segunda-feira, 27 de julho de 2015

Reflexões de uma tarde de Verão...



"Passamos como sombras", diz o Salmo. E somos outras coisas, digo eu. Damos voltas e mais voltas, a vida passa, corre, atropela-nos. Ansiamos por um mundo melhor. Por um mundo decente. 

Esperamos ver realizadas as coisas por que tanto esperámos e que julgámos, até, ter lutado e contribuído para as criar, nos pequenos gestos que nos são possíveis. Na impossibilidade dos “grandes” – que esses são os dos heróis em que acreditámos. 
E que nos iludiram tanto tempo. Ou fomos nós que sonhámos de mais? 
Como o albatros do poema de Baudelaire cujas asas gigantescas o impediam de andar nas pranchas do navio? 

Ses ailes de géant/l’empêchent de marcher”…

São as "asas do sonho" que nos impedem hoje de 'andar' como os outros? Ilusões demasiado grandes? O absoluto e a plenitude que se afastavam mal nos aproximávamos deles? 

E todos os dias repetida – hoje, ainda!- a velha crença: “O mundo vai mudar um dia! Vais ver!” 
E mudou? Alguma coisa mudou, sim, sem dúvida. Não chegou para a nossa vontade nem para o sonho e a exigência profunda do “bem”, do “justo”, do "ético"…
Elie Wiesel, 1943

Há umas semanas li o livro de Elie Wiesel, L’Aube (A Madrugada). Tempos tremendos os que ele viveu, prisioneiro no campo de concentração de Buchenwald, adolescente - ele e o pai... 
Ele sobreviveu, o pai não. Viu-o morrer. O que viu, o que sentiu, o que foi obrigado a fazer, a ver, foi o que fez dele um homem e um justo.
Elie Wiesel, pouco tempo antes de ser deportado
o pai de Elie Wiesel
O que aprendeu? Nada é simples, nada é preto ou branco: tantas 'nuances', não é? 
A guerra tem alguma espécie de sentido? “A guerra é como a noite”, escreve. “Cobre tudo. (…) Dizemos depois que nos entregámos a uma luta sagrada (…) e que lutámos contra qualquer coisa, ou por qualquer coisa.”
E o que resta? O que é o pior? A dor, o medo?
Elie Wiesel está nesta fotografia

O medo não é nada (…). O medo é uma cor, um ‘décor’, uma paisagem. O problema não está aí. Que o carrasco e a sua vítima tenham medo, um ou o outro - há tantas formas de medo! - tem pouca importância. 
Elie Wiesel

O que importa é o facto de que cada um desempenha na peça um papel que lhe foi imposto. Carrasco e vítima são as duas extremidades da nossa condição. Que se seja obrigado a desempenhar esse  “papel” sem o querermos, isso é que é trágico.” (pg. 65)
E é absurdo! Não fomos nós que escolhemos a "peça", nem o papel. Hamlet quereria ser Hamlet? Outros o fizeram por nós. O destino? Um Deus? Um Rei? a Fatalidade?


Hamlet, por Laurence Olivier

 Laurence Olivier

Elie Wiesel
A quem devemos culpar? Alguém assume essa culpa? Não. E como vamos reagir no final desta história de loucos? Seremos julgados? 
desenho da Gui 

Uma das personagens do livro lamentar-se-á:

Não me julgues a mim. Julga Deus. Foi ele quem criou o universo e fez de modo que a justiça se obtenha pelas injustiças, e que a felicidade de um povo seja adquirida ao preço das lágrimas.” (pg.72) 

O livro fala desses problemas, com honestidade, põe dúvidas, e responde. E quando não há alternativas? E quando não há escolha possível, pode um justo tornar-se num carrasco? 

Diz o Rabbi Nahman de Breslav que tanto gosto de ler: "Tu só fazes o que queres, não fazes o que não queres".

Portanto podemos 'escolher' entre as várias hipóteses? Acho que sim! É esse o livre arbítrio de que falam os livros santos? 
E lembro-me da Svitlana, minha amiga ucraniana, que está sempre a dizer: "Isso é que era bom!" 
Mas na verdade é tudo sempre uma questão de escolhas!
Elie Wiesel com Izaac Rabin, o estadista israelita

Elias "Elie" Wiesel nasceu no reino da Roménia, em 30 de Setembro de 1928, e é um judeu sobrevivente do campo de Buchenwald. 
Foi Nobel da Paz, em 1986, pelo conjunto dos 57 livros que escreveu para que a memória do Holocausto se não perdesse.

 https://pt.wikipedia.org/wiki/Elie_Wiesel
Charles Baudelaire, por Courbet, 1848

                            L' albatros
"Souvent pour s’amuser, les hommes d’équipage
Prennent des albatros, vastes oiseaux des mers,
Qui suivent, indolents compagnons de voyage,
Le navire glissant sur les gouffres amers.

A peine les ont-ils déposés sur les planches,
Que cês róis de l’azur, maladroits et honteux,
Laissent piteusement leurs grandes ailes blanches
Comme des avirons traîner à côté d’eux.
Ce voyageur ailé, comme il est gauche et veule!
Lui, naguère si beau, qu’il est comique et laid!
L’una agace son bec avec un brûle-gueule,
L’autre mime, en boitant, l’infirme qui volait!

Le poète est semblable au prince dês nuées
Qui hante la tempête et se rit de l’archer;
Exilé sur le sol au milieu des huées,
Ses ailes de géant l’empêchent de marcher."


Charles Baudelaire, Les fleurs du mal, Ed. Robbert Laffont, Paris, 1980

4 comentários:

  1. Às vezes achamos que o mundo vai mudar para melhor, outras vezes não temos esperança...
    Mas eu acredito que há muita gente boa, que quer um mundo melhor para todos e luta por isso.

    Gostei tanto do desenho da Gui:)

    Um beijinho grande:)

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  2. ~~~
    ~ A História mostra-nos que o mundo evolui, ainda que de uma forma
    desesperadamente lenta.

    ~ Parece estarmos a anos-luz dos gladiadores, das mortes pela cruz
    ou empalamento, dos servos da gleba e escravatura, guerras santas
    e Inquisição, porém, fazem parte de uma história recente.

    ~ Foi um enorme retrocesso na história das civilizações, o assassínio
    de Izaac Rabin. ''Ses ailes de géant empeché de marcher!''

    ~~~~~ Excelente texto que convida à ponderação. ~~~~~
    ~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~

    ~~~~~ Beijinho, MJ. ~~~~~~~~~~~~~~~
    ~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~

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  3. Estou de acordo em que ser víctima ou carrasco são os dois extremos indesejáveis da condição humana, mas como diz o Rabino, não fazemos o que não queremos fazer, se conseguimos ter a coragem de enfrentar-nos às situações, ainda que isso signifique a nossa morte. Por vezes não deve ser nada fácil, se no mundo só houvesse valentes a história seria outra.
    O mundo tem altibaixos, depende das circunstâncias. Pobre de quem lhe toca um destino cruel!
    Que sejas sempre moderadamente feliz, bjoka.

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  4. Maria João,
    Não sei se é sempre uma questão de escolhas... Ou, pelo menos, se o tal livre arbítrio existe em pleno.
    Beijinhos tristes

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