sexta-feira, 1 de agosto de 2014

JOHN STEINBECK : “A UM DEUS DESCONHECIDO”





 “This is about belief and faith of the strongest type: The intangible, the unknowable, and impossible”
(Andrew Liptack)

O romance de John Steinbeck, A Um Deus Desconhecido (To A God Unknown) descobri-o recentemente. Será que já o tinha lido? Provavelmente sim. Mas, na altura, não me causou uma impressão especial, o que já não aconteceu com “A Pérola”, um dos livros de Steinbeck que mais amei! 
Consegui descobrir na internet a capa do livrinho da Europa-América onde li a história...


Esse livro e o Tortilla Flat, o maravilhoso Milagre de San Francisco, foram os meus preferidos.


A Pérola foi a minha primeira leitura “a sério”, e foi um deslumbramento. Uma dor enorme também, recordo, e uma angústia que nunca tinha sentido, o medo do que iria acontecer àquela gente. E a incompreensão da razão por que aconteciam as coisas que o escritor contava.
Teria nove ou dez anos. Lembro-me muito bem de estar nessa altura em casa dos meus avós e, à noite, ler o pequeno livro, bem tapadinha e com uma luz ao lado esquerdo. Lembro-me do cobertor que estava aos pés do divã, um cobertor felpudo que tinha um leão amarelo em fundo vermelho. A história de Juana e Kino e do pequeno Coyotito, a miséria e a tristeza, das suas vidas difíceis, nunca esqueci. Ficou-me nos olhos o escorpião, que ainda hoje “vejo” descer pela parede chegando-se para a criança! (*) Voltei a ler o livro umas três ou quatro vezes. E sofro sempre, do mesmo modo agudo e desesperado, a injustiça da vida dos personagens.

Livros Do Brasil, reedição 2014

Desta vez, A Um Deus Desconhecido impressionou-me. Escrito pelo autor, ainda muito jovem (é o seu segundo livro), a perplexidade e a interrogação passam pelas 200 páginas do livro.

O herói é um personagem com o qual a identificação é difícil, mas os romances não são para nos identificarmos (sempre) com os personagens, é para nos obrigar a pensar sobre pessoas diferentes de nós e tentar compreendê-las.

O romance passa-se no século XIX e começa em Vermont, perto de Pittsford. Joseph Wayne é um homem estranho, muito estranho mesmo. Um solitário, com um rosto de Cristo sofredor e espantado.

Começa ao cair de uma tarde de Inverno, quando Joseph vai falar com o pai e lhe diz: “A terra vai deixar de bastar, senhor pai.”

E fala-lhe do seu sonho de ir para o Oeste, à procura de terrenos.
Tem sede de terra: “Esta terra não chega”, e acrescenta: “Não cabemos cá todos. A terra não estica, pai, e eu estou faminto de terra.”
Soubera que havia terrenos à venda, baratos, na Califórnia, e decide ir à aventura.

O pai, que não se quer separar dele, responde: “Se tu esperasses mais um ano (…) eu não me importaria. Tu não és o mais velho mas sempre pensei que era a ti que daria a minha bênção para tomares o meu lugar. Há em ti qualquer coisa de mais seguro e íntimo.”

O filho descansa-o: “Pai, ali, passado um ano depois de lavrada, a terra é nossa e ninguém pode voltar a tirá-la.”

Galleni-Kallella, Lavrando a terra

E o pai acaba por consentir e dá-lhe uma bênção especial - e promete que um dia irá ter com ele a essa terra bendita.

Joseph parte, cheio de ilusões. Pouco depois de se instalar na nova terra, perto da fronteira mexicana, com muita gente índia a viver ali, recebe a notícia da morte do pai. O desgosto é enorme, e uma ponta de remorso vai-lhe roendo a alma, porque o deixou e não o acompanhou na sua morte.


Edvard Munch, O Assassino na Alameda

Quando recebeu a carta, olhava para um velho carvalho, em frente da casa, e pareceu-lhe que as folhas se agitaram de outro modo, com outra vida. Para se consolar, talvez, inventa para si que o espírito do pai se tinha introduzido na velha árvore: ali mesmo, no âmago. E começou a “adorar” a árvore.


A partir de então, era a ela que pedia conselho, ou, silenciosamente, se recolhia e ficava a olhá-la até decidir das coisas importantes.

Deificação da natureza? Paganismo? Panteísmo? Penso que era uma necessidade de acreditar numa forma diferente de “Deus”, de absoluto: um deus que ele criava, desconhecido para todos.

Fala da crença e da fé do tipo mais forte: do intangível, desconhecido, e impossível”, escreve Andrew Liptack, num artigo muito interessante que encontrei na internet.

Tentando uma explicação, continua: “Joseph acredita na inteireza do universo, que ele sente mais essencial e universal do que a Igreja, que olha apenas para um único dos Deuses. Dessa sua visão mais ampla e geral do funcionamentodo mundo, sinto-me mais próximo.”

Na sua procura, descobre um lugar sagrado dos índios. Tradições ancestrais, cultos esquecidos, rituais para a natureza circundante ser propícia.
Os irmãos vêm, trazem as mulheres e os filhos, criam uma comunidade, mas não entendem Joseph. O irmão mais velho, muito religioso, pensa que na árvore está o Diabo, e os poderes ocultos do mal e das trevas.
Simberg, o Pobre Diabinho

Avisa-o: “Estás dando entrada ao mal” e, virando-se para Elizabeth, mulher de Joseph, diz: “O meu irmão está a negar Cristo. Está a adorar como os antigos pagãos. Está a perder a alma.”

Hugo Simberg, Conto de Fadas

Joseph, espantado, responde, sorrindo: “Não estou a negar Cristo, estou a fazer uma coisa simples que me dá prazer.”

Seguindo Liptack “esta história que se inspira da Bíblia, de mitos antigos, de paganismo e de muitas outras coisas, é também uma história sobre crença e fé, realidade e fantasia - que eu realmente chamo uma novela de ficção especulativa.
 (…) Tem a maneira mais honesta e crua de crença: acredita na terra, e vê as suas acções recompensadas em vários modos e punida também.
(…) Para mim, foi um livro interessantíssimo porque (…) as minhas crenças estão próximas das de Joseph: Deus, ou outro qualquer poder mais alto que escapa às definições, é algo que não se pode conhecer, que é intangível e misterioso.”


Na Introdução ao livrinho, da “Colecção das três abelhas”, interroga-se o editor: Para Joseph não se trata dum amor, ou apenas amor à terra. Poderá chamar-se amor a esta unidade mística e omnipotente com todas as forças da natureza?”

Não posso deixar de concordar com os dois… Este livro de Steinbeck é um canto do amor pela terra - mas igualmente da procura do tal absoluto. Do amor e do respeito pela natureza em todos os seus aspectos. Na sua totalidade. Sente-se o "pulsar" da natureza junto do coração do homem, como se fossem um só.

Joseph é, no entanto, um homem martirizado, um homem que não sabe amar, nem odiar, nem ter compaixão, mas que é generoso, numa quase indiferença. O que sacrifica de si e dos seus, sacrifica sem dor. Como se a dimensão onde vive não fosse a mesma do resto da humanidade.

Edvard Munch, A mulher de branco

Amou Elizabeth, a mulher? Ele não era capaz de amar... E amá-lo a ele também era difícil. Segundo diz Rama, a cunhada de Elizabeth: "Amá-lo, não, acabarás por o adorar (...) Vais vê-lo sonhar e nunca saberás qual é o sonho dele..."

Quando o conheceu, ele assustara-a. Ela ama-o, mas quando estão noivos e vão casar, chora: “Será que vou mudar quando casar? Ser adulta o que é?”


Marc Chagall, Os noivos em fundo azul 

E tem saudades da criança que vai ficar para trás: “Sim, porque é amargo ser-se criança”, pensava, “há tantas superfícies novas que se podem riscar”.
Zinaida Serebriakova, Retrato de I.Ribakova adolescente



No dia do casamento, reza: “Ajudai-me meu Jesus porque tenho medo. Em todo o tempo que tive para aprender a conhecer-me, nada aprendi”.

Sente que dele também não sabe nada: aquele homem com um rosto iluminado que parece o Cristo da paixão - e com quem vai casar, sem nada entender nem dela nem dele.

Giovanni Belini, Cristo Morto


Um homem à procura de um “Deus” diferente? Não sei. Um homem que encontrou um deus- desconhecido até então- que identificou com a terra? Ou um homem que se julgou um deus? Fica a pergunta.


“(…) Primeiro havia a terra, Juanito; depois vim eu guardar a terra; e agora a terra está quase morta. Só restam este rochedo e eu. Eu sou a terra.” (p.186)

(I should have known (…) I am the rain. (…) I am the land (…) and I am the rain. The grass will grow out of me in a little while.)

Só a terra e as forças da terra o emocionam. Porque são o deus que procurava? A elas foi fiel, até à morte.


John Steinbeck -cortesia da Steinbeck House


8 comentários:

  1. Cada post seu é uma "lição" que nos maravilha. Fico com vontade de ler logo os livros de que fala.
    Estou quase a acabar o "Cão e o Dono". É muito bonito.

    Um beijinho GRANDE e bom fim-de-semana :)

    ResponderEliminar
  2. Tenho urgentemente de ler A um Deus Desconhecido, até porque essa temática (religiosa) não a desenvolveu nos livros que li dele.
    Adoro Steinbeck. É um dos raros escritores do qual nunca li nada que me desiludisse.
    O que mais me fascina neste génio, no entanto, é o que está para lá da própria arte literária. É a humanidade; é humanismo; é a bondade; é o saber ser humano...
    A sua obra-prima, As Vinhas da Ira é um dos maiores livros de todos os tempos porque está escrito com lágrimas. Não sei, acho que é impossível descrever o génio de Steinbeck...

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Concordo consigo, Manuel Cardoso: nunca nenhum livro de Steinbeck me desiludiu! E essa humanidade - o coração que bate perto dos outros-está em todos os livros.

      Eliminar
  3. Isabel, agradeço o que dizes. Não é uma lição! É uma vontade de dar alguma coisa que sei, ensinando...
    beijinhos. Há o livrinho na Wook.......

    ResponderEliminar
  4. A Um Deus Desconhecido?... Já o tenho, mas ainda não o li. Fiquei encantada com o que contou...compreendo a associação que o protagonista fez entre a morte do pai e o movimento da árvore. Compreendo o amor por aquela árvore...gostei do que contou sobre a história.

    O Poeta e o Ouricinho também estão a gostar da leitura!

    Um beijinho :)

    ResponderEliminar
  5. Boa noite. Li três ou quatro obras de Steinbeck na adolescência, há muito tempo portanto. Com o estimulo da MJ, que fez uma apresentação extensa e criteriosa, cresce a vontade de voltar a este autor.

    ResponderEliminar
  6. Nasci em Portugal há várias décadas. Li há muito "A um deus desconhecido", nem sei se ainda andará aí por casa... Marcou-me muito! Pelo menos tanto quanto me marcou "As vinhas da ira". Li várias outras obras de Steinbeck - graças a tais leituras fiquei bem melhor: humano e crítico do mundo dos homens, independente de deuses, tranquilo e mais universal. Formador de humanistas de caráter universal, Steinbeck deveria ser lido e ensinado em todas as escolas do mundo livre!

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Tem toda a razão quando diz que, depois de ler Steinbeck, "fiquei bem melhor: mais humano e crítico do mundo dos homens, independente de deuses, tranquilo e universal" Sim, concordo, devia ser leitura obrigatória. Eu já o estou a reler e a reler sempre com prazer! Descobre-se sempre alguma coisa que era preciso ser dita!E que nos faz bem...
      Abraço e boa noite!

      Eliminar