sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Vai chegar o Natal e faltam os amigos!

Edouard Manet, Jarra com rosas e tulipas

Quando os amigos morrer, chega o Natal e falta-nos alguma coisa. Sim, vai para o segundo natal que morreu um amigo, um amigo bom, inteligente e sensível, dedicado aos seus amigos. Nunca recebemos postais de boas festas tão delicados como os que ele enviava, com uma palavra especial, não as palavras comuns das felicitações, quase obrigação, que recebemos e mandamos.

Sim, um amigo. O Agostinho Castro. Gostaria de falar um pouco dele, pessoa de personalidade fina e reservada, capaz de admirar sem inveja, capaz de ler para aprender mais, ou para nos aconselhar. 
Uma vez disse-me, a propósito das pessoas que procuram uma "solução" que sabem não existir ou ser difícil de encontrar: "não poderemos resolver tudo, nem valer a tudo, mas que algo poderemos fazer, sim. Como soubermos. E porque, afinal, parece, já nascemos bastante sábios."
Edouard Manet, Evasão

Sim, bastante sábio era, mas sempre insatisfeito. Que ambições tinha de escrever, de publicar o seu livro, ele que sabia tão bem ler os livros dos outros e "abri-los". Conhecia os bons escritores, apreciava-os em todas as faces e ângulos. Observava, imaginava e "revivia" dentro de si o que lia. E quando falava deles, quantas vezes não estaria a falar de si? O que sonhou? Quantos moinhos de vento lutaram contra ele? Quantos venceu?
Edouard Manet, Moinhos na Holanda

Durante uns anos, escrevi-me regularmente com ele. O Agostinho, em Guimarães, eu, em São João, gostávamos de falar de livros e eu apreciava muito a sua opinião sobre as 'coisas' que ia escrevendo. Aconselhava-me, sugeria delicadamente, aprovava às vezes com entusiasmo quase infantil. Falava do livro que gostaria de escrever.
Sabia ver a beleza, procurava-a, entendia-a, amava-a. Mas não só a beleza: a honestidade também e a seriedade dos artistas verdadeiros. Porque ele respeitava os escritores sinceros. Conhecia a pintura e gostava dos artistas verdadeiros.
Berthe Morisot, Tarde no campo

De facto, escrevia-me, em 2008:
"(...) devemos um agradecimento ao escritor sincero porque nos ajudou nas lembranças, ou porventura algo de novo nos ensine, mas sóbrio por sabermos também que, antes de mais, o escritor escreveu para si próprio e que a emoção maior, a própria alegria do que estava a escrever, como o ver, ou redescobrir, antes de nós nesse mundo diferente, já ele a teve."

Em 2004, foi um dos primeiros leitores dos meus livros policiais inéditos – talvez um dos poucos que leu o meu 'segundo' livro. Eu era uma neófita nos escritos literários e ele animou-me a continuar.

"Ali, a páginas tantas, eu lia e parecia-me ouvir a voz daquele detective Marlowe de que passavam filmes na televisão (...) lembro-me que em certa altura li dessa literatura em que precisava de conhecer outros mundos, citadinos, de lugares distantes, o que pensava e sofria essa gente, que tipo de problemas poderia haver que para ela fossem talvez insolúveis. No fundo, que 'mensagem' tinha para o que eu procurava, se eram mundos universais ou tão só pequenos mundos fechados.. É claro, as conclusões nunca as as tiramos logo. Lemos outras coisas, mudamos, até sem dar conta, porquê?, porque estamos sempre a procurar, porque há muito a procurar."
Empurrava-me em frente, entusiasmando-me para continuar a escrever, e ser livre, sem me preocupar com o facto de não me lerem. 
E dizia ele - a propósito da carta que lhe escrevi sobre essa primeira experiência policial, em que lhe confiei que, nos dois heróis principais, "pretendera" pôr os meus filhos, tal como os via.

"Há no que se escreve, quando autenticamente, e nos permitindo a construção de um mundo autónomo, aquilo que são os nossos valores as emoções que tivemos, os sonhos que alimentámos, as pessoas que realmente nos dizem."

E, à espera da segunda parte do novo policial, escrevia com o humor (por vezes bem negro) que nunca o abandonou: "Espero que chegue essa parte já escrita do seu outro romance policial, sobretudo na minha especialidade de "detective de gralhas". De facto, era minucioso a corrigir as gralhas, as distracções ou os erros.
Nunca mais esqueci uma coisa que me disse sobre uma personagem desse livro (ainda sem nome definido, talvez Morte em Roma), que eu pretendia "afogar" num jacuzzi : Não, Maria João, não lhe faça isso. Ela já sofreu tanto!”
E salvei-a! Sorri na altura e sorrio agora, com tristeza: um amigo que vai embora é uma coisa tremenda!

Em Junho de 2006, dizia-se desiludido com os “novos” escritores: “Ando (ainda!!!) a ler coisas. Já leio muito menos –sinto que cheguei a um ponto em que tenho de dizer que o que tinha para aprender já aprendi – ou conheci (…) É bom isto. Este patamar de conhecimento. E não me angustia o (este quase já) não ter de ler. Mas ainda leio. Isto e aquilo. Com calma, sempre a atenção, o interesse, mas já não me surpreendendo de, na avaliação, ter de o fazer por menos, porque estão a dizer o já há muito dito, porque (quantas vezes!) apenas exploram a ilusão do leitor ignorante.” 
Sentia-se defraudado o meu amigo por certos “novos” escritores que se "aproveitavam" das modas, do "fácil", do "acessível". Era exigente o o Agostinho. E penso no que escrevia Régio, em 1964 (*): 
 “A maior parte dos pretensos poetas de hoje carecem quase totalmente de ingenuidade. De íntima e transcendente ingenuidade. Por isso não são poetas.” 
Ambos exigiam a autenticidade!

"Há no que se escreve, quando autenticamente (...) aquilo que são os nossos valores as emoções que tivemos, os sonhos que alimentámos."

Falava da sinceridade e da originalidade, daquilo que é nosso e que só do que "sabemos" devemos escrever. E que, no fim e ao cabo, toca os outros porque, na verdade, encontramos um mesmo mundo -quando falamos dele com verdade. Os homens anseiam, esperam, sofrem, amam. 
Os mundos dos homens na sua profundidade são iguais. E o Agostinho dizia - e era verdade:
"(...) vivemos a pensar, escrevendo ou não, que temos um mundo só nosso, e quanto lemos vemos que os nossos mundos são todos iguais."

Um amigo, sim. Era também um leitor atento do que os amigos escreviam, um conselheiro, um "editor", com uma paciência enorme para ler, sugerir e corrigir! 

Uma pessoa que procurava, que procurava sempre: "Lemos outras coisas, mudamos, até sem dar conta, porquê?, porque estamos sempre a procurar, porque há muito a procurar."

Em Julho de 2008, a propósito da literatura sincera de Karen Blixen, escrevia:
"(...) sobre a evocação de sentires puros, pouco ou nada a um leitor se oferece dizer. Identifica-se com eles. E é então isso que pode dizer a quem escreveu. O que penso que deveria ser com todos os livros. Que o autor tenha falado claro, sido sincero consigo, deverá saber quanto o que escreveu será a própria vida, uma vida que o leitor há-de ver como a sua própria." 
"Porque todos vivemos a pensar, escrevendo ou não, que temos um mundo só nosso, e quanto lemos vemos que os nossos mundos são todos iguais. É então da iluminação dessa verdade que o leitor agradece a quem escreve. Mas também mostrando que sendo sóbrio e verdadeiro, porque em sinceridade toda a resposta que a um escritor deveríamos dar só deveria ser assim: Sim, percebi tudo, é verdade. Escreveu-o bem. E, sim, obrigado por o ter escrito, porque me veio ajudar a ver melhor. Ou, a ver novamente."


E, ainda, José Régio: "Cada vez mais me convenço de que toda a verdadeira arte é humana, e afunda as raízes nas entranhas do criador. Só assim provoca profundas ressonâncias no leitor.”

Por isso, tem razão Agostinho: "e quanto lemos vemos que os nossos mundos são todos iguais. É então da iluminação dessa verdade que o leitor agradece a quem escreve."

Na mesma carta, escreve, de modo sóbrio e sensível, de outros contos.
"Eu vivi aquilo. Textualmente. A chuva, o seu cantar, a sua velocidade, as ondinhas estreitas margens dos regos, saltando pedritas... E as tábuas do soalhos com os buracos, assombras, o escurecer quando uma nuvem passava. E a contemplação das árvores altas, o vento a passar nelas, a desejar saber o que estava para lá..."
E mais:
"Porque todos vivemos a pensar, escrevendo ou não, que temos um mundo só nosso, e, quanto lemos, vemos que os nossos mundos são todos iguais."


Em 2009, a nossa correspondência começou a rarear. Preguiça de escrever? A internet que começava a  absorver-nos tanto? Culpo-me disso.
Fomos-nos encontrando, com todos os amigos, na Guarda, em Guimarães, no Porto, e até esteve em nossa casa com a minha amiga Lívia.
Em Agosto de 2009, depois de ler as minhas histórias de São Tomé, responde-me, brincando, como se fosse a "Milly", a minha cozinheira são-tomense de que eu tanto falo.
"Da Milly para a Dôtôra, venho agradecer à Dôtôra os livrinhos que me mandou das suas escritas onde também fala de mim. A Dôtôra era uma pessoa boa, amiga. Mas eu era uma fúria, é verdade. Acho que agora já não sou."
Continua, normalmente, a falar-me dessas minhas histórias de África, chamando-me sempre DôtôraE aconselha-me uma leitura:
"(...) já agora, gostava de referir à Dôtôra um livro que acabo de ler, é "Rumo ao Farol", de Virginia Woolf. Aconselho-lho sinceramente. Se ainda não o leu, aconselho (que leia). A Dôtôra vai lá encontrar muito do que é a sua própria sensibilidade, muito de si. É da Relógio de Água."

Virginia Woolf, pela irmã Vanessa Bell

De facto, o livro saíra, no ano anterior, bela tradução de Mário Cláudio. No fundo, o Agostinho era o leitor comum a que se dirigia Virginia Woolf!

E fala das mulheres-escritoras, que admirava: "Lembro-me de 'Jane Eyre', a sensibilidade das escritoras, das mulheres, quando se dão à escrita. É realmente outro mundo, tão profundo como o dos homens (escritores), e porém quão na verdade muito mais sereno. A observação delas sem fim... 

(...) VirginiaWoolf diz lá tudo o que é a questão humana:, e que eu nunca tinha encontrado em ninguém, numa simples expressão. É, na página 40: "vir em auxílio do homem que para sempre fica à porta do ascensor. Isto diz a grande escritora, a mesma socialista, humanista".

E o meu amigo, na voz da “Milly”, despede-se de mim: "A Dôtôra que andava só a ouvir, afinal respeitava tanto as nossas palavras distraídas."
Comoveu-me reler as cartas do meu amigo! O meu amigo optimista, que acreditava na bondade do homem, e pensava que devíamos acima de tudo "identificar nisso uma natureza que nos dotou de bondade."
Bondade sim. A lembrar talvez a criança que foi - que fomos. 
"Ah! a criança, essa!", diria ele, "essa criança permanece em nós, se nós deixarmos..." 
desenho de  Zélia Falcão
"Acho que continuamos hoje a ser assim. A olhar o mundo com o mesmo desejo de compreender, de ver além. E talvez o que devamos fazer antes de mais é identificar nisso uma natureza que nos dotou de bondade. E já sabemos o que segue: que não poderemos resolver tudo, nem valer a tudo, mas que algo poderemos fazer. Como soubermos.”


Numa carta, de finais de Setembro, fala do Outono que amava. "Entrei hoje nas minhas férias de Outono, já quase habituais. Um tempo mais calmo."
Um dia, nos meus anos, ofereceu-me um pássaro de vidro que tenho guardado. Um pássaro de um belo amarelo-vivo, quase cor de laranja.

Hoje, tenho apenas as recordações e um molhinho de cartas, que guardei numa caixa bonita, cartas onde tudo o que ele escrevia tinha sentido. Sentido. Delicado. VerdadeiroComo esquecer a sua amizade? 
Um amigo é insubstituível. Deixa-nos mais sozinhos e o mundo fica mais vazio. 
Mas quero continuar a seguir o conselho que me deixa: "Olhar o mundo com o mesmo desejo de compreender, de ver além. (...) Sabemos o que segue: que não poderemos resolver tudo, nem valer a tudo, mas que algo poderemos fazer. Como soubermos.” Sim, como soubermos - mas sabendo que alguma coisa poderemos fazer! 

Lembro John Steinbeck, que leio neste momento, e me traz a  mesma forma de 'esperança': "podemos escolher, podemos fazer." 
"Porque  tu podes!" escreve Steinbeck (**). "Porque podemos  escolher e isso dá grandeza ao homem que o souber e fizer! " E essa é a diferença.
cena da Acácia Vermelha
Vi o Agostinho, pela última  vez, no Porto, na estreia de uma peça de Manuel Poppe, A Acácia Vermelha, encenada por Valdemar Santos.Na noite, um pouco enevoada, à porta do Teatro Sá da Bandeira, ouço-o protestar, indignado, contra as injustiças da vida, contra os “roubos” constantes do governo, contra os atentados à “cultura” verdadeira. Contra os aldrabões e vendilhões do Templo de todos os tempos e de todos os templos.

E o livro? Será que o Agostinho Castro escreveu o "seu" livro? 
Quem me  dera que sim! Tinha tanto para dizer e sabia escrever tão bem…

(*) Escreve José Régio, no dia 3 de Dezembro de 1964 (Páginas de Diário Íntimo, Imprensa nacional/Casa da Moeda)
(**) John Steinbeck : East of Eden (edição francesa Livre de Poche, páginas 150-155)

10 comentários:

  1. Respostas
    1. ~~~
      Foi um privilégio ter um amigo tão especial.

      Uma Quadra Natalícia Muito Feliz.

      ~~~ Abraço.~~~

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  2. Sinto muito, gostava de o ter podido conhecer, mas com este texto fiquei a saber um bocadinho como seria.
    um beijinho grande
    Gábi

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    1. O que é engraçado, Gábi, é que estiveste com ele, cá fora do Teatro Sá da Bandeira, na estreia da peça do Manuel! Só que é sempre uma confusão esses momentos. Um beijinho

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    2. Depois lembrei-me disso, que posso tê-lo visto nessa altura, mas não me lembro e fica a sensação de perda por não ter podido conhecê-lo mesmo.
      um beijinho.

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  3. O teu amigo (que bom é ter um amigo assim!) devia ser muito lúcido e sensível.
    A vantagem de ter lido uma quantidade importante de grandes obras, é que quando nos pomos a escrever estamos mais capacitados para reconhecer que tudo o que dizemos já foi dito, e muito melhor. Essa é a questão. "Porque vivemos a pensar, escrevendo ou não, que temos um mundo só nosso, e quando lemos, vemos que os nossos mundos são todos iguais".
    Por isso a humildade é sempre um plus que nos salva de muitas histórias...
    Beijinho grande

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  4. Uma sentida homenagem a um amigo.
    Quase todos nós vamos perdendo amigos
    que nos fazem muita falta.Eu relembro
    um amigo que perdi e que me deu a
    conhecer muita coisa que sem a
    sensibilidade que ele tinha, talvez
    me tivessem passado despercebidas.
    Saudades terei sempre. E o seu texto
    ajudou-me, em certa medida. a homenageá-lo.


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  5. Uma maravilha o seu post.
    Perder um bom amigo, uma pessoa que nos é muito querida, é uma parte de nós que perdemos para sempre. A primeira vez que isso acontece é o começo de um novo caminho: o da aceitação que daí para a frente o nosso mundo já não é igual e nunca mais vai ser o mesmo. Mas a vida continua e temos que aceitar o que ela nos dá.

    Um beijinho e continue a escrever as coisas bonitas que escreve:)

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  6. Maria João,
    Uma homenagem e despedida sentida.
    No Natal estará presente, certamente.
    O pássaro é muito original.
    O desenho é de um familiar seu, tia?
    É lindo.
    Beijinho.

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