domingo, 3 de fevereiro de 2019

O Professor do Caffè degli Specchi, em Trieste


Trieste volta muitas vezes à memória. Os céus, contemplados da minha janela, que mudavam todas as manhãs, tardes e noites: desde o enevoado cinzento chumbo ao céu azul forte. E ao vento ciclónico em noites de tempestade.
Imaginava o mar, as ondas a baterem, agitadas, ao pé da escultura das "sartine" que cosem atarefadas e sorridentes as bandeiras de Trieste, no cais junto das escadas do Molo Audace.
As "sartine" (costureirinhas), no Molo Audace (MJF)

Trieste a cidade dos Cafés! Inumeráveis cafés onde me entretenho a ver o mundo correr em redor, la fora. Dentro, tomo um café óptimo, ou um cappuccino piccolo que, em triestino, se diz apenas "capo". 

Nos meus Cafés, os dias são diversos e as pessoas também. Sou amiga de grande parte das empregadas. 
No "Specchi" (como afectivamente é chamado) conheço há anos a Halima que vem de Marrocos, a Amarilda que é albanesa, a Rozy que vem dos Camarões, e a loira Dragana, da Sérvia, que me fala em francês para praticar a língua. 
Todas estudaram um pouco, ou muito, mas o Café é o lugar seguro onde arranjam trabalho, um trabalho penoso, cansativo que dá cabo da coluna, dos braços e das pernas - sobretudo quando o turismo aumenta. 
Este ano conheci a Martina, a Barbara e a Erica, no Caffè Style do 'borgo' Cavana. 
E cada dia podia mudar de Café porque há também o "Stella Polare", ao pé do Canal Grande onde, no final dos anos 80, conhecemos Giorgio Voghera, escritor inesquecível, de grande humanidade. 

Mais longe ainda, o "Caffè San Marco"  - café de Cultura, "literário" mesmo, onde os escritores e os artistas marcam encontros e por ali passam e se mostram, por vezes. 
É um 'Café-Livraria' com muita classe, cheio de livros à venda e, ao fundo da sala, enorme,  - no meio da livraria -encontram-se  mesas pequeninas. 
a Alessia (foto MJF)

Outro lugar onde me sinto bem -e onde tenho a minha amiga Alessia- é o MUG - que tem bom café e bolos especiais entre os quais uns pastéis de nata muito saborosos. Vou lá de manhã ler o jornal sempre que posso.
Lembrei-me hoje, de repente, de uma figura curiosa que passava quase todas as tardes, no Caffè degli Specchi.
esplanada do Caffè degli Specchi

Três anos passaram já desde que vimos o Professor sentado na mesma mesa da sala interior, a escrever, embrenhado nos manuscritos. Figura invulgar com os bigodes brancos caídos,o chapéu de feltro castanho de aba muito larga, que nunca tirava da cabeça e usava um pouco de lado. A mesa estava sempre atulhada de livros e de papéis, canetas e cadernos.
Caffè degli Specchi, (foto MJF)

A Amarilda, que veio da Albânia e estudou 'Relações Internacionais' mas trabalha ali, traz-lhe um cappuccino e um "tramezzino" e troca algumas palavras com ele.
Caffè degli Specchi (foto MJF)

A Amarilda é uma jovem mulher corajosa e culta, mas o seu trabalho é no Caffè degli Specchi. Falamos de Ismail Kadaré e dos seus livros. Com ela, fico a saber um pouco mais da Albânia que não conheço.
Ismail Kadaré

O Café é  um belo Café antigo, com uma atmosfera quente, sofás de veludo vermelho, armários antigos envidraçados e, dentro, pequenas esculturas dos escritores que viveram ou passaram por Triste. Lá vi as estatuetas de Joyce e Svevo, em terracota.
James Joyce no Ponte Rosso (MJF)

 cais ao pé do Ponte Rosso (foto MJF)

Agora já lá não estão. Vejo James Joyce ainda, mas a passear na ponte onde está a sua estátua, no Ponte Rosso. Italo Svevo está no Jardim Hortis, parado, a olhar em frente.
Voltando ao Professor, confesso que gostava de o observar. Professor reformado? O que teria ele ensinado? Estaria a corrigir testes dos seus alunos? 
Era sem dúvida um estudioso, concentrado nos seus papéis, sublinhando com força uma frase ou outra, raramente se distraindo a olhar, mas percebi que dava conta de tudo. 
Nunca tínhamos  falado. Desta última vez, em Outubro ou Novembro deste ano, ia ter com o Manuel à nossa mesa habitual e cumprimentei-o de passagem, com um sorriso. 
Caffè degli Specchi, imagem da internet

Puxou-me pelo braço e segurou-me a mão. Curioso como era, queria falar comigo.
- Eu conheço-os. Vejo-os aqui muitas vezes. Há muito tempo. De onde vêem?
 quadro de Aldo Zari

De onde vimos? Onde estamos? Para onde vamos? Como saber? Tal como no quadro de Zari, as 'palavras' parecem encriptadas, dificultam a compreensão. Quem somos?
Aldo Zari (détail)


Conversámos uns momentos. Falou-me da sua preocupação com o futuro, como iria evoluir o mundo, o que estaria por detrás das conquistas técnicas, das ambições dos homens. A que levariam? Receava tantas coisas. E apontava para os seus escritos que não percebi de que tratavam, cheios de esquemas e mesmo equações. A mim pareceram-me as mensagens encriptadas do Aldo.
- Não quero tirar-lhe mais tempo. Vá ter com ele! Está a olhar para nós.
Apontava para o Manuel.

- Ele é muito ciumento, não é? Sabe que tem uma mulher interessante, um pouco exótica, e que os outros a olham com curiosidade. Como eu. Mas devia estar sossegado, reparei que mantém uma grande distância e que não olha para ninguém.
Sorri sem dizer nada. Era agradável ouvir uma coisa assim.
Despediu-se com uma pancada na minha mão e disse:
- Só lhe peço que um dia me envie de Portugal um pôr do sol sobre o mar. Basta escrever no envelope: Professor R.T.S - Trieste - Itália.

Olhou-me, irónico.
- Não acredita? Vai ver que eu o recebo!

 Confesso que ainda não cumpri a minha promessa, não vi até agora nenhum postal com um por do sol sobre o mar. Por enquanto tenho uma fotografia de um por do sol sobre as azinheiras, no Alentejo.
Sei, no entanto, que mais tarde ou mais cedo encontrarei o postal, nem que tenha de tirar eu uma fotografia.

Com o telemóvel, claro, como todas as outras que tiro - e que me dá tanto prazer tirar!

5 comentários:

  1. Então? Promessa é promessa! E o professor deve estar à espera do seu pôr-do-sol! Quem sabe se não é para ter uma coisa da Maria João, por quem, se calhar, tem um fraquinho...:)))

    É giro tudo o que conta.

    Beijinhos e uma boa semana:))

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  2. O Isabel! Essa é a maior... Beijinhos minha querida e uma boa semana!

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  3. Os cafés de diário são uns lugares especiais onde vamos deixando todos os dias bocadinhos de vida, com empregados que já sabem o que tomamos sem perguntar, nos tratam pelo nosso nome e à vezes, se têm tempo, até soltam alguma confidência...
    Assim que és uma mulher interessante à primeira vista! Pena me dá não desfrutar pessoalmente desse encanto, mas conheço-te "a larga distância e a largo prazo", o que ainda é melhor...

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  4. Um mimo as palavras e o momento no café. É uma promessa, tomara um belo por do sol seja logo fotografado e enviado.

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  5. Glória, já tenho o por do sol e o envelope com selo. É só ir ver da direcção à minha agenda....

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