quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

A brincar, ao canto das escadas…


Nunca me aborrecia de estar sozinha. Depois do almoço, nos dias em que não havia escola, gostava de ir brincar para o canto da sala, junto das escadas que subiam até ao sótão. Em frente, ficava uma janela, sempre fechada, onde não podia debruçar-me, como recomendava a minha mãe.
Uma das minhas tentações, muito pequenina ainda, era empoleirar-me nas costas do sofá e espreitar para a rua, quase deitada no parapeito da janela. Um dia a minha tia apanhou-me com a cabeça inclinada para baixo e o rabo no ar! 

Ainda há pouco me voltou a contar a história, com uma expressão de susto: “Ai, Maria João, peguei em ti e dei-te uma data de açoites! Tinha o coração na boca, tanto medo tive de não chegar a tempo.”
Uma vez foi a minha mãe que me agarrou, in extremis, na mesma janela. Costumava empurrar o sofá e punha-me de joelhos nas costas dele, a ver o que se passava lá em baixo. Outra vez, estava a fazer circo no parapeito da janela. 
Uma amiga da minha mãe, que morava ao fundo da rua, viu-me e mandou  a empregada avisar que eu estava no parapeito da janela do primeiro andar. A minha mãe desceu lá de cima a correr e  tirou-me. Levei mais açoites pela certa. Mas era teimosa e continuava sempre com essas aventuras.

Mania de ver o mundo nas alturas? É verdade que nunca tive vertigens e não me impressionaram as alturas. Gosto mais de olhar em frente. Era apenas curiosidade. Ou desafio?
Pequenina, era, claro, de uma inconsciência total. Adolescente, era já um desafio a mim própria. Penso que tinha medo, mas que queria confrontar-me com ele. Lembro-me de ter sonhado que estava à beira do telhado, ao pé da chaminé grande, a caminhar. Até 'vejo' as ervinhas que cresciam nos algerozes. 
Costumava vê-las da varanda quando íamos ler lá para cima, na Primavera. Um sonho, claro, creio que nunca me aventurei no telhado! Tão vívido no entanto que muitas vezes me perguntei se teria acontecido ou não, tão real o sonho!

Ia brincar para esse canto da janela, onde havia dois vasos com plantas altas. Sentava-me no primeiro degrau da escada e recortava bonecos de papel com uma tesoura sem bicos. Vendiam-se nas papelarias esta espécie de cadernos com uns bonecos para recortar e uns vestidos de papel que, depois, se “penduravam” em cima dos ombros das figuras.
Aborreci-me cedo com aqueles bonecos: qual a graça de os vestir, mudar de roupas, do Verão para o Inverno? Não era criativo, pensava. E eram feios, pesados, sem vida os bonecos.
Comecei, então, a desenhar os bonecos e a pintá-los eu com lápis de cor, de modo a poder fazer deles os actores das minhas histórias. E apareceram logo índios e cowboys, os heróis preferidos.
Nessas brincadeiras, conversava baixinho com os bonecos e eles davam-se murros, tiros, ou conversavam também.
Falavam de quê? Que histórias inventava? Não me lembro como é natural.
Às vezes, fazia uma concessão especial à minha irmã mais nova, e deixava-a vir brincar comigo. Fazíamos uma certa diferença de idade e eu achava-me “grande” ao pé dela. Líamos livros muito diferentes.

Ela gostava de andar  atrás de mim e, quando eu lia, ela trazia um livrinho e sentava-se ao meu lado.


Ou deitávamo-nos de barriga para baixo na carpete, de cotovelos no chão e desenhávamos eu com aguarelas, ela com os lápis de cor. Houve uma altura em que ela tinha a mania de desenhar bailarinas! E eu desenhava índios e cavalos!
Certos dias, eu fugia para a outra sala, mas ela vinha mais o seu caderninho, ou um livro, e ficávamos as duas. Quando brincávamos juntas, cada uma tinha os seus bonecos, claro. 
Punha-me no canto da escada e virava-me para a parede, e ela sentava-se, na outra ponta do degrau, a falar baixinho, imitando-me.
Sentia-me importante por ela me imitar, suponho, e acabava por ceder e ela vinha brincar comigo. E misturava os bonecos dela com os meus.
Há uns anos, voltei à velha casa da infância e tentei ver o que ficara das memórias tão vivas que tenho. Entrei, subi o primeiro lance de escadas, mas não consegui entrar na porta que abria para a cozinha, logo ao cimo dessas escadas. 

Desculpei-me pensando que a porta estava fechada. Em vez do trinco antigo, havia uma fechadura moderna. Tinham separado os dois andares. 
Quem sabe se não estaria gente detrás da porta? A verdade é que, a meio das escadas, parei. Não tive coragem de tocar a campainha com medo que alguém me abrisse?

O tempo foge, corre. Tudo ficou para trás, é verdade. No entanto, o que se viveu intensamente, não há tempo que o leve!


9 comentários:

  1. Tão bonitas estas memórias.
    Lembro-me dessas bonecas com vestidos, em papel. Eu também tinha e desenhava muitos vestidos para as que tinha e guardava em caixas de sapatos.

    Gostei muito de ver as fotos da linda menina e gostei imenso do desenho da bailarina, que a sua irmã fez. Tão bonito.

    Gosto muito destas suas histórias:)

    Um beijinho:)

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  2. ~~~
    «Nunca devemos votar ao lugar onde fomos felizes.»

    ~ De facto, podemos destruir memórias fantásticas...

    ~~ Como sempre, uma leitura muito agradável, MJ.

    ~~~~ Beijinhos. ~~~~
    ~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~

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  3. Magníficas memórias...entre elas o "nosso" Huck Finn...

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  4. Obrigada pelos comentários. As infâncias assemelham-se, as saudades são idênticas e voltar atrás...para quê? Não serve...

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  5. Comoveu-me tanto... foi mesmo assim... O que conta é a nossa lembrança, essa ninguém a leva para longe ! <3
    Mamé, que ainda sonha com bailarinas...

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  6. Maria João,
    Nem tenho palavras. Deve ser difícil entrar na casa da nossa infância. Os meus pais também deixaram a deles onde passei a infância e era uma casa que gostei muito. Saí de lá com 12 anos. Calculo a dificuldade em voltar.
    Gostei das memórias e do desenho da sua irmã.
    Beijinho especial. :))

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  7. Gostei muito de ler este texto e de ver as fotografias, também me fez pensar na minha infância, nas saudades, em como seria voltar a casas onde vivemos e também tenho uma irmã mais nova, além de uma irmã mais velha, e desenhámos e brincámos às vezes juntas.
    um beijinho
    Gábi

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  8. Precisamente porque as infâncias são parecidas, é bom que alguém no las recorde como fazes tu, com tanto geito e entusiasmo!
    Beijinhos, que tenhas um dia ameno apesar do que vai pelo mundo...

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