sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

Reler “A Leste de Paraíso”, de John Steinbeck


René Magritte

Este livro lê-se de um fôlego, apenas com paragens para respirar fundo, porque sentimos a necessidade de pensar e de repor em questão muitas coisas que julgávamos decididas.
Gentes vindas de lugares longínquos do mundo, tentam a difícil conquista do Oeste americano. Lutando, aprendendo, caindo, matando e morrendo. Amando e odiando.
Páginas de vida, de sofrimento, de procura, de dúvida e de desistência. E de vontade de continuar. Conhecemos, assim, a história dos Trask e dos Hamilton e das suas vidas, a leste de Paraíso. Cyril Trask e os filhos, Charles e Adam. Samuel Hamilton e os nove filhos.
Vale Paraíso

Paraíso (o “Eden”) é uma região, Vale Paraíso, ou Vale do rio Salinas, perto da cidade de Salinas, mas é também “o paraíso” da Bíblia. A região onde John Steinbeck nasceu e onde situa muitas das suas histórias. A personagem de Samuel é, na realidade, o avô materno de John Steinbeck. 
 Salinas, Califórnia
E Caim anda errante pela terra e vai habitar o país, a leste de Eden”. (Génesis, Cap. IV, 16)
Livro dramático - entristece-nos? Não, porque nos anima nas nossas convicções. Gritamos, ainda com mais veemência, que cada homem pode fazer alguma coisa, e que há gestos que contam. Portanto, nem tudo é inútil nesta luta.

Movem-se no livro, personagens que nunca esqueceremos. Samuel Hamilton, o irlandês, que deixou a sua terra natal por causa de um desgosto de amor e que decidiu vencer a infelicidade e reconstruir tudo do princípio. Com uma mulher boa e corajosa que ele não amava mas respeitava. Noutro lugar novo, em terra pobre onde nada crescia mas onde, cada dia, ele inventava uma coisa nova. 
tempestade de areia, Califórnia, 1936


Poeta sonhador, inventor de máquinas e utensílios para facilitar o trabalho agrícola, para furar poços à procura de água – milhentas coisas de que nunca tirava nenhum proveito, que nunca lhe pagavam, nem ele pensava nisso. Bastava-lhe o prazer de criar e de dar, com o riso nos olhos, a bondade eterna e a paciência de santo. Não porque fosse idiota, mas porque se escolheu assim. Era um poeta.
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 O poeta, de Marc Chagall

Quis construir o seu caminho na generosidade e na procura do outro, não atraiçoando o que escolhera. A mensagem é ampla: “nós podemos fazer a nossa vida porque nós podemos escolher”.
Tu podes” (trata-se da interpretação da  palavra hebraica timshel) foi a frase que guardei. Numa conversa, a propósito do nome a dar aos dois filhos de Adam Trask, gémeos sem mãe ainda sem nome, Sam Hamilton e o empregado chinês, Lee, interpretam uma passagem da Génesis: o episódio de Abel e Caim. Caim ofende-se porque Jeovah prefere o carneirinho de Abel, e mostra má cara. Jeovah repreende-o:
“Se fizeres o bem, não terás recompensa? E se fizeres o mal, não estará o pecado logo à porta? E tentar-te-á. Mas tu dominarás sobre ele.” (Génesis, IV, 7). Noutras traduções, a última frase aparece como “tu vencê-lo-ás”. A promessa de “poder vencer”? Ou apenas “impor a obediência”? Há sempre um momento em que decidimos ser isto ou aquilo: ou não ser. Pela negativa, talvez seja mais fácil entender.
O mal e o bem o que são? Acontecem as coisas fatalmente? O destino será mesmo irrevogável : um “fado” (fatum)?
A resposta, para o autor, é não. Porque nós podemos escolher “isto” ou “aquilo”.
Escreve muito bem Steinbeck. Quem não gostaria de escrever assim? E nos seus livros está a humanidade “em cheio”.
Faz os gestos”, recomendava Sam Hamilton. “Os gestos da compreensão e do amor, mesmo que pareçam inúteis, faz os gestos que te aproximam do outro”.
 “Momentos de graça”, pensa o autor, “Em que te sentes tão bem contigo próprio e com o mundo que tudo te parece possível realizar”.
E, de repente, vem a dúvida e interrogas-te: mas para que existe o mundo? E a maldade, the evil, porque existe no mundo? (pg. 192). É difícil a resposta.
Sam interroga-se: por que devemos nós corresponder às ideias dos “outros”? E os irlandeses - os estrangeiros -  porque devem esconder a sua tristeza apenas porque os outros esperam que eles bebam e estejam alegres?
E Lee, o criado chinês, estudioso e culto, prefere falar “tchin tchon” porque, se falar em inglês correcto, não o entendem, porque não estão à espera disso. Na sua filosofia tranquila, não se importa.
Samuel não entende porquê e Lee, num inglês correctíssimo, explica: “Contigo posso falar normalmente porque não és como os outros. Tu não tens ideias preconcebidas: aceitas as coisas tal como são e não esperas que elas sejam aquilo que tu pensas que são.”

Quantas ideias preconcebidas “temos” todos os dias, a todas as horas! Todos “achamos” que os outros são aquilo que nós pensamos que eles são. Porque a maior parte das pessoas não se limitam às ideias recebidas, de espírito aberto. Já têm as suas ideias feitas, os lugares-comuns eternos!

Sam e Lee, filósofos da vida, são dois observadores do mundo, homens sérios que aceitam as ideias (e as pessoas) tal como são. E sabem que o que é diferente do que pensamos, pode ser importante! E não devemos ter medo que nos “desequilibrem”…
Lee criou os gémeos desde que a mãe, Cathy, os abandonou e que Adam, perdido no seu desgosto, se tornara indiferente a tudo, sobretudo aos filhos.
A conversa sobre os irmãos desavindos, Abel e Caim, (pg.314-315) surge, como disse, no momento de dar um nome aos dois meninos já com seis meses. Sam viera impor um “nome”: era tempo!
- Não saio daqui enquanto não tiverem um nome!
Chamar-lhes Abel e Caim? Não podia ser! Escolhem então Aaron e Caleb. Neste conteúdo, é como se antecipasse o futuro: por que razão Adam prefere Aron a Caleb?
Caim e Abel, por James Tissot
Tal como Jeovah preferiu as oferendas de Abel às de Caim, também Adam prefere as de Aron às de Cal. Aron nem dá por essa preferência, mas Cal sofre.

 Marc Chagall, Auto-retrato, 1914

 E vão crescendo separados e muito diferentes. “Cal é escuro, duro e observador”, explica Lee a Samuel, que os não vê há muito. “Aron é um rapaz de quem se gosta antes de lhe falarmos e mais ainda, depois. Cal tem de lutar pela vida enquanto o irmão não precisa de lutar e tem tudo.”

 Marc Chagall

E um dia aparece a suave e bela Abra, ainda adolescente, que prefere o pequeno Aron. Preferirá mesmo? O destino intromete-se porque não é simples amar e não ser amado. 
 Marc Chagall

E voltamos a Aron e Cal os gémeos cujo destino é triste. Por que razão Adam preferiu Aron a Caleb? E ofendeu-o, recusando a sua oferta. E Cal espera o momento  da vingança.

A condição humana é esta: temos o destino marcado? Temos de matar, odiar, desprezar? Ou podemos fazer de outro modo?
- Há uma palavra que pode salvar a humanidade. Timshel! – ensinará, mais tarde, Lee.
O que significa realmente este tempo verbal? Cada Bíblia o traduz a seu modo, cada língua é diferente e as traduções sobrepõem-se sobre o texto em hebraico. Por isso, para entender o significado dos 16 versos que são fundamentais para a compreensão da condição humana, Lee e os velhos tios sábios, vão estudar hebraico durante dois anos.

“Estes 16 versos são a história da humanidade em qualquer tempo, ou cultura, ou raça. (…) É um meio de subir às estrelas”, diz Lee.
E, uns aos mais tarde, Sam Hamilton e Lee falam da força dessa palavra, enquanto Adam Trask os ouve distraidamente.
A palavra hebraica ‘timshel’ quer dizer ‘tu podes fazer’ (Thou mayest). Que deve ser a palavra mais importante do mundo. Que nos diz que o caminho está aberto. Porque ‘thou mayest’ –tu podes- é tão verdade como ‘thou mayest not’, tu podes não fazer!”, diz Lee. “A possibilidade da escolha “engrandece” o homem que entende isso…”

“Já pensaste na glória de escolher! (…) Faz do homem um homem. Um gato não tem escolha e a abelha deve fazer mel. Nada de divino nisto.” (306).

E continua, entusiasmado: “Não podemos esquecer nem perder isto porque impede a existência da fraqueza e da covardia e da preguiça!”
Implica a responsabilidade e impede a entrega do homem à fraqueza, ao fatalismo das situações ou à covardia nas atitudes a tomar.
 “(…) dá ao homem a estatura dos deuses porque na sua fraqueza e maldade, ou assassínio do outro, ela dá-nos a possibilidade da escolha. (East Of Eden, Penguin Book, pg. 305)”
Impede-nos de adormecer “entregando-nos nos braços dos deuses” justificando as nossas desistências ao dizermos: “Ah, não posso fazer nada, estava decidido assim”.
Perto do fim, Adam Trask recorda a Lee:
“Lembro-me do dia em que discutiste com Sam Hamilton a propósito de uma palavra.
- A palavra era ‘timshel’.
- ‘Timshel’, sim. Tu disseste…
- Sim, eu disse que esta palavra engrandecia o homem que a soubesse compreender.
- Lembro-me que Sam ficou feliz.
- A palavra libertara-o, disse Lee. Dera-lhe o direito de ser um homem com o seu destino diferente do dos outros homens.”
É a palavra-chave do romance: ‘podes’. É, aliás, com esta palavra que se fecha o romance.

Livro de amor e da dificuldade de amar. Da dificuldade de crescer e do sofrimento que implica amar; das feridas que deixa a adolescência; dos gestos que nos magoaram; dos gestos que não fizemos porque tivemos medo de os fazer, ou por vergonha de mostrar a nossa sensibilidade ou fragilidade, a incerteza ou a nossa insegurança.
Livro onde se cruzam destinos, dúvidas, amores e desamores. Fazer os gestos que ajudam, apoiam, que podem pesar na felicidade dos outros nem sempre é simples. Não os fazer pode conduzir ao sofrimento ou à morte de alguém. E aos remorsos que teremos depois.
A esperança reside na figura de Samuel Hamilton, o grande sonhador, o homem humano. Que não esquece os gestos que são importantes, os que nos custam a fazer, muitas vezes porque, no nosso orgulho e convencimento, julgamos que nos diminuem.
Mas, concluímos que são os gestos que resgatam a humanidade, “num mundo de luta e de cólera, com os seus impulsos de fraternidade e as suas quedas.” (pg.603)
Gestos que podemos escolher: os que trazem o bem ou o mal. Os que são certos ou injustos. Os que trazem a paz durante a vida, ou apenas no seu final.
- Timshel… Tu podes!
*  *  *
  

John Ernest Steinbeck nasceu em Salinas, condado de Monterey em 27 de Fevereiro de 1902 e morreu em Nova Iorque em 20 de Dezembro de 1968.  Amanhã passam 47 anos sobre a sua morte.


Em 1955, Elia Kazan realiza um filme baseado no livro de Steinbeck, com guião de Paul Osborne. Nos principais papéis, James Dean, Richard Davalos e Julie Harris.
 James Dean, Richard Davalos

2 comentários:

  1. Reler Steinbeck ou escritores da sua altura é muito mais interessante que embarcar-se num livro novo que pode ser um chasco e uma perda do nosso precioso tempo. Eu faço o mesmo.
    De tanta boa pergunta,respondo a uma, "aceitar as coisas tal como são": aos meus recem - estreados 71 anos resigno-me com a minha insignificância, o amor dos meus, a certeza triste de que não está nas minhas mãos fazer nada pelo mundo,e a sensação de que sou livre por dentro enquanto permanecer lúcida ...
    Nada mais posso e sei fazer do que procurar viver em paz, sem remorsos nem contrições,o que já é alguma coisa....
    Um beijo enorme, sinto-te muito activa intelectualmente, bravo por ti.

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  2. Li quando quando tinha 17 ou 18 anos...Não sei se ainda estará cá por casa. Estará na altura de o reler, com os olhos de hoje...
    Continuação de boas festas.

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