"Criar é agir, é viver”
Num
livro pequenino, mas precioso, comprado em Trieste, encontrei umas opiniões sobre
Arte que resolvi apontar.
O
livro chama-se “La Grande Madre” -pensieri sull’arte- e é de Umberto
Boccioni (1), pintor italiano nascido em Reggio Calabria, em 1882.
Visões simultâneas
Seguindo as deslocações do pai, empregado do Governo Civil, viaja por várias províncias da Itália e vai ter a Pádua, em 1888, onde fica a viver uns tempos. Em 1907, instala-se em Milão.
Depois, quase como dizia o verso de Cesário Verde, "Paris, Milão, Moscovo, o mundo!"
Em Milão, vai participar dos grandes movimentos artísticos do início do século XX, a começar pelo Manifesto del futurismo, de Marinetti, em 1909.
O livrinho é uma espécie de ‘diário’ que começa em 2 de Fevereiro de 1907 e
termina em 1913.
Sente
uma grande insatisfação com o que tem vindo a pintar e sente-se desmotivado.
“Procuro, procuro, procuro e nada encontro.
Estava farto da grande cidade e hoje desejo-a ardentemente”. Referia-se
à cidade de Milão onde vivia no momento.
Fala do sonho de poder pôr nos seus quadros a Música, “a poesia do instante”.
“Sonho dar aos meus quadros a força
provocadora da Música. Acenar com a forma aos voos da alma (...). Vi um pombo
voar e como sempre veio-me a ideia de que na arte moderna se tenha esquecido a
poesia que eu chamaria do instante.
Poucos os quadros modernos que
exprimam modernamente (no sentido mais absoluto) o cair duma folha, o voo de um
pássaro." (Março de 1907)”
(Não posso deixar de pensar no quadro de Giacomo Balla "Voo de andorinhas" (1914)
(Não posso deixar de pensar no quadro de Giacomo Balla "Voo de andorinhas" (1914)
“Voos da alma”, diz, como “pintar uma folha que cai ou o voo de um
pássaro.” E que tão raramente se encontram na arte moderna.
Fala
da sua necessidade de afastamento e de solidão, sem saber se é uma fuga ou uma
necessidade.
“Cada vez mais se desenvolve em mim a
capacidade da solidão: a companhia e o passear entediam-me. Ou trabalhar ou
ler.” (Julho 1907)
Adiante
interroga-se: “Será bom o desejo de estar
sozinho? Sou suficientemente profundo para viver só ou tenho medo da força dos
outros? Porque fujo dos artistas e os outros que me parece lutarem como eu?”
É
um jovem de vinte e poucos anos, vivera em Roma e em Paris e procurava ainda a
sua estrada. Na procura desse caminho, sente que a dada altura, "escrever" o aborrece.
Precisa de pintar – apenas.
“Estou cansado de escrever: não é a minha profissão. Apesar de os meus amigos me chamarem o filósofo da companhia pouco me importa isso, nem acredito que o seja.”
Boccioni, a Mãe, 1906
“Estou cansado de escrever: não é a minha profissão. Apesar de os meus amigos me chamarem o filósofo da companhia pouco me importa isso, nem acredito que o seja.”
Exige
outras coisas, quer uma mudança radical. Quase “antevê” o que se passa na arte
dos nossos dias: comunicar o “movimento
vertiginoso da vida humana”, longe de todos os imobilismos.
Boccioni, Forças de uma rua
Boccioni, "A estrada entra pela janela"
“Virá um tempo em que o quadro não bastará. A
sua imobilidade será um arcaísmo com o movimento vertiginoso da vida humana. O
olho do homem interpretará as cores como sentimentos. As cores multiplicadas
não precisarão de formas para ser compreendidas e as obras pictóricas serão
vórtices composições musicais de enormes gases coloridos!”
Auto-retrato do artista, 1905
Giacomo Balla
Em
1901, conhece Giacomo Balla (1871-1958), que vai ser seu professor, e cria forte
amizade com Gino Severini (1883-1966) - também aluno de Balla.
Gino Severini
Gino Severini, 1883
Mario Sironi, 1913
Em
Abril de 1907, em Veneza, inscreve-se na
Scuola libera del Nudo del Regio Istituto di Belle Arti. No final do ano,
instala-se em Milão.
Giovanni Segantini
Nesse
ano vai a Munique onde a pintura de Dürer e de Giovanni Segantini (1858-1899) o deslumbram.
Depois Paris, de novo. De regresso a Itália, em 1908, encontra o pintor Gaetano Previatti (1852 -1920) de quem tinha lido e admirava a obra Tecnica della Pittura.
Trocam opiniões, ficam amigos. Em Milão, conhece, e dá-se. com os pintores "divisionistas".
Giovanni Segantini
Giovanni Segantini, A luz
Depois Paris, de novo. De regresso a Itália, em 1908, encontra o pintor Gaetano Previatti (1852 -1920) de quem tinha lido e admirava a obra Tecnica della Pittura.
Gaetano Previatti, Maternidade
Em
20 de Fevereiro de 1909, Tommaso Marinetti publica, em Paris, no Figaro, o Manifesto del Futurismo. (2)
Em
Fevereiro de 1911, Boccioni, Carlo Carrà (1881-1966), Balla, Gino
Severini e Luigi Russolo (1865-1947) tornam público o Manifesto dei
pittori futuristi.
E, em Abril do mesmo ano, um outro manifesto: La pittura futurista – Manifesto
tecnico.
"O objectivo do artista moderno deveria ser, escrevia, libertar-se e das tradições figurativas do passado e voltar-se resolutamente para o mundo contemporâneo dinâmico, vivaz, em contínua evolução."
Luigi Russolo, Síntese plástica dos movimentos de uma mulher
Russolo, A solidez do nevoeiro, 1912
"O objectivo do artista moderno deveria ser, escrevia, libertar-se e das tradições figurativas do passado e voltar-se resolutamente para o mundo contemporâneo dinâmico, vivaz, em contínua evolução."
Umberto
Boccioni torna-se o teórico mais importante do movimento criado. Nesse ano, Boccioni
pinta os primeiros quadros futuristas (Rissa
in galleria e La città sale).
Em
Abril de 1911 realiza-se a Mostra d’ Arte
Libera, onde apresenta os quadros da série “Estados de alma”.
Boccioni, Estados de alma, O Adeus
No
Outono, Gino Severini, que vivia em Paris, convida Boccioni, Luigi Russolo e Carrà para se
juntarem a ele e conhecerem melhor a pintura cubista.
Carlo Carrà, O cavaleiro
Carlo Carrà
Em Paris, Boccioni descobre, pois, os pintores cubistas. Interessam-lhe e sofre uma certa influência deles - mas acusa-os de lhes faltar movimento.
Apesar da influência que sofre, nunca usará, porém, as linhas rectas do Cubismo.
Picasso e Cubismo
Nesse
mesmo ano, depois de afirmar que tem de existir algo que seja a síntese da época, afirma que a verdadeira realidade é a "sensação".
“Existe algo que é a síntese da nossa época! Algo
que não foi expresso. Que não tem forma fixa, que não tem cor, que transfigura
as coisas e que é a essência delas. Esta verdadeira realidade é a sensação.” (p.20)
A
realidade é a sensação, impressão subjectiva da natureza. É importante
a música das formas.
Afasta-se do “divisionismo” (também conhecido em França com o nome de "Pointillisme" criado por Seurat e Signac) que vê, apenas, como uma atitude de espírito.
Para ele (como também para Giacomo Balla) o "divisionismo" já não basta: tem de haver algo mais: velocidade, movimento, drama, música, luz.
Afasta-se do “divisionismo” (também conhecido em França com o nome de "Pointillisme" criado por Seurat e Signac) que vê, apenas, como uma atitude de espírito.
Giacomo Balla, movimento
Giacomo Balla, "Velocidade abstracta"
Balla, Decomposição da luz
***
“É dela, da impressão subjectiva da natureza
expressa com sinais abstractos, ditados pela música das formas, o do drama dos movimentos
que surgirá uma nova estética. (...) O divisionismo não é uma técnica!
O divisionismo é uma atitude do espírito, é um grau ao qual chegou a sensibilidade humana, um modo de traduzir, é o estilo de uma época.”
As palavras que vai usar, continuamente, nas suas "séries" vão ser:
Movimento, Sensações, Estados de alma, Visões Simultâneas ou Dinamismo.
O divisionismo é uma atitude do espírito, é um grau ao qual chegou a sensibilidade humana, um modo de traduzir, é o estilo de uma época.”
Balla, Decomposição da luz
As palavras que vai usar, continuamente, nas suas "séries" vão ser:
Movimento, Sensações, Estados de alma, Visões Simultâneas ou Dinamismo.
Os
quadros que pinta em séries, intitulam-se “Estados de Alma”, “Visões
simultâneas” , “Dinamismos” , "Dinamismo de um cavalo".
E Giacomo Balla que desenha, por exemplo, "Dinamismo de um cão", quadro belíssimo.
E Giacomo Balla que desenha, por exemplo, "Dinamismo de um cão", quadro belíssimo.
Balla, Dinamismo de um carro
Boccioni e“Visões simultâneas”
Boccioni, Dinamismo de uma Cabeça
Dinamismo de uma menina na varanda
Espantoso pensar na importância que ele deu ao cavalo. Vários quadros seus falam do dinamismo do cavalo e do cavaleiro, dinamismo técnico do cavalo, formas técnicas do cavalo...
Se pensarmos que morreu novíssimo em consequência de uma queda de cavalo, durante a Guerra (1916) impressiona-nos esse seu interesse.
Boccioni a cavalo, 1916
Boccioni, Formas técnicas do cavalo
Em
1912, realiza-se em Paris, na Gallerie
Bernheim Jeune com grande sucesso, a Mostra Futurista.
No catálogo, Boccioni polemiza sobre o “estaticismo” de Picasso. Critica a falta de movimento, de acção, o imobilismo.
No catálogo, Boccioni polemiza sobre o “estaticismo” de Picasso. Critica a falta de movimento, de acção, o imobilismo.
Pablo Picasso
Os temas continuam: "Movimento", "Estados de Alma”, “Visões simultâneas” , “Dinamismos”.
A 'Mostra' segue para Londres, Bruxelas, Berlim, Haia e outras capitais.
A 'Mostra' segue para Londres, Bruxelas, Berlim, Haia e outras capitais.
No
mesmo ano, começa a interessa-se pela escultura, e escreve o Manifesto técnico della scultura futurista.
Formas únicas de Continuidade no Espaço
Uma
das suas esculturas mais famosas intitula-se “Formas únicas de Continuidade no Espaço” - que aparece no verso de
algumas moedas. A maioria das esculturas eram realizadas em gesso e muitas
foram destruídas -não se sabe bem como.
Formas evolutivas de uma garrafa
Em
1913, realiza-se em Roma a primeira 'esposizione di pittura futurista' onde Boccioni apresenta muitas obras, entre as quais “La Materia” que se inspira na figura da
Mãe.
La Materia”, 1913
Em
1914, publica o livro “Pittura Scultura
Futuriste”, onde está todo o ideário artístico do movimento.
Lembro-me
de assistir, quando vivia em Itália nos anos 80, à extraordinária Exposição do Centenário de
Boccioni, realizada em Milão, patrocinada pelo Comune di Milano - Reparto Cultura e Spetaccolo.
A exposição ficou visível de Dezembro 1982 a Março 1983. Tive a sorte de ver, no Palazzo Reale, a maravilhosa exposição
de que guardei o belo Catálogo.
Palazzo Reale, Milão
***
Boccioni, "Carga dos Lanceiros"
artistas futuristas alistados como voluntários
Em
1916, o regimento de cavalaria a que pertencia está em Verona; durante exercícios
militares, em Chievo, o cavalo assusta-se com um camião em manobras e Boccioni cai. Morre no
dia seguinte. Tinha 34 anos.(3)
***
(1)
“La Grande Madre”, Pensieri sull’arte,
Edizioni Via del vento, Pistoia, 2014
(2)
Em 1910, é publicado em Paris, no jornal “Le Figaro” o Manifesto del Futurismo.
(3)
Morre em 17 de Agosto de 1916, durante exercícios militares, em Chievo
(Verona).
Muito interessante! Nunca tinha ouvido falar no pintor. Gostei imenso de algumas pinturas que aqui colocou:))
ResponderEliminarBeijinhos e uma boa quinta-feira:))
Que história interessante. Sobre o quadro que me enviou do Boccioni, lá no messenger, cheguei até aqui. Mas também fiquei encantada com a obra de Giovanni Segantini.
ResponderEliminarOs predestinados são resgatados pelos deuses. Cedo.
ResponderEliminarO artista só o é na medida que se questiona permanentemente, numa inquietude que lhe antecipa o futuro. A citação de Gaugin transcrita é certeira. Poucos fazem arte - o pensamento, a antecipação do futuro -, a maioria copia, imita, quando muito, os mais afoitos, reinventam.
Belo trabalho, parabéns.
Bj.