Volto
a Tolstoï, para satisfazer a minha amiga Isabel, que ainda tem muita
curiosidade. E ainda bem!
No
livro que lhe dedicou Ivan Bounine, encontro muitas coisas. Intitula-se “La
délivrance de Tolstoï” (1) e fala dessa necessidade de libertação.
Délivrance?
A libertação receada e ambicionada.
Libertação da
vida? Ou, aprendizagem da morte todos os dias da vida?
Aproveito para falar também do livrinho precioso de Michel Aucouturier, La grande âme de la Russie” (2).
Uma vez Sophie criticara-o por mudar de opinião e ele respondera: “Devemos mudar, se quisermos melhorar”.
Na
madrugada de 29 de Outubro de 1910, Tolstoï abandona a casa da sua propriedade de Iasnaya-Polyana
para morrer.
a casa de Iasnaya-Polyana (imagem da net)
Foge para se livrar da presença opressiva da mulher, Sophie
Andreïvna Tolstova?
Sophie e Leão Tolstoi, Set 1910, 2 meses antes da morte
A mulher que amou sem dúvida e cuja presença se lhe
tornara penosa. Um grande amor que acabou em ódio? Acontece muitas vezes.
Só que da parte de Tolstoï não foi, talvez, um grande amor. Tolstoï estava
apaixonado pela mãe de Sophie.
Faziam uma diferença de muitos anos ele e a mulher. Mas não interessa esse pormenor.
a família de Tolstoï, em Iasnaya-Polyana (net)
Quando
descobre a fuga de Tolstoï, Sophie desespera-se, soluça pela casa fora, como uma
louca e tenta suicidar-se duas vezes nessa manhã. Há uns tempos que sofria de
desequilíbrios nervosos.
imagem do livro "La grande âme russe"
Ele
não quer voltar. E não voltará.
Escreve Bounine: “Não queria morrer como um homem do mundo em que vivera e que esgotara, prefere a morte do
animal, segundo a mais antiga lei da natureza, no mistério sagrado que rodeia a
morte de uma fera, ou de um pássaro, em liberdade.”
... ... ...
No
dia 30, escreve à mulher e, depois, aos filhos. Diz-lhes que não
voltará a casa e termina assim: “Adeus, tentem tranquilizar a vossa mãe, por
quem tenho o sentimento mais sincero de compaixão e de amor (…)”.
a família de Tolstoï
Ela
vem, mas não pode aproximar-se. De noite, vai espreitar pelas janelas do quartinho
da estação de Astopova, onde ele está a morrer. Por entre as cortinas, fixa o vulto deitado e chora. Amparada pelos filhos, volta para a carruagem onde viera e onde
ficou instalada até ele morrer.
Audrey Hepburn, primeira Natasha do cinema
Conta Bounine: "À filha, Alexandra, recomenda: ‘Entrega aos
teus irmãos esta carta quando eu morrer.’ E chorou. O estado de saúde piora. A noite de 3 para 4
de Novembro foi uma das mais penosas. À tardinha, enquanto lhe arranjavam a
cama, disse: 'Os moujiks, os moujiks,
como eles sabem morrer!' E chorou outra vez.”
“A manhã do dia 4 foi alarmante. Um sinal funesto apareceu: puxava o cobertor
para si, sem parar, e os dedos passeavam, por cima dele, desordenadamente.
-
Não pense, pede-lhe Alexandra Lvovna.
-
Mas como não pensar! É preciso pensar!
(Delirava?)
-
Venham cá, de que têm medo? Por que não vêm ajudar-me todos, por favor … Procurar, procurar sempre.
O
filho Serge Lvovitch conta que o ouviu dizer, no delírio:
«Sempre… Eu…sempre manifestações… chega de
manifestações… é tudo.»
Bounine acrescenta: “Estas suas palavras estão carregadas de sentido; nada as pode
apagar. No Diário, Tolstoï escrevera,
poucos meses antes: 'As palavras dum
moribundo são muito importantes.'
A
7 de Novembro de 1910, Tolstoï morre na pequena estação de Astopova.
O
retrato que Ivan Bounine traça dele, com pinceladas rápidas e precisas,
recordando o que outros escreveram depois da morte do escritor, reunindo
excertos dos seus livros, contando os breves encontros com o aquele considerava um
Mestre, e falando da admiração que tinha por ele.
“Muito jovem, já sonhava encontrar Tolstoï.
Tinha ouvido falar dele desde pequenino. Lembro-me que o meu pai gostava de
irritar os seus vizinhos, dizendo quais deles leriam “só” a guerra e quais “só”
a paz: havia os saltavam tudo o que se referia à paz e os outros que ignoravam tudo
o que se relacionava com a guerra. A
natureza dos sentimentos que Tolstoï me inspirava era muito complexa."
"Quando
o meu pai contava lá em casa: ‘Sim, conheci Tolstoï durante a campanha da Crimeia…’, eu
olhava-o com admiração: ele tinha visto Tolstoï. (…) Tinha uma paixão pela
imagem que criara dentro de mim e que aspirava encontrar na realidade.” (p.58)
Anos
mais tarde, numa ida a Moscovo, um amigo arranja-lhe um encontro com o mestre
na casa da rua Khamovniki. E realiza o seu sonho. Toda a emoção desse encontro
vem descrita em muitas das páginas do livro. Não esqueceu nada do que ouviu
“Para que veio ver-me? É um jovem escritor?
Escreva tudo o que tiver na vontade, mas não esqueça que a finalidade da vida
não é essa.”
E
de repente, começa a perguntar-lhe tudo, e não para de querer saber coisas
sobre Ivan: o que quer escrever, o que lhe interessa na vida, o que pensa.
No
fim, Tolstoï pede: “Venha
ver-me quando voltar a Moscovo! Não espere nada de excepcional da vida. Nunca
será mais feliz do que hoje. Não há felicidade… Há apenas momentos de
felicidade. Aproveite-os. Aprecie-os. Viva deles.” (p.67)
Fala
dos momentos felizes da infância e de como foi dura a passagem para a
adolescência:
“Foi o maior sofrimento da vida. Esta nova idade parecia-me terrível. Só o sentimento da dignidade e da consciência de
cumprir um dever me aguentava. Mais tarde, no correr da vida, aconteceu-me
muitas vezes viver momentos semelhantes nas encruzilhadas da vida. Senti então
a tristeza do irrevogável, do irreparável. (p. 51) No momento em que tive de mudar o bibe para a roupa de adolescente, vi o que sofria. Que pena, tanta pena…mas era preciso. Pela primeira vez
percebi que a vida não é um jogo mas uma empresa difícil. Pensarei o mesmo
quando morrer? Compreenderei que a vida futura não é um jogo, mas uma empresa
difícil?”
…
… …
E
é à volta dessa futura empresa difícil (la délivrance: do tempo que decorre entre nascimento e libertação final) que Bounine escreve o seu livro.
“Porquê
esta angústia? Medo de quê?" - “De mim”, responde, quase imperceptivelmente, a voz da
morte. “Porque eu estou aqui”.
Tolstoï
pensa: “Mas a morte não devia existir.
Ela não existe. E a vida futura é um absurdo…”. E termina a frase, escrevendo: “… um absurdo, porque a vida está fora do
tempo”.
Nas
Confissões (1882) escrevera sobre a
obsessão do suicídio que tivera muitos anos antes. E que vencera. A razão dessa ideia era no fundo a do
absurdo da vida, se a morte tudo anula.
“A
minha pergunta, aquela que, há cinquenta anos, me levou à beira do suicídio, era a
mais simples das perguntas, a que cada homem traz dentro de si, desde a
criança mais tonta ao velho mais sábio (…) ‘há
na minha vida um sentido tal que não seja destruído pela morte que me espera
inevitavelmente?’ ” (in La grande âme de la Russie, p.62)
Em
1860, quando morre o irmão Nicolas (1825-1860) com 35 anos, escreve ao amigo e
poeta Fet: “Quando o homem atinge um grau
superior de evolução e deixa de ser estúpido, apercebe-se que tudo é absurdo e
ilusório, e que a verdade que tanto procurámos - essa verdade é assustadora”.
Quatro anos antes, morrera o irmão Dmitri, com 27 anos.
A
morte de Nicolas marca-o muito. Escreve no Diário, no dia 13 de Outubro de 1860:
“A morte de Nicolau foi a impressão mais forte da minha vida”.
Era o irmão
preferido. Era ele quem contava histórias aos outros, as histórias dos “irmãos
formigas”. Sentados no chão, pelos campos da propriedade de Iasnaya-Polyana,
eram os irmãos amigos, sempre juntos, fazendo-se companhia, como as formigas.
Um dia, Nicolau diz que quer ser enterrado naquele sítio mesmo onde estavam sentados,
ali no meio do campo verde. E pôs uma palhinha verde no local.
Dias antes de morrer, Tolstoï, de passeio com a filha por esses sítios, pede para ser enterrado ali. E, de facto, é nesse campo de Iasnaya-Polyana que hoje repousa.
Tosltoï, pintado por Repin: nos campos e a escrever
Dias antes de morrer, Tolstoï, de passeio com a filha por esses sítios, pede para ser enterrado ali. E, de facto, é nesse campo de Iasnaya-Polyana que hoje repousa.
túmulo onde repousa na sua propriedade
Sim, a morte era uma realidade demasiado presente.
Príncipe André, Batalha de Austerlitz
Ivan Bounine recorda-nos as palavras do príncipe André, na véspera da batalha de Borodino: “Ah, meu coração, nestes últimos tempos a vida tornou-se-me penosa. Vejo
que compreendo coisas a mais. E não é bom colher na árvore do conhecimento do
bem e do mal.”
Saber
tudo, querer compreender tudo. No leito de morte, ainda dita o seu Diário e diz a quem lhe está ao lado: -
Pega no caderno e escreve…
«Como
se tivesse sempre 15 anos, desejo compreender o incompreensível.» (op. cit. p.
144)
“Começa a sua luta sem fim com a vida que “vai morrer”, de que falara nas “Confissões”, escreve Bounine (p. 192).
Sim, na pequena estação de Astopova, na fuga de Iasnaya-Polyana, Tolstoï vai defrontar-se, pela última vez, com a vida e com a morte.
... ... ...
Michel Aucouturier (1933), tradutor e especialista de Tolstoï e da Literatura Russa
E
testemunhos de escritores contemporâneos de Tolstoï sobre ele. Refere
testemunhos de escritores que, depois da morte de Tolstoï, falam dele.
“A grande alma russa, a chama que se acendeu
há cem anos na terra, foi, para os da minha geração a luz mais pura que
iluminou a nossa juventude (…) estrela consoladora. (…) Entre todos, Tolstoï - que
foi mais do que um artista, foi um amigo, o melhor amigo, e para muitos o único
amigo verdadeiro em toda a arte europeia. (…) Memória sagrada, o meu tributo de reconhecimento e de
amor”. (op. cit., p.108)
Enterro de Tolstoï na sua propriedade
Gustave
Flaubert, por exemplo, que considera Guerra
e Paz uma obra-prima, sobretudo os dois primeiros volumes. Considera o 3º volume
mais fraco e “cheio de filosofices”.
Em
carta a Ivan Tourgueniev (3) escreve: “Obrigado por me indicar o romance de
Tolstoï, é de primeira ordem! Que pintor e que psicólogo! Os dois primeiros
volumes são sublimes; (…) no
terceiro, vai-se abaixo: vemos o senhor, o autor, o Russo, enquanto até ali se
via a Natureza e a Humanidade.” E acrescenta: “É forte! é bom! muito bom!”
Ou
Romain Rolland, autor do romance inesquecível, “Jean Christophe”, que tem uma
admiração sem limites pelo escritor e pela sua obra.
Assim
testemunha ele, na biografia que escreveu sobre o escritor:
imagens do enterro de Tolstoï
…
…
O
que fica de Leão Tolstoï ?
Anton
Tchekhov escrevera, numa carta a Menchikhov, em Janeiro 1900, citada por Aucouturier.
“Receio a morte de Tolstoï. Se ele morresse,
haveria um vazio enorme na minha vida”. Não teve esse desgosto, morreu
antes, tão jovem ainda…
E
Maxyme Gorki, em 1919, afirmará: “Eu sei
como toda a gente que não há homem mais digno, do nome de génio, mais complexo,
mais contraditório e mais belo na sua totalidade. Sim, em tudo, sim, em tudo!
Olhem o homem mais extraordinário
que vive na terra! Porque ele abarca
tudo, por assim dizer, e é antes do mais, um homem, o homem da
Humanidade!” (5)
imagens do enterro, gentes que se deslocam para assistir
O que ficou de Tolstoï? O que escreveu, claro. A curiosidade de tudo saber que o levou a escrever romances incomparáveis. A querer entender os homens e a natureza. O pensamento claro. O conhecimento da árvore da vida e da morte, do bem e do mal.
E, ainda, a palavra que reserva aos que se lhe dirigem, aconselhamdo-os. Como da última vez que Ivan Bounine o encontra, em Moscovo, na rua Arbat, e se interessa pelo que está a escrever.
pintado por Ilya Repin
Perante o desalento de Bounine, que considera tudo o que escreveu inútil, e receia não mais ter assuntos para escrever, Tolstoï protesta com veemência:
“O quê? Se não sabe sobre o que
há-de escrever, escreva isso mesmo, que não sabe o que há-de escrever. E diga
porquê. Procure a razão dessa ausência de assuntos e descreva-a.”
No fundo queria dizer-lhe: "Não desistam, nunca!" Penso que é uma lição para todos nós!
sala de jantar da casa-museu de Tolstoï em Iasnaya-Polyana (net)
Quem foi Ivan Bounine? Poeta e romancista, nasceu em 22 de Outubro de 1870, em Voronejo, na Rússia, e foi Prémio Nobel de Literatura em 1933. Morreu em Paris em 8 de
Novembro de 1953.
(1) Ivan Bounine, La délivrance de Tolstoï, (a 1ª edição é da Gallimard, 1939, e a que li é das Editions L'Oeuvre, Paris, 2010)
(2) Michel Aucouturier, La grande âme de la Russie, Gallimard Découvertes
3) in Correspondance Flaubert-Tourgueniev, carta de 21 de Janeiro de 1880. Foi Ivan Tourgueniev quem deu a conhecer em França, onde vivia, a obra do escritor quando sai a tradução de Guerra e Paz, em 1879.
(4) Do livro (biografia) de Romain Rolland, Vie de Tolstoï, Hachette
(5) Maxime Gorki, Uma Carta, em “Souvenirs sur Léon Nikolaievitch Tolstoï”, Berlim, 1919
Sobre o enterro do escritor:
(2) Michel Aucouturier, La grande âme de la Russie, Gallimard Découvertes
3) in Correspondance Flaubert-Tourgueniev, carta de 21 de Janeiro de 1880. Foi Ivan Tourgueniev quem deu a conhecer em França, onde vivia, a obra do escritor quando sai a tradução de Guerra e Paz, em 1879.
(4) Do livro (biografia) de Romain Rolland, Vie de Tolstoï, Hachette
(5) Maxime Gorki, Uma Carta, em “Souvenirs sur Léon Nikolaievitch Tolstoï”, Berlim, 1919
Boas notícias! Vai
sair em 2015 uma nova série inglesa da BBC inspirada no romance "Guerra e Paz".