sábado, 15 de março de 2014

A jovem morta da minha rua...


Odilon Redon, Ofélia

Na minha infância, como acontece com a maior parte das crianças, eu não pensava na morte.  Ela não existia. O tempo passava-se entre brincadeiras, correrias, leituras, conversas nos serões, à braseira.

Entrara para o Liceu há pouco, a novidade dos estudos interessava-me, gostava de estudar coisas novas. E entretinha-me com as histórias que vinham da rua, trazidas pela Florinda. Essas notícias bastavam a satisfazer-nos a curiosidade. 
Por vezes falava-se da morte, mas era uma ideia que não conseguia materializar. Sentir, sim, “sentira-a” nos romances. E, neles, a morte fazia-me chorar.
Zinaida Serebriakova, Menina a ler

Um dia de manhã, a Florinda entrou pela casa dentro, espavorida: tinha morrido uma menina que era nossa vizinha. Uma jovem já crescidinha e bonita que também estudava no Liceu, mais velha do que nós e que vivia na rua detrás da nossa casa.

As ruas da minha cidade eram um micro-mundo comunicante, onde tudo se trocava e tudo se sabia. As casas eram baixas, de um andar, havia menos gente - e quantas vezes se falava, de janela para janela, a contar o que se passava por ali...


rua de Portalegre (MJF)

Ao fundo do jardim do lavrador da Mesquita, nas traseiras da nossa cozinha, ficava uma rua paralela à nossa e que, com ela, descia também até ao Rossio. Nela, morava a jovem Sofia. 



a minha rua



vista do Rossio sobre a cidade (MJF)

Contaram depois tudo com pormenores e fiquei a saber que morrera de leucemia, doença misteriosa ainda naqueles tempos. Sem cura, isso disseram-nos logo.

A casa ficou silenciosa, não ligávamos o rádio nem o gira-discos, e uma tristeza invadiu-me, misturada de espanto. 
"Então ela, tão nova, morreu?"

O que era morrer? Ouvira as histórias da tia Zezinha, irmã da minha avó materna.  

Nas noites de Inverno, à braseira, ela gostava de contar coisas que nos assustavam. Histórias de mortes e mesmo de fantasmas, de enterrados que voltavam ... Mas tudo me aparecia tão longe. Eram uma imagem tão vaga, tão irreal. 


John Waterhouse, O barco


Mas esta menina, que eu sabia nova, que tinha tanta beleza, por que morrera?

Dias mais tarde, a família veio deixar em nossa casa uma fotografia. Lembro o rosto fino, os olhos tranquilos, o sorriso, o cabelo loiro separado ao meio. 
John Waterhouse, Psyche

Entristeceu-me pensar que nunca mais ia sorrir, nem brincar, nem enfeitar-se nos dias de festa... 
Que a Primavera nunca mais entraria pela janela do seu quarto. Que nunca mais veria os bandos de as andorinhas chegar e partir. 

Chamava-se Sofia Amélia - parece-me um nome dos romances de Camilo e a verdade é que a recordo com uma personagem de romance.  
Edward Burne-Jones, A estrela da tarde

P.S. Depois de já ter publicado o post, a minha amiga Fátima Martelo, que o leu, pôs a fotografia da Sofia Amélia no Facebook. Comoveu-me a juventude destas meninas e, outra vez, o retrato da Sofia Amélia me impressionou... 
Ela está na 1ª fila, é a primeira à esquerda, "de saia aos quadrados e casaco comprido", como escreveu a Fátima...




4 comentários:

  1. Era muito bonita!

    Nunca me detive muito a pensar sobre a morte, até à morte do meu pai, há sete anos. A vida e a morte passaram a ter outro significado.

    Gostei muito de todas as pinturas que escolheu. Muito lindas!

    Um beijinho e bom domingo :)

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  2. Querida Maria João,
    Uma história triste mas a sua narrativa transforma-a em beleza.
    Com uma primavera mais curta, esta menina tem agora no texto longevidade.
    Beijinho. :))

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  3. Olá Maria João, veja só que coincidência, a casa em Marvão onde é hoje a Mercearia e a Estalagem da minha filha filha Catarina, pertenceu aos pais da Sofia Amélia, a d. Benta e o sr. Garção.

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  4. Posso entender o que sentiste e te ficou gravado para sempre. Também tive várias experiências como essa, a que mais me marcou foi a de um primo da minha idade a que estava muito unida e morreu por um acidente de carro. Ao pai de um amigo matou-o uma criança com a sua própria espingarda de caça, quando estava a dormir a sesta no campo. E outro rapaz afogou-se no rio, foi ao fim da tarde, toda a vila corria rua abaixo, eu era muito miuda e fiquei sózinha em casa. Fui a acender um candeeiro que ele tinha oferecido à minha mãe, e tinha-se fundido a lâmpada. São coisas que nunca se esquecem, acompanham-nos toda a vida.
    Gostei das pinturas de Waterhouse, sempre sugerente.
    Que tenhas um feliz domingo, beijinhos

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