Sem reagir, numa astenia enorme – a minha única vontade era chegar ao fim do dia. E dormir. Perdera a paciência para tudo, sobretudo para as pessoas que me lamentavam e me queriam ajudar.
Parecia-me que “fingia” o tempo todo e não tinha a certeza se aquilo que sentira era verdade - era como se vivesse num palco, com várias máscaras.
Quando a Dalit veio passar uns dias em minha casa, comecei a pensar em Tel Aviv e, de repente, decidi ir com ela no dia em que ela voltasse para Israel. Tinha tantas recordações boas dessa cidade, vivera lá cinco anos muito felizes.
Tinha de fugir daqui se me queria salvar da depressão em que me ia deixando cair.
E marcámos a minha viagem para Telavive na "El-Al" no dia do voo de regresso dela.
Ia
insegura, incerta se seria a escolha justa, mas ganhara um entusiasmo, sim. Tinham acontecido coisas que não esperara e Tel Aviv ia ser um regresso forte a um lugar que tanto amara vinte anos antes.
Estava um Verão cheio de cores e de risos - e animei. Havia uma forma de inconsciência
estranha - naquele país sempre ameaçado. Girava pelas ruas, parava em cada café - à
procura e reencontrava os lugares onde fora feliz.
Onde, tantas vezes, com o meu cão Zac passeava de manhã nas ruas próximas da nossa casa no centro, na rehov Lassalle.
E foi, assim, neste último Verão que conheci o meu amigo Aviv. É verdade que havia uma "realidade" anterior a aproximar-nos: São Tomé.
Eu vivera muitos anos na Ilha e um dia, já em Portugal - depois de ter vivido já em Israel cinco anos - recebi uma mensagem do Aviv, que eu nunca vira e que era apenas amigo de outros amigos. Pedia-me informações - e contactos - sobre São Tomé.
Contou-me que uma comum amiga, israelita, que estivera em São Tomé, lhe indicara o meu nome. Nessa altura dei-lhe umas informações e, ao voltar de São Tomé, o Aviv escreveu-me a agradecer. E acrescentara: “Se passar por Israel um dia, telefone-me.”
Chegara há uma semana a Israel e tinha-me acontecido já tanta coisa boa: reencontrado amigos, feito novas amizades, sentira emoções diferentes e voltara aquela sensação de liberdade que sempre ali sentira.
Os dias passavam rápidos em Telavive. Suponho que a intensidade com que se vivem as coisas pode tornar tudo diferente. É o que se chama “tempo psicológico” cuja duração sentimos de modo tão diferente.
E que nos leva por vezes a tomar decisões impensadas.
Telavive é uma cidade mágica, dizem os israelitas, a cidade da magia absoluta. A cidade branca, a cidade sem repouso, a minha "cidade bem amada", digo eu.
E pensei tantas coisas novas e voltei a acreditar outra vez: o tempo passa, o tempo leva mas o tempo traz o tempo cura. A vida tornara-se mais suave.
E lá o esperei no Café Segafredo, o meu Café preferido.
Telavive é a cidade dos Cafés, conheci dezenas deles e ia regularmente a três ou quatro: o "Cassit", o "Dizza", o "Panorama", mas o Segafredo fora sempre uma paixão especial talvez por me lembrar de Itália a e saber que era muito bom o café.
Dizengoff street
Devo dizer que, logo que cheguei a casa da Dalit - onde fiquei instalada parte do tempo - o meu primeiro passeio foi até à Dizengoff street.
Nessa primeira noite fui encontrar-me com a Ruti. A Ruti foi a minha professora de hebraico nos tempos antigos em Telavive. Ficámos sempre amigas, tinha estado em Portugal.Fomos jantar ao
“Sushi-bar” onde a filha dela, a Lilit, pianista com o Curso do Conservatório, trabalha como ajudante no Verão. É preciso conhecer a realidade de Israel para poder compreender certas coisas. A Lilit aos dezoito anos foi fazer a tropa dois anos, como é o normal para as jovens em Israel. Os rapazes fazem quatro anos.
Aprende-se muito nos dois anos duros sim e cheios de novas experiências. Talvez se aprecie de modo mais intenso o valor da amizade, da companhia, do tempo - porque se perceba mais cedo a efemeridade da vida e como a morte está presente.
Quando acabou a tropa,
a Lilit continuou o Curso no Conservatório até ao fim. Era considerada pelos professores uma
boa pianista. A Ruti esperava que continuasse a estudar piano, a especializar-se.
Não queria sacrificar a vida com os amigos e, assim, queria arranjar um trabalho que não a prendesse muito e lhe desse liberdade de movimento.
Fez outro Curso, continuou a dar lições de piano a convite de um professor e à noite trabalhava no restaurante japonês. Aos domingos à tarde, dava um concerto numa sala de concertos. Café Segafredo, esplanadaContinuando a história do meu amigo Aviv - fui-me encontrar com ele no Café Segafredo. Sabia que o autocarro que devia apanhar na Yehuda Hamacchabi era o número 5 - perto da rehov Brandeis onde vivíamos - para ir até à rehov Dizengoff.
Encontrei
uma pessoa agradável e pensei que era muito bom que o “meu amigo” fosse uma
pessoa divertida. Fazia-me rir, com o
seu humor judaico de que sempre gostara. E eu precisava de rir, de ser inconsciente.
Essa inconsciência e o imprevisível da situação era um tratamento muito bom para a minha neurastenia. Em Telavive, consegui rir com o meu amigo Aviv. Ficámos horas na esplanada do Segafredo a falar da vida.
A rua estava com o movimento habitual - apesar do calor da tarde de Verão. Telavive é sempre a “cidade-sem-repouso” que tão bem conhecera e, à sombra na esplanada, estava-se bem e era tão bom conversar.
O Aviv falou da sua vida. Nascera num kibbutz e continuava muito ligado a ele. Contei-lhe da nossa viagem ao Neguev com a Lea e a família toda numa camionete. E eu falei da minha
Fora um passeio cheio de ‘descobertas’ e de coisas aventurosas. Andámos pelo deserto, encontrámos camelos, vimos lamas.
E, no fim da tarde, fomos conhecer o kibbutz Sde Boker, onde viveu e está enterrado Ben Gurion.
Contou-me o que vira sobre os judeus. No Cemitério de São Joaquim, vira túmulos cujas lápides tinham o formato hebraico e a estrela de David incisa com o nome do falecido. Muitos eram nomes de cristãos novos mas outros eram judaicos.
Tirara fotografias das lápides e mostrou-mas. Impressionaram-me. Tinha passado no cemitério de São Tomé muitas
vezes, lembro-me que tinha uma vista bonita sobre a ilha e sobre o mar - mas reparara nesses túmulos.
Todo este assunto que ele fora procurar em São Tomé refere-se à passagem trágica de crianças judias por aquela ilha há pouco descoberta- passagem que talvez poucos conheçam - ligada ao tempo da escravatura e aos males da Inquisição em Portugal.
De facto aconteceu: entre os ano de 1493-97, o Rei Dom Manuel I mandou retirar os filhos menores aos pais judeus - já “cristãos novos”- e mandou-os para São Tomé e Príncipe. Segundo o Rei, a Ilha “tinha de ser povoado depressa”. (1)
Não se sabe bem o número dos que foram para ali enviados, as opiniões dos historiadores divergem, mas fala-se de cerca de 2.000 crianças entre os 3 e os 17 anos.
Crianças para “povoar” a Ilha perdida no Oceano - perto da costa do Gabão. Uma ilha, há pouco descoberta, não desbravada e de que pouco ou nada se sabia. Contam as crónicas do tempo que estava cheia de “lagartos gigantes” e de cobras, animais nunca vistos antes e com um clima muito hostil - motivo pelo qual a maioria das crianças morreu nos primeiros anos.
Algumas terão sido atacadas pelos animais selvagens, outras sucumbiram aos ardores do clima e à fome.
A ideia do meu novo amigo era conseguir uma informação mais detalhada sobre essas viagens das deportações de crianças judias, saber quais os barcos, quem foram os capitães.
Pensava ele que teria muito interesse saber os nomes de alguns dos escravizados judeus - para um dia se poder pôr uma lápide a contar a história dessas crianças.
“Uma placa como pequena homenagem apenas”, dizia-me. O Aviv era um sentimental.
Eu estava de acordo, a ideia entusiasmou-me – mas calculei que provavelmente não chegaríamos a nenhuma conclusão.
Seja como for, gostámos da ideia. Era aventurosa e ele contara-me das viagens que fizera pelo mundo e eu que sempre gostei de imaginar aventuras fiquei encantada. Enquanto durasse a imaginação e a fantasia era tudo bom.
Confesso que a ideia de homenagear os "judeuzinhos" me pareceu uma ideia bela mas um pouco ingénua. Durante aquela tarde, porém, nem pensei nisso: era bom conversar e recordar coisas de São Tomé. E inventar histórias mesmo impossíveis.
Era inteligente e divertido o meu amigo Aviv e o que me contou da sua vida era muito interessante. Despedimo-nos amigos. E continuámos a falar por mensagens e a conversa começou a tornar-se quase familiar, como se fosse uma pessoa conhecida há muito.
“Por que estás tão triste?”
Contei o meu desgosto e da sensação estranha de ter perdido em tão poucos dias uma pessoa que conhecera adolescente. Falei da solidão que me caíra de repente em cima e o medo de me sentir viúva para sempre.
Animava-me, não queria ver-me triste: “tu não és uma pessoa velha nem triste, tens muita juventude em ti e muito entusiasmo”, dizia ele.
"Nunca serás uma viúva! Vais ser 'single'."
Devia continuar a viver, a fazer coisas, a escrever - tinha-lhe contado que escrevia histórias - e insistia que tinha de ser eu própria a tentar “criar” essa nova vida. Sem medo.
“E acreditas
na vida! Vais ter uma vida diferente."
Gosto da ideia: que uma pessoa possa ter muitas vidas dentro de uma vida. É uma filosofia como outra e quero pensar que é assim, porque sinto que é assim.
Todas essas vidas nos pertencem e todas podem
existir se tentarmos. São nossas - mas por vezes não as conhecemos.
Tudo veio a propósito deste amigo que encontrei. De regresso a casa, no avião, comecei a lembrar-me das suas conversas e na promessa de sermos amigos e sempre sinceros.
A verdade é que falei com ele mais de mim e da minha vida do que com muita gente que conheço há anos. Ajudou-me a procurar forças dentro de mim, a sentir-me de novo eu, sem lamentos nem choros.
A querer ser uma lutadora e não uma pessoa desistente - eternamente viúva de espírito. Se houve alguém que até hoje me tenha ajudado a perceber a sensação de ainda de ser “eu” e de ser livre, ou até mais livre, foi o meu amigo Aviv.
A brincar, explicava-me como podia ser a minha vida, as viagens que havia por fazer, os mundos do espaço, os desertos, tantas paragens desconhecidas. Ao ouvir o que dizia acreditei que era de facto possível e que estava na minha mão tudo.
Passeando em Telavive pelas ruas que amava, a sentar-me nos cafés que conhecia como os dedos da mão, a ver o mar na esplanada da Kikar Atarim - deixei de pensar no “fim” da vida, no limite do tempo que nos é dado, a tal nossa “oportunidade cósmica”.
Até porque esse fim não podemos adivinhar nunca quando sucederá.
De me esticar toda para que a minha alma se libertasse dos vários pesos que ainda tinha dentro. Sentia o sol na pele, a música de jazz suave, quase ouvia os minutos passarem devagar e ao mesmo tempo a ter a sensação de que o tempo parara comigo a ver o mar.
No
fundo, percebi que tinha o tempo que quisesse para me habituar a viver.E podia voltar a Telavive depois da Guerra acabar. Sim, porque eu vou voltar a Telavive.
Pensei
que ia viver o que houvesse para viver, sem medo, sem susto pelas
consequências de certos gestos, viver sendo realmente livre. Viver como eu
achava que queria viver. Com alegria e um pouco de loucura e a acreditar nas
pessoas e na vida.
A vida, esse espaço de tempo - curta passagem, dizem, mas quem sabe o que vamos viver? Quantos morreram jovens e nem essa “curta passagem” - que nos anunciaram como “vida”- eles tiveram!
O que importa se é longa ou curta a vida - se pensarmos em milhões de anos? Se olharmos a infinidade de estrelas no céu, se imaginarmos as mágicas "estrelas" de Van Gogh sobre o Rodão, ou a lonjura do sol e as estrelas que – nós não o sabemos - mas já morreram.
É tudo tão mais complicado do que essa curta passagem. A olhar para o mar, pensava que o tempo passa, o tempo leva mas que o tempo traz muita coisa se quisermos – quando verdadeiramente o quisermos.
Ali,
podia deixar passar o tempo, não tinha horas para voltar a casa. Talvez ficasse
a ver o pôr-do-sol sobre o mar. O dia era todo meu.
Gosto sempre muito de ler o que escreve, Maria João!
ResponderEliminarBeijinhos e desejo-lhe um bom fim-de-semana:))