domingo, 9 de agosto de 2015

O Nini e o curandeiro da ilha...

Quando já estávamos instalados na casa  onde vivemos durante cinco anos, na Rua de Damão - que fazia esquina com a Rua de Goa, a Milly trouxe um dia o Nini, cheio de dores num braço, a pedir-me que o levasse a Almeirim, nos arredores da cidade, onde havia um "endireita". 
O Nini caíra duma árvore e deslocara o braço. Não chorava mas via-se bem que sofria.
Lá fomos pela estrada escalavrada, onde a vista dos cacaueiros de folhas vermelhas, sombreados por árvores altas com flores lilás e cor de laranja, era uma maravilha para os olhos. Chamavam-lhe ericínias. De vez em quando, desenhava-se o azul do mar lá, em baixo. 



Íamos para Norte, a estrada mostrava no horizonte, por momentos, a sombra enorme do monte Cão Grande.

A dada altura, tivemos de virar para o interior, apanhando um carreirinho que ia dar a um largo de terra batida. Terra cinzenta dos fogos, que as mulheres acendiam de manhã para cozinhar, e ode punham grandes panelas de ferro. Cozinhavam o peixe seco que vi tantas vezes no mercado, acompanhado de matabala ou banana-pão cozida ou assada nas brasas. Depois apagavam as brasas e desfaziam espalhando as cinzas pelo areal. A de São Tomé era uma comida pobre mas saborosa. Ainda hoje lembro o cheiro e o gosto do "calulu"!

As casas empoleiradas em estacas cinzentas de madeira encardida pelo tempo e sem tinta, deslavadas pelas chuvadas e queimada pelo sol. Casas elevadas quase a um metro do chão, que lembravam palafitas, com um ou dois degraus até à porta de latão, e um tecto de chapa ondulada, seguro com pregos e grandes pedras. 

Algumas tinham uma escada lateral que conduzia ao primeiro andar com balcão de madeira, alongado, num vago ar senhorial. As crianças brincavam na lama perto do tanque onde as mulheres lavavam a roupa, esfregando-a com as grandes bolas de sabão azul.



Um homem alto, de casaco pelos ombros, desceu de uma dessas casas altas. Cumprimentou-nos e entrou numa pequena divisão, em cimento, com uma pequena fresta vertical como janela, ao lado da habitação. Sentou-se num banco, a mastigar umas ervas. 

Eu fiquei encostada à porta, não entrei, não queria interferir de modo algum, com a minha presença.
Ia observando, no entanto. O mobiliário era constituído por dois bancos de madeira corridos, postos frente a frente. As plantas, as ervas e os emplastros, e os panos brancos que serviam de ligaduras, estavam na mesinha ao lado do braseiro onde ardiam plantas secas perfumadas.

O Nini tinha medo. O curandeiro intimidava-o com o ar sério, a sua imponência. Ou  talvez o assustassem as rezas que ele ia resmungando numa lenga-lenga infindável. 
Carlos Silva (Litos) "Terra-mãe" 


Pegou-lhe no braço e as mãos secas e nodosas massajaram-no com suavidade e segurança. Aplicou, depois, as cascas de árvore antes moídas num almofariz de pedra, onde cuspira as ervas que mastigava. Envolveu o braço num pano muito limpo.
quadro do pintor são-tomense, Nézò

À entrada da porta, ia ouvindo aquele murmúrio, em dialecto forro, de que não percebia nada. Impressionava-me a cantilena surda, que me entontecia.
Olho, fascinada, os gestos lentos daquelas mãos que parecem mover-se sozinhas, desligadas do seu dono...
O Nini, agora cheio de  curiosidade, parece ter esquecido o medo. O curandeiro fixa o pequeno doente e sorri. Um ambiente de calma espalhara-se em redor.
Havia um estranho equilíbrio entre os movimentos das mãos, a cantilena, e os olhos do curandeiro. 
Foi uma experiência inesquecível. Sei que ainda voltámos mais uma vez, talvez duas, mas esta primeira impressão é que me marcou. E a verdade é que o Nini ficou bem do braço. O que não significa que não tenha continuado a subir ás árvores...e a cair!

No regresso, já o sol descia sobre a baía de Ana Chaves. Em São Tomé, o dia cai às 5 horas da tarde.

A bola de fogo alargava no horizonte a sua mancha dourada estendendo-se pelo azul plácido das águas. 

baía de Ana Chaves

E de repente é a indecisão das cores e da luz do fim da tarde na ilha. Aqueles tons entre o cinzento, o azul-escuro do crepúsculo e o negro da noite que cai, inesperadamente, escurecendo tudo. 

O resto do caminho, na cidade mal iluminada, fizemo-lo depressa, porque tínhamos vontade de chegar a casa.

7 comentários:

  1. Uma história feliz. Uma paisagem que gostava de poder visualizar.
    Tanta paz...
    Beijinho grato e boa semana. :))

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  2. Adoro as suas histórias, que nos transportam até onde acontecem...

    Um beijinho grande e uma boa semana:)

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  3. Conheço São Tomé
    só não conheço o Principe

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  4. Muito bom este post, gosto imenso do teu São Tomé, já sabes. Um pouco do teu coraçãozito ficou lá pendurado dos cacaueiros e das ericínias lilás...Há coisas que nos marcam para toda a vida.
    Feliz dia, bjka

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  5. Vivências inesquecíveis...
    Mais os cheiros, as cores, as pessoas, a terra, o céu e o mar...
    São Tomé deve ser especial...

    Um beijinho e uma excelente semana.:))

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  6. Olá, MJ
    Lembranças que ficam para sempre guardadas. E, talvez em algum canto daquela terra, ainda haja um pedacinho seu lá bem guardado.

    abço

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  7. ~~~
    ~ Uma narrativa muito agradável
    dando a conhecer as tradições e beleza da ilha.
    ~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~

    Beijinhos gratos pelos bons momentos de leitura.
    ~ ~ ~ ~ ~ ~ ~ ~

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