Num livro que recorda os esquecidos do seu
tempo, Mayer Garção, (Os Esquecidos, Empresa Editora A Peninsular, 1924)), leio um texto com muito interesse sobre o "mais esquecido dos esquecidos": José
Duro.
Um dia, o poeta que já publicara em 1896 o livro "Flores",procura Mayer Garção porque queria imprimir o seu segundo livro e, antes de
o publicar, gostava que alguém o lesse:
“Encontrei-me com
José Duro na cervejaria do Gelo. Não esquecerei nunca a febre que reluzia nos
olhos desse rapaz, em cujas faces se descortinavam já os estigmas da morte próxima.
Sentámo-nos a uma mesa, e, com voz
rouca, durante longo tempo, ouvi a leitura do seu manuscrito, entoada com
estranha paixão. Os criados perpassavam, servindo fregueses, àquela hora ainda
raros, e, a essa banal mesa de café, eu assistia ao desenrolar de imagens,
escutava a música dos ritmos, via
desfilar as visões daquele espírito amargurado.
(…) ali, aquele poeta
desgraçado e amargo despenhava perante mim os diamantes do seu espírito,
porventura imperfeitamente lapidados, mas dum brilho, duma pureza, duma água
tão cristalina que se diriam porvir da terra virgem, aliando à cor do sol o
perfume das flores silvestres.
Nunca ouvi ler assim,
nem desejo tornar a ouvir ler assim. José Duro, com a sua voz rouca, quase não
fazia uma pausa. OH! Rapidez terrível, aflitiva da sua leitura, a ânsia a
exprimir em gritos o fruto da sua paixão! Dir-se-ia que esse rapaz, tão novo,
receava não ter vida para chegar ao fim, e por isso traduzia a correr, a marcha
final dos seus sonhos, na galopada frenética das suas palavras!”
O livro que se intitula "Fel", é publicado
na imprensa Libânio da Silva. Dias depois, Mayer encontra o amigo, que lhe apresentou José Duro, e pergunta por ele. Eis o diálogo:
"-Já não sai de casa.
- Piorou?
- Piorou
assustadoramente.
E o livro?
-O livro está quase
pronto. Pois se ele é tão pequeno!
Era bem pequeno e, todavia, como era grande!”
José Duro era um jovem poeta com a morte já marcada. Nasce Morre aos 23 anos. Nasce a 22 de Outubro de 1875, em Portalegre, e morre, em Lisboa, em 18 de Janeiro de 1899.
Portalegre ao longe, foto de D.C.
A tuberculose mina-o, sofre por não ter saúde, por amar e não ser amado, por tudo ter passado por ele e tão jovem! Queria ser igual aos que tinham saúde. Sofre...
"Já não sou aquele Eu do tempo que é passado,
(...)
Não sei do meu amor, saúde não na tenho,
E a vida sem saúde é um sofrer dobrado."
Tinha 23 anos quando morre...
Lembro-me do banco de José Duro, na velha Corredoura de Portalegre.
A Florinda levava-nos lá e a minha avó também. E de vez em quando, à tardinha, nos dias de anos, a minha mãe levava-nos. Era ela que nos tirava as fotografias...
Brincávamos em correrias, jogávamos ao ringue e à bola. Havia bancos no meio das flores, ou pelo menos assim eu me lembro desse passeio público da minha infância. Os adultos sentavam-se, nós não parávamos de brincar... Sim, recordo o banco de José Duro! Tenho-o nos olhos, imagem num bronze esverdeado de um rosto jovem e sonhador.
Hoje, transformada a Corredoura num parque inglês (?), o banco desapareceu, mas sei que o medalhão com o poeta está no Museu da Câmara. E o parque inglês até ficou bonito!
Quando o livro é publicado, O poeta quase não tem tempo para o ver ou para ler as críticas: três semanas depois, José Duro morre. Tuberculoso, como tantos poetas do seu
tempo. Basta citar António Nobre e Cesário Verde.
"Mas esses tinham tido o seu
momento de glória, foram apreciados, conhecidos".
Continua Mayer Garção:
“O pobre José Duro ignorado vivera sempre. O seu livro era sua estreia e ele
morreu com a desoladora impressão de que ninguém o lera ou apreciara. Não
conheço de todos os esquecidos nenhum mais esquecido. E, todavia, a sua memória
há-de reflorir. Nessa magnífica, angustiosa e suprema poesia Doente, com que o
Fel termina, uma quadra fecha o testamento do poeta.
"Por
isso irei sonhar debaixo de um cipreste
Alheio
à sedução dos ideais perversos…
O
poeta nunca morre, embora seja agreste
A
sua inspiração, e tristes os seus versos!"
Quero dar o meu
contributo para que haja um reflorir do poeta!
Como dizia ainda
Mayer Garção, “A inspiração de José Duro não era agreste. Ela nascia, doce e pura, na sua alma. Simplesmente, passava por uns
lábios embebidos no fel dos desenganos.”
Leiam este lindo poema de Primavera que fala das coisas simples que um rapaz do campo, como ele, gostava de apreciar: a natureza...
Papoilas em botão,
preses a abrir, às vezes
Papoilas escarlates,
na corola, um frade…
Pois quem não há-de,
ó Alegria, quem não há-de
Rir do que dizem,
desfolhando-as, os rapazes
Quando vagam,
errantes, em busca de grilos
Campos em fora, almas
agrestes como trilos,
“Não faças bulha, ó
Andorinha, Ó Zé Talocas,
Que nos podem ouvir,
que nos ouvem mexer.”
E os grilos emudecem,
transidos nas tocas
Ou à sombra d’algum
malmequer. E é dor ver
Aquela guerra de
traição, que raro falha,
Dos rapazes cruéis,
armados de uma palha,
Que é para o mundo do
griledo concertante
O mesmo que uma lança
é para um elefante!”
(in Flores)
Papoilas, Foto de Isabel V.
Ou este soneto, tão diferente no tema e no tom dorido:
Em busca
"Ponho os olhos em mim, como se olhasse um estranho,
E choro de me ver tão outro, tão mudado...
Sem desvendar a causa, ó íntimo cuidado
Que sofro do meu mal - o mal de que provenho.
Já não sou aquele Eu do tempo que é passado,
Pastor das ilusões perdi o meu rebanho,
Não sei do meu amor, saúde não na tenho,
E a vida sem saúde é um sofrer dobrado.
A minh'alma rasgou-ma o trágico Desgosto
Nas silvas do abandono, à hora do sol posto,
Quando o azul começa a diluir-se em astros...
E, à beira do caminho, até lá muito longe,
Como um mendigo só, como um sombrio monge,
Anda o meu coração em busca dos seus rastros..."
in Antogia de Poetas Alentejanos
Fernando Pessoa e Cesário Verde consideram-no como exemplo. José Régio, grande poeta -felizmente não esquecido!- gostava dele. Escreveu um soneto que lhe é dedicado: