quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Cavalos sevagens, no Outono...




O Outono chegara e as manhãs estavam frescas.  Deambulava, por aqui e por ali, a pensar na vida. A paisagem era bela e simples: olivais a perder de vista, pequenos recortes de serras, azuladas na distância e a terra cor de barro. 


A relva verde, tão verde ainda, onde algumas flores resistiam aos primeiros frios. O muro branco cercava a quinta.


Sabia onde queria ir: “Ver os cavalos!



 Estavam perto da casa, tinham-lhe dito. Amava a liberdade, como eles. O olhar deles, orgulhoso e independente, nunca submisso, mesmo quando sentiam a afeição dos outros, era o dela.

Um  cavalo era castanho e o outro branco, de uma brancura tal que, na manhã, lhe pareceu também azul. 

Chamou-os: “Cavalinho! Vem cá...”


O cavalo branco ergueu a cabeça, mas não se moveu, tranquilo, quase estático. 

O cavalo castanho, esse, veio devagarinho cumprimentá-la. Foi o que pensou, quando ele encostou a cabeça ao gradeamento do portão e abriu os grandes olhos escuros. Sacudiu a crina cheia de moscas. Tinha as pálpebras com mosquinhas de asas brilhantes que não o largavam. Impaciente, movia o corpo todo. 

Ia afastar-se? Ia deixá-la? Agitou a mão, a enxotá-las, indignada, com medo que ele se fosse embora.

Ele ficou. Começou a fazer-lhe festas na cabeça, no ponto onde crescia um quadradinho de pelo branco. Deixava-se afagar.

E falou-lhe. “O que se diz a um cavalo?”, pensou. Poucas palavras, frases curtas, interjeições cheias de ternura. No fim, até achou que lhe tinha dito muitas coisas.
Ele continuava parado, a ouvir. De vez em quando, a cauda vinha, como um chicote, afastar as moscas.


Ouves-me?”, perguntou. 

Parecia-lhe que sim. Um cavalo ouve.

E será que percebe?”  Não podia saber.

Lembrou-se do conto de Tchekhov, a história do cocheiro que confia a sua dor ao cavalo quando, à noite, lhe vai tirar o cabresto, e o tapa cuidadosamente com a velha manta. E lhe dá de comer, num cantinho do estábulo, onde ninguém os via. E se queixa. 
Sim, todo o dia tentara falar da sua dor com os clientes, mas nenhum o escutara. Encosta-se ao cavalo e diz:  Sabes?” E contou-lhe tudo. 
O cavalo ouviu-o?

 “E o cavalo castanho a mim ouviu-me?”, pensou.



Não tinha a certeza, as grades separavam-nos, mas era doce o seu olhar. Pouco a pouco, com delicadeza, foi recuando para o sítio de onde viera, junto da palha, em cima de uma carripana. 


Esquecera-se dela?

O cavalo branco veio também um dia. Aproximou-se devagar e a crina acinzentada, cor da prata, era linda. Atrás dele, as árvores ganhavam uma cor mais viva.


Rebelde, o corpo estremecia ao menor contacto das mãos dela. Tentava tocar-lhe e afagá-lo, com a ponta dos dedos, mas ele sacudia a cabeça com força. Não tinha confiança nela.

"Olha para mim?" Não. O olhar parecia perder-se para lá do portão, nas lonjuras do céu. Imaginou-o livre, os campos atrás dele, com a terra toda para ele, queria-se solto.



Talvez não fosse desconfiança. Talvez apenas quisesse guardar a sua liberdade completa.  

Talvez,  bem lá no fundo, soubesse que a liberdade estava rodeada de grades, não pudesse confiar nela: ela estava do lado de fora das grades.


O cavalo castanho, de olhos bons, comia, junto da carroça, sem se virar para trás. Esquecera-a. 


Entre a simplicidade, na aceitação, do cavalo castanho, e a revolta, silenciosa e firme, do cavalo branco havia um mundo de coisas! Entre ela e eles haveria sempre aquelas grades.

No último dia, quando se despediu deles, ficou contente por olharam para ela. Gostou de os ver  afastaram-se juntos.


5 comentários:

  1. São tão lindos, os cavalos!
    Entenderam-se bem com a protagonista da história...não é qualquer pessoa que os cativa...
    Eu tenho um pouco de medo...

    Lindas fotos!
    Um beijinho :)

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  2. Uma história muito bonita. Porém, ainda estou consternada com a história do acidente próximo de Évora, da perda de vida das pessoas e do cavalo que andava solto na estrada.
    Beijinho e gostei deste começo no Novo Ano.Parabéns.:))

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  3. Eu tenho a certeza que os cavalos nos ouvem e nos sentem. Sorte a deles que não têm de compreender, só de nos aceitar e gostar.
    Beijinhos e um Ano excelente

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  4. Bom dia, Jana, com este bonito relato. Os animais dão-nos grandes lições, quando querem a alguém é para toda a vida, são generosos e nobres. Deve ser muito duro estar " ao outro lado das grades", mas no fundo todos temos a nossa própria prisão, nem sempre somos livres por viver sem barrotes...
    Está uma manhã de chuva miudinha, gosto de ver chover assim. Não me sinto triste, apesar de estar o dia tão escuro. Lembro-me de ti com carinho ( sem pressas, por fim!!! ) e desejo-te um bom dia.
    Um xi

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  5. Tudo pelo melhor

    a despertar relâmpagos

    Bjs

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