A STENDHALMANIA (II) OU O "CLUB STENDHAL"...
“Le hasard
fait que j’ai chercher à noter les sons de mon âme par des pages imprimés.”
Também pertenço ao Club Stendhal. Gosto muito de
Stendhal que li, jovem. “O Vermelho e o
Negro” andava lá por casa, quando eu era miúda, e li-o, entusiasmada.
A leitura dos outros romances veio mais tarde, já na
Universidade, onde tive uma óptima professora de Literatura Francesa, Maria Manuela Saraiva, que nunca esquecerei.
desenho de Frédéric Valonton
Nessa altura, li quase tudo. La Vie de Henry
Brulard foi um dos que me interessou, talvez pela frescura que todo o
livro tem, carregado do entusiasmo de alguém que nunca perdeu a juventude!
desenho da autoria de Stendhal
Stendhal é o pseudónimo de Henri-Marie Beyle que
nasceu em Grenoble, em 23 de Janeiro de 1783, e morreu no dia 22 de Março de
1842, com um ataque de apoplexia fulminante, em Paris, na rue des Capucines.
casa de Stendhal, em Grenoble
Nesta casa "passou" Stendhal, na sua ida para a Campanha da Rússia.
Napoleão Bonaparte, pintado por David
Em 1800, era oficial da administração militar francesa,
durante a Campanha da Rússia
de Napoleão, e, em 1812, segue a
carreira diplomática: cônsul da França, em Civitavecchia.
Homem culto e apreciador das obras de
Arte, amante da beleza, não admira que hoje se chame “síndrome de Stendhal” a
uma doença psicossomática que causa um estado confusional, arritmia,
desmaios e mesmo alucinações!
Doença cujos "sintomas" ele próprio terá
descrito em “Rome, Naples et Florence en 1817"... Que s
revelam em indivíduos especialmente sensíveis - quando “expostos” às
obras de Arte, sobretudo em locais
onde existem muitas obras caracterizadas por grande beleza.
Cito as primeiras frases de um livro muito bom:
Stendhal par lui-même, da autoria de Claude Roy (1), que me ajudou já nos
tempos dos estudos.
“Henri Beyle, conhecido também sob os nomes de Louis
Alexandre Bombet, Lisio Visconti, Cornichon, o chefe de batalhão Coste,
Timoléon du Bois, William Crocodile, etc..., célebre sob o nome de Stendhal,
escreveu dois romances que contam entre os muito raros obras consideradas
perfeitas da literatura. Não escondo que este julgamento, postulado donde se
vai seguir todo o ensaio que se segue, repousa em parte num sentimento pessal,
ao qual outros espíritos podem não aceder.
(...) A perfeição de Le Rouge et le Noir e La Chartreuse de
Parme parecem-me, no entanto, perfeitamente demonstráveis.”
edição de bolso, da "Folio"
uma bela capa de uma tradução portuguesa
E, ao longo de 190 páginas, Claude Roy vai fazer essa demonstração, de modo
claríssimo, através dos textos do próprio autor.
Em 1840, Honoré de Balzac escreve na Revue Parisienne: “Considero
o autor deste romance (La Chartreuse de Parme) como um dos melhores escritores
da nossa época.”
(...)
“Mr. Beyle fez um livro onde o sublime éclate avança
de capítulo em capítulo...O lado fraco desta obra é o estilo, enquanto mistura
de palavras".
Em resposta ao artigo de Balzac,
escreverá, em 16 de Outubro de 1840, duas ou três "versões" de uma
carta que nunca enviará:
“Fiquei muito
surpreendido com o artigo que dedicou à Chartreuse. Agradeço mais os conselhos
do que os louvores. Sentiu pena de um órfão abandonado na rua. Pensei não ser
lido antes de 1880 (...) Recebi a revista ontem à noite e esta manhã já reduzi,
de quatro ou cinco páginas, as cinquenta e quatro primeiras páginas do I volume
da Chartreuse.
Tive um
grande prazer ao escrever essas 54 páginas, falava das coisas que amava e nunca
tinha pensado na “arte “ de fazer romances. (...) Penso que dentro de 50 anos
um editor literário a publicará fragmentos dos meus livros que talvez
agradem por não existir neles “afectação” e, talvez, por serem
verdadeiros. Ao ditar a Chartreuse, pensava que o facto de a imprimir logo
de um jacto, a faria mais verdadeira, mais natural, mais digna de agradar em
1880, quando a sociedade não
estiver repleta de novos-ricos grosseiros." (2)
A "verdade" dos sentimentos e dos
caracteres desde muito cedo o interessava. Escreve no Diário, em 1811: “Só me
preocupa retratar o coração humano. Para o resto, sou uma negação.”
No entanto, Stendhal e a sua verdade foram
“desconhecidos” durante anos! A sua sensibilidade, a sua capacidade de recriar um “mundo”, a “alma sensível”
que ele foi, são ignorados.
ilustração da 1ª edição francesa de O Vermelho e o Negro
Ele próprio dizia:
Stendhal, na École Central, por Jay
“Penso que dentro de 50 anos algum literário
há-de publicar fragmentos dos meus livros e talvez eles agradem porque sem
afectação e talvez porque verdadeiras.”(citado por Claude Roy, op. cit.pg. 60).
E para falar de
si ou, como ele escreveu, “noter les sons de mon âme par des pages
imprimés”, Stendhal usava o
“eu” e explicava:
“Não é por egotismo que eu digo “eu” mas sim porque
não há outro meio de contar tão depressa."
edição da Relógio d'Água
“Falar de Stendhal, é falar de nós”, diz o
autor do artigo a que me referi no post anterior, Jerôme Garcin (no Nouvel
Observateur de 7-13 Fevereiro).
Falar...falar...Falar, sempre. No desejo de se
descobrir, falando, de se compreender e ser verdadeiro. De se contar. E isso implica uma grande
paciência que pode durar uma vida...
Escreve Claude Roy, na página 6 da
Introdução:
“Stendhal que, no fim da vida, era capaz de “falar”
em cinquenta e dois dias as quinhentas páginas de La Chartreuse, ditadas assim,
e sem qualquer alteração".
E acrescenta (pg. 47):
“Vêem-se as emoções e as paixões sucederem-se como
as imagens de uma lanterna mágica”.
(...) "Uma página de Stendhal é sempre o resultado de
uma montagem, no sentido em que as gentes do cinema usam o termo. É uma
sucessão de imagens cujo ângulo de visão (de filmagem) varia continuamente. O
próprio romancista se inquieta: a preocupação de ser breve talvez me deite a
perder...”
Segundo Claude Roy, esta técnica do romance
nasceu da reflexão sobre os efeitos da prosa no leitor.
Foi ele o primeiro a formular uma estética da objectividade que vai fazer o seu
caminho, no romance posterior.
Confessava no Journal: “existe um modo de emocionar
que é mostra os factos, as coisas, sem revelar qual o efeito que causam, que
pode ser usada por uma alma sensível (...)”
La Vie de Henri Brulard, é a obra confessional por excelência, onde,
naturalmente e acima de tudo, procura conhecer-se.
Onde evoca a sua infância
nem sempre feliz, os pais, os estudos, a escola Central de Grenoble. Com os Souvenirs d’Egotisme (obra escrita entre 1835-6 e publicada só em 1890), é a obra
autobiográfica mais importante do escritor.
Não pretende uma obra objectiva e imparcial, não se
observa friamente a si e aos que povoaram a sua vida, revolta-se muitas vezes
contra as injustiças e os sofrimentos que alguns lhe causaram na infância.
Henri Beyle-Stendhal será sempre “o amigo, inspirador
de conivências, capaz de cristalizar amizades e suscitar vocações auto
biográficas”, como refere Jerôme Garcin, no seu artigo...
Henri Martineau, um dos especialistas e
"amantes" de Stendhal, afirma (3):
“Talvez seja exagerado dizer que o melhor romance
de Stendhal foi a sua vida. Mas a verdade é que, ela testemunha de um ardor,
uma variedade e uma fantasia sedutoras.”
Stendhal amava escrever. Era um prazer a “observação
dos sons da alma”, era a vida. Escrever
foi sempre uma fonte de prazer!
No fundo, é através da sua obra que conhecemos os “petits faits divers” da sua infância e
adolescência.
"Prazer de
escrever, de ser lido pelas pessoas de quem gosta – uma espécie de élite de
sensibilidade, os “happy fews”. E igualmente prazer porque lhe dava prazer
reviver o passado."
Stendhal é uma figura que nunca envelhece. E age e
“reage” como um adolescente, com paixão, até ao fim da vida, inventando e
reinventando a aventura e os entusiasmos da sua vida. Tem uma juventude no que
escreve e no modo como o escreve.
Sonha e ama. Ama Milão, a Itália, a música! As
“Crónicas Italianas” testemunharão desse amor profundo.
Matilda Viscontini, um desses amores italianos
“Em Milão
encontrei os maiores gostos e os maiores sofrimentos, e isso é que faz a
pátria, encontrei ali os primeiros prazeres.”
Sobre a música italiana, diz em carta à irmã, Pauline
Beyle, em 1800:
“A música
agradou-me pela primeira vez, em Novara, alguns dias antes da batalha de
Marengo (*). Fui ao teatro; passavam “Il Matrimonio Segreto”. Esta música, exprimindo o amor, agradou-me.”
Napoleão empolga-o, admira o seu progressismo e desilude-se por vezes com o Imperador. Escreve um livro sobre a vida do Imperador.
Moscovo em chamas, incendiada pelos russos
A dolorosa retirada do exército francês,
“vejo-a” sempre através das páginas desse maravilhoso romance!
retirada do exército napoleónico
retirada das tropas francesas, vencidas pelo "General Inverno"
Pergunta Jean Prévost, estudioso da obra do romancista (publicação do Centenário de Stendhal).
retrato de Jean Prévost
“O que nos trouxe este desconhecido? Por que
razão mais de trinta sábios do mundo inteiro se interessaram por ele e se
dedicaram à sua glória? (...) Disse coisas novas sobre o amor: procurou dentro
do seu coração, ajudou a conhecermo-nos melhor. E encontrou um novo modo de
escrever.”
Ou, talvez, porque Stendhal
pertence àqueles escritores que refere
Claude Roy, os quais “por uma certa
intensidade, uma espécie de densidade da criação romanesca, parecem ser o apanágio
dos romancistas –em oposição aos romancistas “profissionais” (...)-, a que gostaria de chamar “puros”. Os que não
obrigam o romance a sair deles, e o deixam amadurecer como o pinheiro, na sua
ferida, deixa amadurecer e cair gota a gota (...) a lágrima da resina.”
(op. cit. pg. 41)
E penso que pela verdade do
que conta, pelo sonho que durante toda a vida perseguiu e escreveu.
selo dedicado a Stendhal
Diz Martineau:
outro autor do "Club", Jacques Laurent
“Stendhal sonhava o
amor. Evadia-se no sonho. O sonho (repetiu
ele mais de 100 vezes) foi sem
dúvida o que preferiu ao longo da
existência. A ele ficou a dever horas de constante e segura felicidade. Podemos
dizer sem receio de sermos inexactos que passou tanto tempo a sonhar a
vida como a vivê-la.” (op. cit. pg. 403 ou 6)
Os romances mais famosos
são, talvez,O Vermelho e o Negro(1830) e A Cartuxa de
Parma(1939) que, com o primeiro romance, Armance(1827)
e com As Crónicas Italianas (1839),foram publicados em vida do
escritor.
O Journal",La vie d'Henri Brulard e Souvenirs d'Egotisme foram publicados postumamente.
Por isso, mais do que os novos livros que saíram
agora, em Paris, o interessante é ler e reler Stendhal.
Toda a obra é digna de uma
leitura atenta que, aliás, será sempre um prazer... O mesmo prazer com que ele
escreveu!
(*) Nota:
A Batalha de Marengo realizou-se em 14 de Junho
de 1800, durante chamada Campanha de Itália. Batalha entre Napoleão e o general austríaco Mellas,
no Piemonte. As tropas francesas saíram vencedoras. Stendhal participou nela,
como sargento do 6º Regimento de s Dragões das tropas napoleónicas. De facto,
Stendhal desde os 16 anos que trabalhava como secretário do seu primo Pierre
Daru que era o Ministro a Guerra de Napoleão.
Batalha de Marengo, Maio de 1800, quadro de Louis-Françoies Lejeune
Batalha de Austerlitz (1805), quadro de François Gérard - ganha por Napoleão contra os "Três Imperadores"
O general Kutuzov, na Batalha de Borodino
(1) Claude Roy: "Stendhal par lui-même", Editions du Seuil, colecção
“Ecrivains de toujours”
(2) transcrita por Claude Roy, pgs 150-154.
(3) “Le coeur de Stendhal”, Henri Martineau, Albin
Michel, 1983, p.129
(4) Jean Prevost: "La création chez Stendhal", Mercure de France, 1951 (com um
Prefácio de Henri Martineau)
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Haydn “Sonata Eb
para piano”, interpretada por Horowitz: