Havia lá por casa umas carteirinhas de papel “zig-zag”, o que quer dizer que também devia fazer os seus cigarros,
mas a maior parte do tempo sei que fumava um tabaco muito forte, “Unic” e, mais tarde, “Português
suave”.
Mas fumava apenas os cigarros até metade, apagando-os, devagarinho, no
cinzeiro, por causa dos fogos, de que teve sempre terror.
A
Rosalina era uma miúda do campo, que tinha vindo das Carreiras, muito novinha,
servir, como se dizia nessa altura, para nossa casa. Quando chegou, tinha umas tranças
enroladas, fazendo um rolinho, na nuca, e os cabelos claros e muito
ondulados, soltavam-se, frisando, na testa e no pescoço, muito brancos.
As
sobrancelhas eram finas, sempre franzidas, numa expressão preocupada, e tinha sardas na cara quando apanhava sol. Foi ela que, mais tarde, me ensinou
o truque das uvas verdes para aclarar essas manchas que eu também tinha. Era doce, ingénua, muito
dedicada à minha mãe.
Imaginava-a ao sol, com as irmãs, a ceifar o trigo ou na monda. Todas loiras e com vestidos vermelhos. Eu era uma romântica idealista. A vida dela não era bem assim. Nem a nova segunda vida que tivera ao pé de nós era idílica. Mas a Rosalina casou, teve a sua terceira vida, feliz e menos feliz. Morreu há poucos anos e guardou até ao fim o mesmo sorriso e o olhar ingénuo. E o amor pelos que ajudou a criar.
Imaginava-a ao sol, com as irmãs, a ceifar o trigo ou na monda. Todas loiras e com vestidos vermelhos. Eu era uma romântica idealista. A vida dela não era bem assim. Nem a nova segunda vida que tivera ao pé de nós era idílica. Mas a Rosalina casou, teve a sua terceira vida, feliz e menos feliz. Morreu há poucos anos e guardou até ao fim o mesmo sorriso e o olhar ingénuo. E o amor pelos que ajudou a criar.
Um
dia, veio dos 'mandados', muito nervosa e
a choramingar. Ninguém conseguia tirar-lhe uma palavra, e quando começou
a falar, não se percebia o que ia dizendo porque tapava a cara com o lenço para
enxugar as lágrimas e abafar os soluços.
A
minha mãe, com suavidade, foi-a acalmando. E então ela contou que tinha
encontrado um “magala” na rua e ele dissera-lhe uma graça, e perguntara se
queria namorar com ele.
Ficou
tão envergonhada por ele se ter metido com ela, que veio para casa, vermelha, afogueada e a chorar.
-
O que é que o soldado terá pensado de mim, minha senhora, para me falar desta maneira?
E chorava, desconsolada.
A
Florinda ouvia-a e abanava a cabeça, porque a Florinda tinha ciúmes da
Rosalina, desde o primeiro dia em que ela apareceu lá em casa.
Todas
as manhãs, a Rosalina vinha lavar o sobrado da sala onde eu estava a estudar.
Esfregava-o com sabão amarelo que cheirava a limpo, deixava-o secar, punha cera
e mais tarde puxava o brilho. Depois, limpava o pó.
Eu
ia olhando para ela e fingia que estudava, mexia nos cadernos e nos livros em
cima da mesa, cantarolando. Afiava os lápis e arrumava-os no estojo de
couro novo, que recebera no Natal, com uma caneta de tinta permanente, lápis de cor e
borrachas.
De vez em quando ia até à janela e ficava a olhar para fora. Depois ia à cozinha buscar fruta ou pão com manteiga e entretinha-me mais uns minutos.
A Florinda estava a descascar batatas para o almoço e cantarolava, virada para a janela que dava para o jardim do nosso vizinho "valete de paus".
De vez em quando ia até à janela e ficava a olhar para fora. Depois ia à cozinha buscar fruta ou pão com manteiga e entretinha-me mais uns minutos.
A Florinda estava a descascar batatas para o almoço e cantarolava, virada para a janela que dava para o jardim do nosso vizinho "valete de paus".
Voltava a sentar-me e a Rosalina a dizer-me:
-
Menina Maria João, não se distraia, faça os deveres, senão depois logo não quer
ir à escola e a sua mãezinha zanga-se...
Ela
sabia que martírio, para mim, ter de ir à escola, pois era ela que me
acompanhava. Lá íamos, de mão dada, depois do almoço. Eu sempre sem vontade e a virar-me para trás para ver a minha mãe à janela.
-Já estudei tudo!, respondia-lhe, a ver se ela ficava descansada e se calava. Onde estariam as minhas irmãs?, pensava eu.
A pequenina ainda não ia à escola, tinha uma sorte! A mais velha devia ter ido à professora dela, ao pé da Rua Direita, toda bem arranjadinha como ela gostava.
E todas as manhãs era a mesma conversa:
A pequenina ainda não ia à escola, tinha uma sorte! A mais velha devia ter ido à professora dela, ao pé da Rua Direita, toda bem arranjadinha como ela gostava.
E todas as manhãs era a mesma conversa:
-Menina,
não esteja na brincadeira. Olhe que a sua mãezinha...
E eu arrastava mais um bocadinho os cadernos pela mesa. Não me apetecia estudar! Fui-me sentar no quarto.
E eu arrastava mais um bocadinho os cadernos pela mesa. Não me apetecia estudar! Fui-me sentar no quarto.
A verdade é que, um belo dia, a Rosalina decidiu aproveitar as pontas dos cigarros do meu pai, que
encontrava aos montes, quando despejava os cinzeiros, de manhã. Passou a guardar essas “beatas”, religiosamente.
Quando foi à terra, pediu licença à minha mãe para levar os cigarros fumados. A minha mãe perguntou, curiosa:
-
Para que queres tu estes restos, Rosalina?
-
São para o meu pai. Vou desmanchar os cigarros do senhor doutor. Ponho-os
numa bolsinha e, no domingo, levo-lhos. Ele gosta muito de
fumar e tem pouco dinheiro para esses vícios.
E
ria-se, com o seu ar ingénuo, contente por ter tido esta ideia ajudámo-la, fazendo montinhos com o tabaco depois de rasgar e deitar fora o papel.
Lá voltei a imaginá-la no campo, ao pé das searas maduras, feliz por trazer uma prenda ao pai...
Lá voltei a imaginá-la no campo, ao pé das searas maduras, feliz por trazer uma prenda ao pai...
A
Florinda espreitava-nos e ouvia, interessada, as explicações dela. De repente, exclamou:
-
Que estúpida que eu sou!
-
Estúpida por quê?, perguntei eu, não achando nada que ela o fosse.
-
Ora porquê? Nestes anos todos nunca me lembrei de juntar os restos dos
cigarros do Sr. Doutor para os dar ao meu pai, quando ia a Alegrete...
De olhos fixos
na minha mãe, pensava, com certeza, no que tinha perdido durante esses anos. Tinha muitos ciúmes da Rosalina. Achava que a minha mãe gostava mais da Rosalina do
que dela. Infeliz, acabava dizendo:
-
É assim a vida. Uns são filhos, outros enteados... A Rosalina teve sempre
sorte! E eu não...
Olhávamo-la, espantadas, pois sabíamos que o pai dela tinha morrido muitos
anos antes de ela ter vindo trabalhar para nossa casa!
Tive pena dela. Lá estava com o seu ar tristonho, a ver-nos arranjar os montinhos de tabaco para a Rosalina levar.Escolhi a pintora russa Zinaida Evguenievna Serebriakova (Khrakhov 1884-Paris 1967)que sempre me inspira quando falo do campo e das figuras femininas - desde pequeninas até crescidas, cheias de poesia e de beleza!
Consigo VER a sua história tecida de memórias. Obrigada por um momento bom!! Beijinhos
ResponderEliminarAs pinturas são lindíssimas! Gosto muito da pintura desta pintora, que tenho visto aqui no seu blogue.
ResponderEliminarAdorei o texto, escrito como só a Maria João o sabe escrever, fazendo-nos sentir uma enorme ternura pelas "personagens", incluindo a linda menina cuja linda foto inicia este post:)
Um beijinho grande:)
Contas muito bem estas coisas, que ao mesmo tempo que cheias de ternura, a mim me dão que pensar muitas vezes. Os nossos pais tiveram em casa verdadeiras escravas, e curiosamente eram rapariguinhas muito agradecidas e felizes, que nos adoravam! Quando cheguei a Espanha notei muita diferença, tive uma mulher que ganhava à hora o que aí num dia inteiro, e que me tratava por tu, o que adorei. Aqui só se trata de "senhora" às pessoas idosas, por isso quando alguém ainda me trata de tu, fico muito contente, embora saiba que é já mais por simpatia que por outra coisa...Quando se trata de "usted" a uma pessoa jovem, é por desprezo ou antipatia, para manter a disância.
ResponderEliminarFeliz dia!
Tudo era mais complexo, claro. Sei só pelo que se passava em minha casa onde eram como amigas e faziam parte de tudo. A Rosalina casou, a Florinda foi viver para Alegrete, morreu cedo com um cancro. Mas conheci muitos outros casos que assim não eram tratadas nem respeitadas como gente...
EliminarTambém gosto que me tratem por tu. Em Itália era esse o hábito e em Israel também. Assim, sentimo-nos jovens tens razão! beijinhos
~~~
ResponderEliminarForam prazeres em duplicado: a narrativa e a ilustração.
Temos coisas comuns na nossa vida infantil, tais como as
sandálias em couro, sapatos e pastas em cabedal; a caneta
de tinta permanente e os lápis da Viarco; fruta e pão com
manteiga ao lanche; laço no cabelo, bibe por casa e bata
branca na escola e liceu...
As minhas empregadas também foram tratadas com carinho
e consideração, tendo ordenado e possibilidade de viver com
um nível muito acima das possibilidades da sua família.
~~~ Beijinhos, MJ. ~~~