René Magritte
Este
livro lê-se de um fôlego, apenas com paragens para respirar fundo, porque sentimos a necessidade de pensar e de repor em questão muitas
coisas que julgávamos decididas.
Gentes
vindas de lugares longínquos do mundo, tentam a difícil conquista do Oeste
americano. Lutando, aprendendo, caindo, matando e morrendo. Amando e odiando.
Páginas
de vida, de sofrimento, de procura, de dúvida e de desistência. E de vontade de
continuar. Conhecemos,
assim, a história dos Trask e dos Hamilton e das suas vidas, a leste de Paraíso.
Cyril Trask e os filhos, Charles e Adam. Samuel Hamilton e os nove filhos.
Vale Paraíso
Paraíso
(o “Eden”) é uma região, Vale Paraíso, ou Vale do rio Salinas, perto da cidade de
Salinas, mas é também “o paraíso” da Bíblia. A região onde John Steinbeck nasceu
e onde situa muitas das suas histórias. A personagem de Samuel é, na realidade, o avô materno de John
Steinbeck.
Salinas, Califórnia
“E Caim anda errante pela terra e vai habitar
o país, a leste de Eden”. (Génesis,
Cap. IV, 16)
Livro
dramático - entristece-nos? Não, porque nos anima nas nossas convicções. Gritamos,
ainda com mais veemência, que cada homem pode
fazer alguma coisa, e que há gestos
que contam. Portanto, nem tudo é inútil nesta luta.
Movem-se
no livro, personagens que nunca esqueceremos. Samuel Hamilton, o irlandês, que
deixou a sua terra natal por causa de um desgosto de amor e que decidiu vencer
a infelicidade e reconstruir tudo do princípio. Com uma mulher boa e corajosa
que ele não amava mas respeitava. Noutro lugar novo, em terra pobre onde nada
crescia mas onde, cada dia, ele inventava uma coisa nova.
tempestade de areia, Califórnia, 1936
Poeta
sonhador, inventor de máquinas e utensílios para facilitar o trabalho agrícola,
para furar poços à procura de água – milhentas coisas de que nunca tirava
nenhum proveito, que nunca lhe pagavam, nem ele pensava nisso. Bastava-lhe o
prazer de criar e de dar, com o riso nos olhos, a bondade eterna e a paciência
de santo. Não porque fosse idiota, mas porque se escolheu assim. Era um poeta.
Quis construir o seu caminho na generosidade e na procura do outro, não atraiçoando o que escolhera. A mensagem é ampla: “nós podemos fazer a nossa vida porque nós podemos escolher”.
O poeta, de Marc Chagall
Quis construir o seu caminho na generosidade e na procura do outro, não atraiçoando o que escolhera. A mensagem é ampla: “nós podemos fazer a nossa vida porque nós podemos escolher”.
“Tu podes” (trata-se da interpretação da palavra hebraica timshel) foi a frase que guardei. Numa conversa, a propósito do
nome a dar aos dois filhos de Adam Trask, gémeos sem mãe ainda sem nome, Sam
Hamilton e o empregado chinês, Lee, interpretam uma passagem da Génesis: o episódio de Abel e Caim. Caim
ofende-se porque Jeovah prefere o carneirinho de Abel, e mostra má cara. Jeovah
repreende-o:
“Se fizeres o bem, não terás recompensa? E
se fizeres o mal, não estará o pecado logo à porta? E tentar-te-á. Mas tu
dominarás sobre ele.” (Génesis,
IV, 7). Noutras traduções, a última frase aparece como “tu vencê-lo-ás”. A promessa de “poder vencer”? Ou apenas “impor a obediência”?
Há sempre um momento em que decidimos ser isto ou aquilo: ou não ser. Pela negativa, talvez seja mais fácil
entender.
O
mal e o bem o que são? Acontecem as coisas fatalmente?
O destino será mesmo irrevogável : um “fado” (fatum)?
A
resposta, para o autor, é não. Porque nós podemos escolher “isto” ou “aquilo”.
Escreve
muito bem Steinbeck. Quem não gostaria de escrever assim? E nos seus livros
está a humanidade “em cheio”.
“Faz os gestos”, recomendava Sam
Hamilton. “Os gestos da compreensão e do
amor, mesmo que pareçam inúteis, faz os gestos que te aproximam do outro”.
“Momentos
de graça”, pensa o autor, “Em que te
sentes tão bem contigo próprio e com o mundo que tudo te parece possível
realizar”.
E,
de repente, vem a dúvida e interrogas-te: mas para que existe o mundo? E a
maldade, the evil, porque existe no
mundo? (pg. 192). É difícil a resposta.
Sam
interroga-se: por que devemos nós corresponder às ideias dos “outros”? E os
irlandeses - os estrangeiros - porque devem esconder a sua tristeza apenas porque
os outros esperam que eles bebam e estejam alegres?
E
Lee, o criado chinês, estudioso e culto, prefere falar “tchin tchon” porque, se
falar em inglês correcto, não o entendem, porque não estão à espera disso. Na
sua filosofia tranquila, não se importa.
Samuel
não entende porquê e Lee, num inglês correctíssimo, explica: “Contigo posso falar normalmente porque não
és como os outros. Tu não tens ideias preconcebidas: aceitas as coisas tal como
são e não esperas que elas sejam aquilo que tu pensas que são.”
Quantas
ideias preconcebidas “temos” todos os
dias, a todas as horas! Todos “achamos”
que os outros são aquilo que nós pensamos que eles são. Porque a maior parte das pessoas não se limitam às ideias
recebidas, de espírito aberto. Já têm as suas ideias feitas, os lugares-comuns
eternos!
Sam
e Lee, filósofos da vida, são dois observadores do mundo, homens sérios que aceitam
as ideias (e as pessoas) tal como são.
E sabem que o que é diferente do que pensamos, pode ser importante! E não
devemos ter medo que nos “desequilibrem”…
Lee
criou os gémeos desde que a mãe, Cathy, os abandonou e que Adam, perdido no seu
desgosto, se tornara indiferente a tudo, sobretudo aos filhos.
A
conversa sobre os irmãos desavindos, Abel e Caim, (pg.314-315) surge, como
disse, no momento de dar um nome aos dois meninos já com seis meses. Sam viera impor
um “nome”: era tempo!
-
Não saio daqui enquanto não tiverem um nome!
Chamar-lhes
Abel e Caim? Não podia ser! Escolhem então Aaron e Caleb. Neste conteúdo, é
como se antecipasse o futuro: por que razão Adam prefere Aron a Caleb?
Caim e Abel, por James Tissot
Tal
como Jeovah preferiu as oferendas de Abel às de Caim, também Adam prefere as de
Aron às de Cal. Aron nem dá por essa preferência, mas Cal sofre.
Marc Chagall, Auto-retrato, 1914
Marc Chagall
E
um dia aparece a suave e bela Abra, ainda adolescente, que prefere o pequeno Aron. Preferirá mesmo? O destino intromete-se
porque não é simples amar e não ser amado.
E voltamos a Aron e Cal os gémeos
cujo destino é triste. Por que razão Adam preferiu Aron a Caleb? E ofendeu-o,
recusando a sua oferta. E Cal espera o momento da vingança.
Marc Chagall
A
condição humana é esta: temos o destino marcado? Temos de matar, odiar,
desprezar? Ou podemos fazer de outro modo?
-
Há uma palavra que pode salvar a
humanidade. Timshel! – ensinará,
mais tarde, Lee.
O
que significa realmente este tempo verbal? Cada Bíblia o traduz a seu modo, cada língua é diferente e as traduções sobrepõem-se
sobre o texto em hebraico. Por isso, para entender o significado dos 16 versos que
são fundamentais para a compreensão da condição humana, Lee e os velhos tios sábios,
vão estudar hebraico durante dois anos.
“Estes 16 versos são a história
da humanidade em qualquer tempo, ou cultura, ou raça. (…) É um meio de subir às
estrelas”, diz Lee.
E,
uns aos mais tarde, Sam Hamilton e Lee falam da força dessa palavra, enquanto Adam
Trask os ouve distraidamente.
“A palavra hebraica ‘timshel’ quer dizer
‘tu podes fazer’ (Thou mayest). Que deve ser a palavra mais importante do
mundo. Que nos diz que o caminho está aberto. Porque ‘thou mayest’ –tu
podes- é tão verdade como ‘thou mayest
not’, tu podes não fazer!”, diz Lee. “A
possibilidade da escolha “engrandece” o homem que entende isso…”
“Já pensaste na glória de
escolher! (…) Faz do homem um homem. Um gato não tem escolha e a abelha deve
fazer mel. Nada de divino nisto.” (306).
E
continua, entusiasmado: “Não podemos
esquecer nem perder isto porque impede a existência da fraqueza e da covardia e da preguiça!”
Implica
a responsabilidade e impede a entrega do homem à fraqueza, ao fatalismo das
situações ou à covardia nas atitudes a tomar.
“(…) dá
ao homem a estatura dos deuses porque na sua fraqueza e maldade, ou assassínio
do outro, ela dá-nos a possibilidade da escolha. (East Of Eden, Penguin Book, pg. 305)”
Impede-nos
de adormecer “entregando-nos nos braços
dos deuses” justificando as nossas desistências ao dizermos: “Ah, não
posso fazer nada, estava decidido assim”.
Perto
do fim, Adam Trask recorda a Lee:
“Lembro-me do dia em que
discutiste com Sam Hamilton a propósito de uma palavra.
- A palavra era ‘timshel’.
- ‘Timshel’, sim. Tu disseste…
- Sim, eu disse que esta palavra
engrandecia o homem que a soubesse compreender.
- Lembro-me que Sam ficou feliz.
- A palavra libertara-o, disse
Lee. Dera-lhe o direito de ser um homem
com o seu destino diferente do dos outros homens.”
É
a palavra-chave do romance: ‘podes’. É, aliás, com esta palavra que se fecha o
romance.
Livro
de amor e da dificuldade de amar. Da dificuldade de crescer e do sofrimento que
implica amar; das feridas que deixa a adolescência; dos gestos que nos magoaram;
dos gestos que não fizemos porque tivemos medo de os fazer, ou por vergonha de mostrar
a nossa sensibilidade ou fragilidade, a incerteza ou a nossa insegurança.
Livro
onde se cruzam destinos, dúvidas, amores e desamores. Fazer os gestos que
ajudam, apoiam, que podem pesar na
felicidade dos outros nem sempre é simples. Não os fazer pode conduzir ao
sofrimento ou à morte de alguém. E aos remorsos que teremos depois.
A
esperança reside na figura de Samuel Hamilton, o grande sonhador, o homem humano. Que não esquece os gestos que
são importantes, os que nos custam a fazer, muitas vezes porque, no nosso
orgulho e convencimento, julgamos que nos diminuem.
Mas,
concluímos que são os gestos que resgatam a humanidade, “num mundo de luta e de cólera, com os seus impulsos de fraternidade e
as suas quedas.” (pg.603)
Gestos
que podemos escolher: os que trazem o bem ou o mal. Os que são certos ou
injustos. Os que trazem a paz durante a vida, ou apenas no seu final.
-
Timshel… Tu
podes!
* * *
John
Ernest Steinbeck nasceu em Salinas, condado de Monterey em 27 de Fevereiro de 1902
e morreu em Nova Iorque em 20 de Dezembro de 1968. Amanhã passam 47 anos sobre a sua morte.
Em
1955, Elia Kazan realiza um filme baseado no livro de Steinbeck, com guião de Paul Osborne. Nos principais papéis, James Dean, Richard Davalos e Julie
Harris.
James Dean, Richard Davalos
Reler Steinbeck ou escritores da sua altura é muito mais interessante que embarcar-se num livro novo que pode ser um chasco e uma perda do nosso precioso tempo. Eu faço o mesmo.
ResponderEliminarDe tanta boa pergunta,respondo a uma, "aceitar as coisas tal como são": aos meus recem - estreados 71 anos resigno-me com a minha insignificância, o amor dos meus, a certeza triste de que não está nas minhas mãos fazer nada pelo mundo,e a sensação de que sou livre por dentro enquanto permanecer lúcida ...
Nada mais posso e sei fazer do que procurar viver em paz, sem remorsos nem contrições,o que já é alguma coisa....
Um beijo enorme, sinto-te muito activa intelectualmente, bravo por ti.
Li quando quando tinha 17 ou 18 anos...Não sei se ainda estará cá por casa. Estará na altura de o reler, com os olhos de hoje...
ResponderEliminarContinuação de boas festas.