quarta-feira, 25 de dezembro de 2024

UMA HISTÓRIA PARA CRIANÇAS: ENTRE PORTUGAL E SÃO TOMÉ

 


  Hoje foi dia do Natal e ontem a mágica noite para as crianças que esperam sempre uma surpresa. Por isso quis falar hoje sobre uma história para crianças que foi parar a São Tomé!

Tantas coisas que aconteceram antes disso. Prometi há tempos contar a história de uma tartaruga que quis imitar a bolotinha que, num dia de grande ventania, cai do carvalho onde vivia no chão. E por ali fica sem saber o que vai fazer.

Quando caiu, ainda pensou voltar a subir mas depressa percebe que não pode voltar atrás: “Como posso subir à árvore se não tenho asas?”

Essa história foi escrita por Américo Rodrigues e já falei dela aqui no blogue há uns tempos. O livro chama-se “Pfafummmmmfumfum, a Bolota do Barroquinho” e tem uns desenhos muito poéticos de Gyora Gal Glupczynski.

Curiosa, a bolota começou a olhar em volta. Não conhecia nada se não a sua árvore mas lá de cima vira muitas coisas. Não se assustou e decidiu ir conhecer a vida, os bichos e as plantas e tudo o que a rodeava. E começou a rebolar por ali abaixo.

Ia encontrando pelo caminho coisas e seres desconhecidos que lhe causavam imensa curiosidade. Formigas! Gatos! Ouricinhos!

Parar? O que fazer? Decidiu seguir em frente! E coisas estranhas começam a acontecer, coisas desconhecidas e como a bolota queria saber aprender tudo continuou a deixar-se rebolar, sempre a olhar.

No fundo a vida avança pela curiosidade e pelo sonho, acho eu, sejam homens ou sejam bichos. Como a tal “bola colorida que salta corre e avança nos pés de uma criança” - e de que falou um certo poeta.

Esta era pois a história de Américo Rodrigues.  A vida continua sempre e a história também continuou!  Os meses passaram e continuaram a acontecer coisas. Porque se nós quisermos as coisas acontecem! Se ficarmos parados não acontece nada.

A vida continuou e a ideia deste livro seguiu até São Tomé e Príncipe. Porque o Américo - e a Isabel Mota que é são-tomense - assim o decidiram. A Isabel nascera lá, veio para Portugal ainda bebé e só voltou com o pai a São Tomé já com 18 anos.

Com filhos grandes hoje, decidiu ser altura de voltar à terra natal e mostrá-la aos filhos.


E foram passar todos – eles e o Américo - umas férias juntos. Não posso imaginar o que a minha amiga Isabel terá sentido, não consigo mesmo!

Eu conheço São Tomé, a beleza da ilha, das montanhas, da floresta virgem, chamada “obó”, lá nos picos altos, e quantas vezes encoberta pelo nevoeiro cerrado.

O que pode sentir uma pessoa que só viera uma vez e muito jovem à sua terra? O que pode recordar?

A Isabel é muito minha amiga como eu sou dela. Contou-me, emocionada quase às lágrimas, que foram “sentires” muito complexos. De choque e de espanto pela intensidade: das cores, dos cheiros, da beleza e diferença das flores, das comidas, da fruta infindável, dos gostos tão diferentes!

E acrescento eu pela minha memória: “a leve ondulação a água do mar, quase parada, na Baía de Ana de Chaves. A baía de sonho com os barcos poisados sobra as águas quase imóveis, nas suas cores suaves.” E quando, de repente, "explode o vermelho rubro do pôr-do-sol de São Tomé. E a acácia rubra com flores cores de rubi onde ia com o Manuel ver esse cair da tarde.”

Como o tal sonho existe e comanda a vida, o Américo teve um convite para contar a história da nossa ‘bolotinha’ numa escola de crianças em São Tomé.


Foi na zona da Madalena, no jardim de infância “Baú dos Sonhos”. As crianças receberam-no com alegria - e o sonho continuou, fez-se vivo - porque o sonho é também contagioso!

 

Sentados todos em roda no chão, as crianças ouviram a história e riram. Mas muitas coisas não percebiam. O que era uma bolotinha? E os pássaros que o Américo referia? O que eram perdizes?

Eles conheciam outros pássaros na Ilha: os truqui sum deçu, “os passarinhos do senhor Deus” que agitavam a longa cauda fazendo um ruído que pareciam estalinhos!; 

 Ou os amarelo-e-verdes, que constroem os ninhos, espécie de pequenos cestos - entrelaçando fitas de andala;

Tudo isso preocupou o Américo Rodrigues e a Isabel. Depois das férias, ao voltarem a Portugal, havia uma certa inquietação. 

O Américo continuou a pensar na visita à escola e no que se poderia ter feito - ou fazer - mais. O Américo Rodrigues é um poeta e, lá por dentro dele, continuou a magicar em tudo e a tentar resolver o problema.

A verdade é que acabou a escrever outra história, agora passada agora na realidade são-tomense: de modo a que as crianças pudessem entender tudo. E o livro foi apresentado em Novembro no belo espaço da Biblioteca dos Coruchéus!

E assim apareceu outro livro. Passa-se em São Tomé e a personagem da história vai ser um bichinho são-tomense muito comum na ilha: a tartaruga. 

O novo livro chama-se: “Até breve, Toti!” E vai ter uma ambição muito importante: vai ser bilingue: português-forro (ou "santome" - como também se chama, na ilha).

 O verdadeiro título será nas duas línguas: “Antê óla bilá, Toti! Até breve, Toti!

 

A tartaruga faz parte da vida em São Tomé: durante séculos a tartaruga fez parte da alimentação da ilha, com outros seres marinhos: o peixe bonito, o peixe vermelho ou o tubarão pequeno.

 

Havia pouca carne e no mar havia as proteínas possíveis - o que realmente mais faltava na ilha. Faziam-se trabalhos artísticos de grande beleza. 

Agora a tartaruga é protegida.

O novo livro vai falar de coisas que não sabemos: por exemplo que, em São Tomé, em certas noites escuras de Verão, as tartarugas-bebés deixam os ovos que as mães ali puseram há muitos meses. 

E correm, minúsculas, a toda a velocidade para o mar para não serem apanhadas por predadores. O pintor são-tomense Osvaldo Reis, ilustrador do livro, consegue dar essa corrida rápida e quase sentimos a ansiedade das pequenas tartarugas!

Bem, agora não conto mais. Mas vão descobrir os que lerem o livro (2) como a vida pode ter um sentido. O mundo pode ser bom e há sempre uma possibilidade de alguém ajudar alguém: 

Porque há sempre uma mão (ou uma patinha) à espera de outra mão...ou de outra patinha!

            Osvaldo Reis em São Tomé há dias a ler o livro numa escola 

 

* * *

(1) o primeiro livro de Américo Rodrigues, intitulado “Pfafummmmmfumfum, a Bolota do Barroquinho”, foi publicado em 2023, editora “EDIÇÕES ESGOTADAS”.

(2) Este novo livro foi publicado em Portugal pela Bosq-íman:os/Ilhéu Portátil, 2024. Para tal foi criada a Associação Cultural Ilhéu Portátil. A edição foi paga só por voluntários que deram as quantias que puderam para que este projecto fosse possível. O livro tem ainda a particularidade de ser bilingue, português-forro (também chamado ‘santome’). 

O tradutor é o professor são-tomense Ayres Veríssimo Major; as ilustrações são do pintor são-tomense Osvaldo Reis e o desenho gráfico é de Leonor Varo. Na imagem, vemos o professor com o livro acabado de chegar a São Tomé!

O livro foi apresentado no dia 30 de Novembro na "Biblioteca dos Coruchéus", em Lisboa.

(3) Com uma edição de 250 livros, a maior parte da edição está já a ser distribuída grátis em 120 “jardins de infância” de São Tomé. Muitos já chegaram às escolas e os outros continuarão a ser enviados por todos os meios possíveis.

Alguns dos exemplares estão a ser vendidos online (ver FB, e site Ilhéu -Portátil) para pagar o trabalho do artista cujas pinturas têm uma beleza incrível.

 https://falcaodejade.blogspot.com/2023/05/a-bolota-do-barroquinho-um-livro-de.html

terça-feira, 17 de dezembro de 2024

Chove na Rua Morta

   Chove na Rua Morta, ao lado da minha casa. Vejo passar em frente da janela,    indiferentes mas apressando o passo, cobertos com sombrinhas sem varetas, tapando-se com sacos de plástico ou com uma simples folha de bananeira, as pessoas da minha rua.

É a estação das chuvas.

           Com a chuva vem o fascínio das histórias lidas na adolescência, a sugestão de aventuras e de perigo num mundo para mim desconhecido.

           Chove na Rua Morta.

A chuva fina cai, sem parar e a humidade entranha-se no corpo, nos cabelos, forma pequenas gotas que pingam devagar ou se prendem, como diamantes minúsculos, nas teias de aranha dos ramos das árvores.


Os frutos como amêndoas grandes que os miúdos cobiçam estão agora luzentes da água da chuva e parece-me ver pingar gotas de vidro que lentamente descem pelos troncos.


Se não chovesse, veria os rapazes a trepar pelas árvores até ao alto, equilibrando-se em malabarismos assustadores, ou fazem cair dos ramos lançando-lhes pedras. 

A chuva cai forte e bate com fragor nas caixas dos ares condicionados, com um ruído que me lembra tambores de guerra.

Histórias que li de outros mundos, civilizações bárbaras de escudos e lanças e guerreiros defendendo um castelo no alto das muralhas - cercados.

É a estação das chuvas. E lembro “Os tambores da chuva”, de Kadaré. Ou “O deserto dos tártaros”, de Buzzatti.

Torrentes de água suja descem pela rua inclinada e inundam os passeios.

Longe, detrás de tudo e sempre presente, a floresta impenetrável, com a sua névoa eterna envolvendo a copa das árvores e, mais longe ainda, os picos das montanhas das quais nunca se vê o contorno bem definido.

A floresta parece então afastar-se de nós e, no limiar do horizonte, o ôbô brilha em todos os tons de verde.

É a estação das chuvas.   

Parece-me ouvir o mar, embravecido, perto do horizonte onde o céu escurece. Os barcos baloiçam doidos no branco intenso da espuma da baía. 

É a estação das chuvas.

Continua a chover na Rua Morta.