quarta-feira, 22 de julho de 2015

Uma pomba morreu

René Magritte, 1925, 'Nocturno' (com pomba)

Sim, a pombinha morreu. De repente, veio-me à lembrança uma canção dos meus tempos de menina e moça:

“A rolinha que rolou rolou
numa veia de água
logo lá ficou…”

Uma pomba que vi nascer na minha varanda e que esperava ver voar um dia, para longe, ficou por aqui. 
O ovo – que era já o segundo - o vaso onde em poucos dias de espera vi nascer dois passarinhos de longos bicos, e de penugem amarelinha.


 Um cresceu bem, era grande, comia, agitava-se, mas a outra era pequenina, assustada, escondia-se debaixo da mãe e não saía de lá. Tanta fragilidade naquela avezinha, tanto medo. Pensei por essa sua atitude que era uma pomba e não um pombo. 

Tinha, ao mesmo tempo, tanta carência, necessidade de ficar por perto - e tanta confiança em nós… 

O irmão -ou irmã?, nunca o saberei- voara há muitos dias. Ela não partiu, ficou por aqui.
Parece impossível, eu sei, mas a pombinha afogou-se na minha varanda!
A tarde estivera muito quente, o ar condicionado ligado desde manhã e o recipiente que recebe a água estava cheio, há muito com certeza. Tínhamos saído e, ao voltar, quando abri a persiana olhei em volta à procura dela, nas varandas vizinhas e até espreitei detrás dos vasos onde se escondia. 
Tive um pressentimento? Não sei, sei que olhei para o grande copo que recebia a água. Transbordara, e o chão estava todo molhado. 

Vi as patinhas dela antes de tudo o resto. Saíam fora mas ela tinha o corpinho dentro de água. Peguei-lhe com cuidado e uma das asas abriu-se como um leque. Um leque lindo, preto e branco. Podia ser outra pomba, mas eu adivinhei que era ela. Olhei. E lá estava o biquinho comprido e a delicadeza e a fragilidade.
Nos últimos dias, ficava-se no parapeito da varanda, deitada. Isolava-se dos outros. Ou sentava-se, no ladrilho, a apanhar sol e olhava-nos sem medo, num jeito vagamente interrogativo. Esperaria a comida que se habituara a ter? 
Ou seria apenas porque gostava de nos ver e de ouvir a música quando abríamos a janela? 



Quem sabe o que uma pomba pensa… Ou o que sente um passarinho.
Voava sem segurança e as asas abriam-se hesitantes. Voava e ficava a tremer no ar - e eu de olhos nela a ver se caía. As patinhas também pareciam fracas. Quando brincava e se reunia ao grupo da família acabava por parecer agitada e quem sabe contente. Mas tinha a mania e meter as patinhas dentro do prato e entornar tudo à volta deles…
Quando se aventurou, pela primeira vez, a voar para a varanda do prédio ao lado, ou, pior ainda -porque mais distante e tão alto!-  para o prédio da frente, afligi-me e só descansei quando a via de patas bem assentes na pedra. Sentia o coração bater e pensava comigo:
- E se cai?  Tão insegura, um dia acontece-lhe alguma coisa. Oxalá que não!
Não caiu a minha pomba. Desses voos arriscados, voltava sempre. Um dia, como uma Ofélia, de asas riscadinhas, ficou entre duas águas para sempre.
Ofélia, de John Everett Millais

Fui deitá-la no caixote, era-me impossível olhar para ela! Não conseguia vê-la, assim morta, nas minhas mãos! Senti a necessidade de apagar tudo e me desfazer daquele peso.
Chorei desconsolada. Depois, senti-me culpada por não ter sabido protegê-la. E por nem me ter lembrado de lhe pôr umas flores.
Os pombos tinham desaparecido dos terraços e dos telhados. E lamentei o desaparecimento daquele pequeno ser delicado e terno que me olhava todos os dias como uma amiga.
E tenho nos ouvidos a velha canção, que soa agora um pouco diferente:
“A pombinha que voou voou
numa veia de água
logo lá ficou…”

um passarinho (MAM)


 Há sempre outras pombinhas, eu sei.

10 comentários:

  1. ~~~
    ~ Lamento muito o acidente, MJ .
    ~ Compreendo perfeitamente o seu desgosto...
    ~ Eu, que a conhecia um pouco, também fiquei triste.

    ~~~~~ Beijinhos. ~~~~~~~~~~~
    ~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~

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  2. Que tristeza, Maria João.

    Afeiçoamos-nos tal como eles e é triste a ausência.
    Beijinho especial e um abraço.

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  3. Também compreendo a sua tristeza. Também já chorei por animais , que me morreram.
    Afeiçoamo-nos aos bichinhos e depois dá pena.

    A última foto está muito linda e também gostei do novo visual do blogue e das fotos aqui de lado.

    Um beijinho grande :)

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  4. Que pena que tenha morrido. Ao ler sobre ela, pareceu-me tê-la conhecido.
    um beijinho
    Gábi

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  5. Se equivocó la paloma,
    se equivocaba.
    Por ir al norte fue al sur,
    creyó que el trigo era el agua.
    Creyó que el mar era el cielo
    que la noche la mañana.
    Que las estrellas rocío,
    que la calor la nevada.
    Que tu falda era tu blusa,
    que tu corazón su casa.
    ...

    ( Rafael Alberti)

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  6. Lindo o poema do Alberti! Foi assim mesmo...Obrigada!

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  7. Sim, efectivamente existem outras pombas, mas aquela era especial; nasceu na sua varanda, foi a ela que deitou comida, que olhou com carinho...
    Acidentes acontecem e sentimo-nos culpados, mas...
    À distância, tínhamos agido desta ou daquela maneira; mas no momento é tudo tão diferente... Nem conseguimos raciocinar!!

    Abraço-a, Maria João!
    Um beijinho.:))

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  8. Triste a história da pombinha... e tão bonitos os teus amores-perfeitos! Mas há aquele poema do Eugénio de Andrade ..."e a cada gesto que fazemos, cada ave se transforma noutro ser"... e pode ser que a tua pombinha também se tenha transformado e te apareça por aí de outra forma... beijinhos! Mamé

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  9. Cara amiga; abençoada seja; por acolher pombas todos os dias em sua vida.
    bjs muitos e muiiiitas saudades.

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