quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

GOSTO TANTO DE CESÁRIO VERDE!




Compreendo-o na sua raiva e impaciência, certos dias. Também, como ele, amo os gumes e os ângulos agudos e percebo que certos versos possam ser poliedros de cristal. 

São belos os seus versos, o seu ritmo, o modo como corta os seus perfeitos alexandrinos.

No meu sofá-escritório, rodeada de livros e cadernos, canetas e a agenda das contas sempre ao lado para não me perder nas contas dos dias!) mais as folhas escritas e fotocopiadas a quererem ser um conto.

Um verdadeiro “balagan” diriam os meus amigos israelitas! Bem, explicar o que é balagan não é simples mas tento, Palavra vinda não sei de onde (???) exprime tudo o que estamos a pensar: balagan é gente confusa, balagan é desarrumação, balagan é não entenderes nada, etc. 
Enfim, balagan é uma palavra que serve para tudo e o meu sofá é um pouco do meu mundo, sofá onde durante cinco anos me sentei ao lado do meu cão Zac, em São Tomé, à espera que alguma coisa acontecesse e a ouvir as "ladies do Jazz" em cassetes, num rádio de pilhas, porque a maior parte do tempo não havia luz.
E também ao seu lado, em Israel, onde tudo acontecia e tudo mudava e cada dia era diferente! 
O sofá que foi forrado com seda amarela, em Casablanca- e me acompanhou-me pelas viagens - está numa confusão sempre. Não é por acaso que o considero mesmo o meu "escritório" preferido: com tudo à mão, os livros atrás e o tempo à frente. 

Tenho que me organizar, eu sei, mas não tenho tempo, vou-me desculpando.
Entretanto, sento-me no sofá e vou relendo o poema “Contrariedades” quando me sinto eu própria um pouco balagan também.

“Eu hoje estou cruel, frenético, exigente;
Nem posso tolerar os livros mais bizarros.
Incrível! Já fumei três maços de cigarros
Consecutivamente.
"poliedros de cristal", raiva, "ângulos agudos" 

Dói-me a cabeça. Abafo uns desesperos mudos:
Tanta depravação nos usos, nos costumes!
Amo, insensatamente, os ácidos, os gumes e os “ângulos agudos.”

Encontrei num caderno de apontamentos (dos muitos que estão espalhados em cima do sofá amarelo) umas notas que tinha tomado há muito tempo – talvez da última vez que ensinei nas minhas aulas Cesário Verde. 
Citava Gaspar Simões, escritor, romancista e crítico esquecido que muito admiro: 
Cesário Verde, em desenho de Columbano

Cesário cria em Portugal a poesia do concreto, do vulgar, do quotidiano. Valoriza poeticamente a linguagem por que se designam as coisas concretas. (...) 

Duma paisagem, duma máscara humana ou cena social, sem pormenorizar, consegue apreender um certo espaço da natureza. (...) A realidade é o seu ‘leitmotiv’. Teve o dom de surpreender a vida.”


Pensar no Poeta  "que surpreendeu a vida" faz-me recordar a minha gente, as alunas, os alunos, as noites de aulas, pois ensinei durante muitos anos os cursos da noite. E elas também se deixavam surpreender pela vida e pela poesia.
Na Escola de Sintra, alguns nomes nunca esquecidos: a Mónica (que veio de Sintra à apresentação do meu livro); a Marty B. (que quase pôde vir) e a irmã Erya B, claro, que é das poucas pessoas que chegou ao IV volume do "À procura do tempo perdido", de Proust.

E também a Eugénia, poetisa sensível; a Maria C. que se interessava por política e trazia, de Inverno, um chapèuzinho de lã que lhe ficava muito bem. E a Sandra V. que não vejo há anos e que amava tanto a Poesia. 
Sem esquecer a Delfina e a história do neto que, logo que nasceu, o pai embrulhou-o (quase!) num cachecol do Benfica.
E lá vem a poesia de Cesário Verde que tantos anos "ensinei". E Fernando Pessoa. E Mário de Sá-Carneiro. Havia tanta vontade de aprender!
Quantas histórias de vida contadas, enquanto a noite descia, tantas queixas abafadas, na injustiça da vida. Tantos risos disparatados para aliviar a tensão que, à noite, depois de horas de trabalho, as minhas alunas traziam.
Tantas ilusões nunca perdidas, e uma amizade continuada pelos tempos fora, cimentada no amor pela Literatura que todas tínhamos!
E por Cesário Verde, claro, também.
Pois essas linhas a que acima me refiro – de uma carta (*) do poeta ao amigo, Silva Pinto, falando do poema "Cristalizações", dizem o seguinte:
São uns versos agudos, gelados que o Inverno passado me ajudou a construir; lembram um poliedro de cristal e não sugerem por isso quase nenhuma emoção psicológica e íntima. Mas ao menos bem o conheço esse estado.” ('Obras Completas de Cesário Verde', Portugália, carta escrita em 1879)
E quero deixar alguns versos desse poema extraordinário que é "Cristalizações".
Na manhã de Dezembro fria, os calceteiros avançam calcetando a rua.  Poças geladas, como espelhos na claridade crua, reflectem as casas no seu colorido.
As peixeiras gritam seus pregões. E, campo ou cidade?- na imaginação do Poeta calceteiros e cavadores 'identificam-se' : "cospem nas mãos gretadas para que não lhes escorregue o cabo!"

Observando, Cesário vai tecendo considerações sobre a dureza das vidas, tudo o que o incomoda na frialdade da manhã de Inverno, sugerindo-lhe os versos.
Calceteiros, em Lisboa, 1880


"Faz frio. Mas, depois duns dias de aguaceiro,
Vibra uma imensa claridade crua.
De cócoras, em linha os calceteiros,
Com lentidão, terrosos e grosseiros,
Calçam de lado a lado a longa rua.

Como as elevações secaram ao relento,
E o descoberto Sol abafa e cria!
A frialdade exige o movimento;
e as poças de água, como um chão vidrento,
Reflectem a molhada casaria.

Em pé e perna, dando aos rins que a marcha agita,
Disseminadas, gritam as peixeiras;
Luzem, aquecem na manhã bonita,
uns barracões de gente pobrezita
E uns quintalórios velhos com parreiras.

Não se ouvem aves; nem o choro de uma nora;
Tomam por outra parte os viandantes;
e o ferro e a pedra - que união sonora!-
Retinem alto pelo espaço fora,
Com choques rijos, ásperos, cantantes."
......
E nesse mês que não consente as flores,
fundeiam, como a esquadra em fria paz
as árvores despidas. Sóbrias cores!
Mastros, enxárcias, vergas! Valadares
Atiram terra com as largas pás.
......
Homens de carga! Assim as bestas vão curvadas!
Que vida tão custosa! Que diabo!
E os cavadores pousam as enxadas,
 e cospem nas calosas mãos gretadas,
para que não lhes escorregue o cabo."

Poderia dizer, como em "Contrariedades": Hoje estou cruel, frenético, exigente.
"Amo, insensatamente, os ácidos, os gumes 
e os ângulos agudos."
A noite desce, fecho o livro. Boa noite.

(*) in “Obras Completas de Cesário Verde”, Portugália Editora, Lisboa, sem data


5 comentários:

  1. Cesário Verde é muito bom poeta. E sim, quando a noite já desceu uns quantos degraus, sabe muito bem aconchegar-se no nosso sofázinho tapados com uma manta quentinha, e até dormir um soninho com a tv de fundo: não permitas que os livros te roubem o sítio ... hahaha

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  2. Querida Maria, eu bem os ponho lá em volta, mas quase nunca os consigo ler! Há muitas conversas......

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  3. Tem muitas versões do livro, ou são diferentes? Eu também tenho algumas.
    Pois é, como diz a Maria, os livros invadem-lhe o sofá, mas é um cenário bonito!

    Também sou muito "balagan". Quero organizar-me, mas também não consigo. São demasiadas solicitações.

    Adorei o post!

    Beijinhos e um bom fim-de-semana:))

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  4. Tenho a certeza que deixei aqui um comentário...não o que aconteceu...terá ido para o spam?...

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  5. Cesário Verde... poeta ímpar!
    Como é bom esse caos, apesar de por vezes nos desesperar, quando procuramos algo e não encontramos.
    Adorava ter sido aluna da Maria João!
    Quantas recordações!
    Um beijinho.:))

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