quarta-feira, 1 de julho de 2015

Nome de casa, Nini...


(Uma história de São Tomé)


Ouvia o tic-tac do relógio. Sabia que eram seis horas, pois acordava sempre à mesma hora. Deitei-me de costas e suspirei. Fixei as sombras do tecto cuja brancura adivinhava. A luz da manhã filtrava-se, suave, pelas ripas de madeira das portadas, e, fora, começavam os ruídos do dia. 
Um galo cantou, a porta do jardim, nas traseiras da casa, rangeu. Era o guarda que ia dar os bons dias aos vizinhos, do outro lado da rua. Depois, sentia os passos dele em redor da casa e a sua tossezinha seca e o bater ritmado do bastão, a mostrar-nos que estava de vigia.
O ronronar do ar condicionado fez-me estremecer. Pus os braços detrás da cabeça, estiquei o corpo sem fazer barulho. Sabia que a electricidade ia faltar dentro de momentos e era como se o meu silêncio e imobilidade completos pudessem impedir esse momento. Todas as manhãs era assim desde que chegara a São Tomé mas custava-me a habituar.
Ia pensando no tempo que ali vivera, como era difícil adaptar-me à terra e ao que as pessoas esperavam de mim. Julgavam-me uma espécie de curandeira e eu era apenas uma professora de passagem. Vinham consultar-me, pedindo o remédio que faltava na farmácia da cidade – e que, para eles, era sempre um toque de magia.
- Dôtôra, vim para me curar, diziam.
Não valia a pena dizer que não era médica e que não podia curar ninguém, porque não acreditariam. E a verdade é que a minha caixa de medicamentos estava cheia de muitos remédios indispensáveis!
- Disseram que dôtôra tem remédio bom!

Sorrio na meia claridade do quarto, a pensar  nos meus doentes. Primeiro tinha sido a cozinheira que trouxera os filhos e as dores de ouvidos e  de dentes, depois vieram os familiares e os conhecidos que viviam nas roças por perto da cidade.
 O guarda, o senhor Semedo, queixava-se de fraqueza do peito, preocupado sempre que fosse um “feitiço” que lhe tivessem lançado. Tossia, enquanto me contava os seus receios, e punha o cigarro apagado detrás da orelha.
Voltei a adormecer. Acordei sobressaltada com o silêncio. A luz faltara e o calor invadira o quarto de repente. O jardim devia ter a luz dourada das manhãs de sol. As flores em redor da casa brilhavam com todas as cores da paleta do mundo.
Suspirei, aliviada, por mais paradoxal que pareça.
- Finalmente!
Acabara-se a expectativa. Sabia que o sol queimava lá fora e que o ar sufocante invadira a calma do jardim, mas deixara de ansiar, à espera que o fresco acabasse...
De repente, o ruído de uma manga a cair da árvore ao lado da janela do quarto. Depois outra e mais outra. 

O portão range outra vez. Era a cozinheira, a Milly, que chegava, a protestar com os filhos que seguiam atrás dela, em procissão, a arrastar os pés num movimento lento e ondulante que me lembrava o grupo que vira dançar a “ússua”, na festa do Mercado do Ponto. 
A Milly e a Daý que era a mais velha. E o Miki, o mais pequeno. E o Wildger...
Imaginei o Wildger a apanhar uma manga do chão, com a pasta pendurada do ombro e a limpar a testa com a ponta da camisa já suada.
O Wildger…
Tinha-o visto, pela primeira vez, vivia eu ainda na casa da Rua Morta. Oito anos, magro, enfezado, a barriga saliente no corpinho frágil, de costelas espetadas, e com uns olhos sérios que me olhavam sem espanto. A mãe trouxera-o para lhe curar uma ferida que se infectara num pé. As feridas infectavam-se no clima quente e húmido, cultura privilegiada de todos os micróbios.
Wildger, o 'mal amado', como lhe chamei depois. A mãe batia-lhe por tudo e por nada e o professor dizia que ele era estúpido - contou-me quando consegui arrancar-lhe uma palavra.
- Por quê, Wildger?
Porque fugia de casa e andava horas perdidas a apanhar fruta pelos quintais, que ia depois vender à porta da escola, ou durante o recreio; porque não gostava de estudar e ainda não sabia ler e o professor tinha dito que ele era burro; porque nunca obedecia à mãe.
- Vergonha di gente!, dizia a Milly.

São Tomé era um mundo novo para mim. O ritmo vagaroso da vida, o calor pesado e húmido que me acelerava o pulso e me causava uma agitação dentro que não conseguia controlar, a sensação de que o tempo não passava e era preciso esperar, esperar. 
E – num minuto!- a frescura das chuvas torrenciais que varriam a cidade e a estrada Marginal, em catadupas que faziam sair fumo da terra vermelha, escaldante e crestada. 
Breve alívio porque, quando as chuvas passavam, o chão abria gretas de secura como se nada tivesse acontecido e nem uma pinga de chuva tivesse entrado dentro dele. E o ar pesava, abafado. Só nos meses da Gravana a humidade desaparecia e a temperatura baixava um pouco. Então, era a claridade, a nitidez do céu azul e a calma e maravilhosa Baía de Ana Chaves!

Nessa manhã em que a Milly trouxera o Wildger para o tratar, tinha chovido e eu ficara detrás dos vidros a ouvir a chuva bater nas latas espalhadas pela rua. 

Entretinha-me a ver os riachos cortar a rua, arrastarem papéis, folhas, entupirem as sarjetas e continuarem rua abaixo, a rebolar as pedrinhas, até à balaustrada do rio. 
O Água Grande corria, num nível abaixo, no seu leito fundo, de águas revoltas, em sobressalto.
Wildger olhara para mim, a medo, sentado numa ponta da cadeira da cozinha. Observara-me com olhadelas rápidas e com a expressão fechada de quem se habituara a ser batido, recusado. Um olhar quase de adulto, naquele rosto infantil. Quando lhe falei, baixou os olhos deixando ver as enormes pestanas curvas.
- Como te chamas?
- Wildger.
- Diz-se Edgerr, dôtôra, disse a mãe.
- Edger?, perguntei-lhe e ele levantou os olhos e disse:
- Nome de casa é Nini…
O nome de casa era aquele que protegia as crianças do espírito do mal, do anjo da morte, que rondava os meninos ao nascerem e que se tinha de esconder dos “de fora”.
Já me tinham contado muitas histórias curiosas que me lembravam certas tradições dos cristãos-novos para os quais o “nome de casa” era o antigo nome de judeu. E em São Tomé, não podia esquecer que para lá foram milhares de crianças judias, nos tempos de D. Manuel, para "povoarem" a ilha.
A Milly fora buscar um alguidar de água quente e sabão e resmungava:
- Lave o pé, seu porco, minino sem vergonha, sempre chujo!
Pedi-lhe que nos deixasse, porque preferia tratar o pé do Nini sozinha e ela saiu, contrariada.
- Wildger, ouve…
A minha voz pretendia ser doce para não o assustar. Ergueu os olhos, agora curioso. Começou a lavar o pé, devagarinho, esfregando com força com muito sabão, enquanto espreitava aquela mulher branca que lhe falava com ternura.
E contou que fora uma pedrada a um caroceiro que fizera ricochete e lhe ferira o pé. Quantas vezes vira os miúdos deitar pedras, ali na Rua Morta, ao caroceiro enorme (*) em frente da minha janela. Quantas vezes, um, mais ágil ou mais afoito, subia ao alto da árvore, confundindo-se com o tronco, agarrando-se com as pernas num equilíbrio assustador, de mãos livres para abanar os ramos, ou colher a noz do caroço, uma amêndoa saborosa. 
Vi-os depois, mais tarde trepar aos coqueiros do meu jardim. Tinham algo de felino, pensava, enquanto os olhava a medo, receando vê-los cair lá de cima, desamparados. Ou algo de planta, pedaços de natureza, confundindo-se com ela, pertencendo-lhe e, ao mesmo tempo, dominando-a.
A ferida do Nini era grande e a infecção começara a alastrar. Imaginei-o descalço, brincando no terreiro da Chácara, onde vivia, a jogar à bola, no meio do lixo e das latas de sardinhas vazias ou das espinhas de peixe seco.
Encolheu a perna, receoso, atento aos meus gestos, a ver a gaze branca, transparente, quase etérea, que lhe ia envolvendo o pé e o tornozelo. No fim, sorriu um sorriso aberto que lhe fez belo o rostozinho magro.

 Quando lhe perguntei “amanhã vens outra vez?”, respondeu logo que sim, que vinha, e estendeu-me a mão pequenina. Percebi que confiava em mim e sorri-lhe. 
O Nini foi um dos meus primeiros amigos na ilha de São Tomé.
Agora, no silêncio da manhã, sem o ar condicionado, os barulhos do quintal aumentam. Ouço os gritos das crianças e os ralhos da mãe. O guarda e a sua tossezinha seca, que parece arranhar a garganta, via guardando as armas da noite no velho galinheiro que lhe serve de arrumação. Onde tem uma cadeira de braços de madeira que ele cobre de jornais bem secos todas as noites para proteger o seu reumatismo do cacimbo nocturno.
A noite terminara e ele podia voltar para casa da filha, descansar. Começava o reino da cozinheira.
Edgerr, vem cá, minino sem vergonha!
E eu penso: "outro dia"...
Fixo os olhos no tecto, a ver a réstia de sol que sobe pela parede.

4 comentários:

  1. São histórias lindas, que a Maria João tem o dom de bem contar!
    Os meninos retratados são muito bonitos.

    E aquela árvore enorme da penúltima fotografia...uma maravilha!

    Gosto das suas histórias:)

    Um beijinho grande:)

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  2. ~~~
    ~ Interessantes memórias equatoriais,
    descritas com engenho e sensibilidade.
    ~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~
    ~~~~ Grata pela exótica partilha. ~~~~

    ~~~~~~ Beijinho. ~~~~~~
    .

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  3. Gosto de encontrar as suas memórias.
    As fotografias são um tesouro que bem guardou e que ilustram bem as histórias.
    Beijinho grato. :))

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  4. Nas histórias de São Tomé é onde tu és mais tu, a Jana em estado puro. Aprendemos sempre mais nos momentos piores. O pequeno Nini faz-me recordar o Antoine dos "Quatrocentos golpes", lembras-te?

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