de costas viradas para mim.

 

Logo a seguir, porém, ouço um discurso mais longo que parecia preparado:  

“Sim, é muito interessante ires viajar. Deixas-nos aqui sozinhos em casa  e ainda por cima trazes um intruso!"

Interrompi: 

- Ratinho querido! – era a voz dele - tu sabes que veio a Halyna tomar conta de vocês e da casa! Não estavam sozinhos.

O Ratinho Poeta continuou sem se virar:

 "Era muito diferente, eu e o Ouricinho ficavamos a tomar conta da casa. Sabes que não é a mesma coisa. Tu és a Jana, a amiga de há tantos anos que desaparece assim sem mandar notícias. E..."

Tossiu, pouco à vontade, e acrescentou:

"E agora apareces  toda contente com um qualquer que encontraste não sei onde.”

- Encontrei-o em Bratislava, Ratinho. Sabem que estive em casa da Gui.

O Ouricinho pergunta, trocista: 

- E há assim lá tantos ratos?

Percebi que não ia ser assim fácil. Disse apenas: 

 - Vão pensando e quando tiverem decidido alguma coisa venham falar comigo. Estou cansada e vou-me deitar.

Silêncio. Fui-me deitar. O Rato cor-de-rosa andava atrás de mim, - e como dormia na almofada da minha cama complicava mais as coisas . “Horror!”, deviam eles pensar. Nem queriam olhar para lá.

É verdade que eu tinha-me afeiçoado ao Aviv. Era um 'paz d’alma' e habituara-me a conversar com ele à noite. Não era nada parvo e sabia consolar-me com poucas palavras e mostrar-me que a “a vida é mesmo assim!” 

E explicava, sabiamente com a sua voz tranquila:

Nem todas as pessoas gostam das mesmas coisas, não querem habituar-se ao que é diferente deles e que não conhecem”.

Eu senti-me triste.

 “É assim em toda a parte. Chamaste-me Aviv, sabes que os judeus nunca são amados.”

Zanguei-me:

Não é verdade, Aviv! Eu gosto de ti. Chamei-te assim porque quer dizer "Primavera"!

Ele ficou calado.

 o Jaba
 
O sapinho verde, o Jaba, que dormia na almofada, do outro lado da
 cama, tinha já aderido ao nosso grupo. Disse:

- O Aviv tem razão. Julgas que não tive problemas por ser verde? E que culpa tinha eu? Não fiz mal a ninguém. Mas estavam sempre a gozar comigo “ó verde!”

Fiquei pasmada e só pensava “então com os animais é a mesma coisa, também racismo...” 

Falei, agora indignada: 

- Mas isso é racismo!

O Ratinho, o Ouricinho e os outros já se tinham virado para nós e ouviam tudo, calados. Fiquei triste. 

"Então o que o Saint-Exupéry escreveu no Principezinho não era verdade?"

Senti-me pequenina, insignificante. Com os meus grandes discursos sobre a liberdade, a igualdade e a fraternidade não sabia muita coisa do que se passava no mundo. Seria eu também indiferente?

O Aviv chamou-me:

- Jana, posso chamar-te assim como eles te chamam?

Acenei com a cabeça e ele continuou:

- Sabes, penso que vives numa tua forma de utopia em que julgas que basta a tua vontade e um pouco de conversa com os outros para eles te entenderem logo e estarem do teu lado. 

Abanou a cabeça e continuou:

- Não, Jana, a vida lá fora não funciona assim.

Continuei calada, quase acabrunhada. Eu era assim? Vivia como a avestruz? Agora queria ouvir tudo o que iam dizer até ao fim. Julgava ter aprendido tudo sobre racismo e a rejeição do outro. Afinal a vida lá fora não era como eu pensava.

Racismo? Sim, havia racismo mas eu preferia não ver nem ouvir o que se tem passado à minha volta. Fechei-me nas minhas convicções. Aquele bichinho da terra tão pequeno ia ensinar-me a vida? Quem sabe? Achei melhor ficar a ouvir. Mas pedi-lhe:

- Eu quero ouvir tudo mas peço-te só que fique para amanhã o resto, pode ser? Estou cansada e tenho muito sono. Amanhã à noite continuamos a conversa.

Não era verdade, precisava de pensar um pouco.

- Vamos fazer como nas “Mil e uma noites”. disse eu.
  O Ouricinho não resistiu e perguntou.
- O que é as "Mil e uma noites"?
- Um livro... 
Voltei-me para o Aviv e disse:
Deixamos a conversa onde a deixaste. E  amanhã à noite e todas as noites a seguir continuamos a história e falamos sempre um bocadinho. Todos! Olhei para a janela mas dali não veio nenhuma reacção. A noite descera, a conversa preocupara-me e queria dormir.

No parapeito da janela havia um grande movimento - sussurros e agitação. Eram os amigos a falarem baixinho sobre a nossa conversa. O que diriam eles amanhã?

- Boa noite, disse eu.

Houve um murmúrio e depois em coro:

- Boa noite, Jana.

Fiquei a pensar antes de dormir. De onde me teria aparecido a ideia das “Mil e uma noites” (1) ? Era como se, de repente, tivesse visto o livro em frente dos olhos: o meu livro! O que me tinham oferecido num Natal - prenda que eu adorara.
Recordo que era um livro de formato diferente. Muito comprido e estreito com as páginas de uma cor rosado-salmão. Tinha muitas ilustrações mas só lembro a Princesa com um turbante sentada numa almofada de seda a contar, a contar. 
a Princesa que era final a Sultana Aul

A heroína chamava-se Sherazade. Ela sabia que cada noite que passava era um dia de vida que ganhava. Por isso não podia chegar ao fim da história de repente e ia adiando para a noite seguinte mais um pedacinho da história. Eram histórias diferentes e ela deixava-as sempre num momento de suspense!

Era uma figura emblemática da mulher que tem coragem e paciência, sabe resolver os problemas dando uma volta às coisas.

Rimsky-Korsakov
 

 E pensava, e pensava. E vinham-me tantas recordações à cabeça! Lembrava-me agora de uma bela música de Rimsky-Korsakov - músico russo de que o meu pai tanto gostava e que ouvíamos lá em casa. Escrevera uma composição a que chamou "Sherazade". 
E houve ballets inspirados na música.
                                        "Sherazade", Ballet russo

E veio-me a imagem da boneca da minha irmã mais velha: ela tinha-lhe chamado Sherazade. Como o tempo passou depressa! Nesse ano eu tivera de prenda um bebé-chorão com um biberon. Quase me tinha esquecido destas coisas. E são tão importantes.

Concluí : Pois é, a gente esquece...

Ainda bem que amanhã vamos continuar a conversar.

***

(1) O livro das “Mil e uma noites” é uma obra que atravessou os tempos fazendo parte da memória do Oriente e do Ocidente. A origem terá sido persa ou poderá ter vindo mesmo da Índia mas existia apenas uma tradução em árabe. Estes contos fariam parte da tradição oral árabe como o teriam feito anteriormente dos persas. 

Sheherazade é uma adaptação sonora do nome em persa.