quarta-feira, 25 de novembro de 2015

A "Correspondência familiar de Régio”, o reencontro com um amigo!


Vou lendo devagar as cartas de Régio aos pais (1). Como se o reencontrasse depois de tantos anos. E noto a ternura com que o poeta se dirige à mãe, e isso enternece-me logo: as suas queixas, a necessidade de apoio, de mimo que, implicitamente procura nela;  e o desejo e a preocupação de, mesmo longe, a acompanhar e amparar. 

As cartas começam sempre por “querida mamã” e “querido papá”, mesmo quando já é um homem crescido. A partir do dia em que a mãe morre, muda completamente e passa a chamar “querido pai”. Como se de repente a criança que ele se “sentia” quando a mãe era viva, tivesse crescido de repente e deixado de o ser. 
o pai de José Régio

Um desgosto que o abala profundamente mas de que nunca fala nas cartas ao pai, mesmo quando lamenta, no Natal de 1946, depois da morte dela, não estar em Vila do Conde. Sabe que o pai vai ter a companhia do resto da família, ele prefere ficar isolado com a sua dor.

Leio das dificuldades financeiras da família Reis Pereira, da coragem que era necessária para chegar ao fim do mês tantas vezes. Na vida do meu amigo José Régio quantos problemas de dinheiro, quantas “contas” com os pais, tantas pequenas dívidas de uns para outros, tantos pequenos “dramas vulgares”.
E, sempre, a preocupação de ter as contas em dia, sentindo que “pesava” aos pais, enquanto não tivesse uma profissão e o seu trabalho remunerado.
Régio em Coimbra -foto de Edmundo de Bettencourt (1929)

Fala de Coimbra e dos estudos e dos quartos alugados, do problema para comprar um sobretudo ou um fato novo. E outras pequenas coisas para que vai precisar da ajuda dos pais, “numa terra interesseira como esta, em que todos os favores se pagam.” (carta de 1924, pág. 99)

E mesmo nos primeiros anos de professor, em Portalegre (a primeira carta, de Portalegre, para o pai é de 9 de Dezembro de 1929), as dificuldades continuam. 
Tempos em que o que ganhava era pouco, e nem sempre pago a horas. “Este mês pagam só mais para o fim”, escreve muitas vezes.
Nessa primeira carta, fala do frio a que não estava habituado e da necessidade de comprar roupas quentes: “preciso de alguns objectos e alguns livros, e de um colete de lã, além de meias de lã, porque o frio aqui é respeitável.”
Não é fácil a adaptação ao clima continental, aos frios, aos ventos, às trovoadas que giram sobre a cidade horas a fio. 
Em 9 de Outubro desse primeiro ano escreve à mãe iniciando assim a carta: “Brevemente escreverei com mais vagar acerca deste meu desterro…” (pg. 20)
E, pouco a pouco, vai contando das trovoadas súbitas e violentas e das dores de cabeça que o atormentam: as suas “alergias”: “tenho dores de cabeça bastante frequentes nos últimos tempos. Mas já sei que são devidas às trovoadas, ventanias ciclónicas, atmosferas pesadas e súbitas alterações de temperatura”.


Assim que equilibra as finanças, vai, por sua vez, ajudar os pais, e participar com o seu dinheiro nos estudos dos irmãos mais novos, Apolinário e João Maria, que estavam na universidade. 
E preocupa-se com o crescimento e com os estudos do sobrinho Ramiro, filho de Apolinário, que foi criado pelos pais de Régio. 
desenho de Régio "para o Ramiro" (1967)...


com as empregadas velhas. E com a madrinha, as primas e sobrinhas e afilhadas - e com as prendas para elas...
E lá segue todos os meses um vale do correio com o que consegue mandar, com uma nota explicativa das coisas a que esse dinheiro se destina.
José Régio, anos 40

Leio dos seus problemas, do difícil trabalho de professor, com vencimentos baixos, dos pequenos “aumentos” que ele aguardava com ansiedade para poder “equilibrar” os dias - mas que sabe virem a significar “mais trabalho e mais dificuldades” e mais exigências numa profissão a que tanto se exigia e se revela tão difícil nesses tempos dos anos 30 e 40. E da adaptação complicada a tudo isso, num sítio tão longínquo da sua terra natal.
Régio, auto-retrato


No Inverno de 1941, escreve ao pai: “(…) o Inverno este ano tem sido terrível, e não só agora em que foi terrível em todo o Portugal. Há mais de dois meses que não há senão frio insuportável, (dou algumas aulas cheio de frio do princípio ao fim), chuvas violentas que entram dentro das casas, neve, ventanias furiosas, etc. Do que gostei foi de ver campos e montes cobertos de neve, que nunca tinha visto senão no cinema.” (pg 123)
Anos mais tarde, habituar-se-á à cidade do Alto Alentejo, às diferenças do clima, aos frios intensos e aos meses de calor tórrido, às pessoas,  sempre, porém, com saudades da sua Vila do Conde de clima suave - e da comida a que estava acostumado. 

De facto, quando, em 1945, surge a hipótese de uma vaga do seu grupo no liceu da Póvoa do Varzim fica dividido e inquieto, apesar de lhe agradar a possível aproximação da família. "(...) agora que tenho aqui a minha vida organizada, o meu ambiente de trabalho preparado, a minha casa arranjada a meu gosto, etc., etc. Já gosto de Portalegre e do Alentejo, com a condição de sair daqui de vez em quando, a férias ou de passeio. (...) demais, já estou afeiçoado a este liceu, a alguns colegas, aos rapazes que são meus alunos desde o primeiro ano." (pg. 128)
Itinerário Fotobiográfico (4)

Perpassa pela correspondência a sombra dos tempos, as dificuldades que se viviam, durante os anos da guerra e no pós-guerra, a crise enorme de que tantas vezes fala (“todos estamos mal, só os ricos é que não”). Falta o açúcar e a manteiga no Sul, falta o arroz ou o azeite no Norte. E ele encarrega-se de mandar aos pai um garrafão de azeite e uns pacotes de arroz sempre que pode.
“Eu queria enviar mais e melhor. Mas tudo falta!

Em 1941, escreve: "digo ao papá estas coisas para não estar desanimado de todo -pois, a não serem os ricos, todos têm agora dificuldades."

Em 1946, na última carta para a mãe -sem data- dirá: "Já estou morto por Vila do Conde. Embora, no fim deste anos de aclimatação, já goste muito, agora, de Portalegre, ou antes : dos seus belos arredores e da vida à minha maneira que aqui vivo (...)"

Um dia, a mãe, a luz que tanto amava, apaga-se. Assiste uns dias á sua lenta agonia. O golpe é demasiado brutal. Fecha-se em si. 
Em 23 de Dezembro de 1946, escreverá a propósito do Natal: "Eu cá o passarei como Deus quiser. Persisto  na ideia de ficar em casa, apesar dos convites, porque me sentirei melhor assim. (...) Cá me entretenho com os meus livros, meus escritos, as minhas velharias e as minhas recordações." (pg. 135)

No Diário pouco escreverá dessa dor pungente. Conta apenas dos pesadelos que começa a ter, a partir da sua morte. Pesadelos em que a mãe lhe aparece, viva e morta ao mesmo tempo, deixando-lhe uma angústia insuportável (Páginas de Diário Íntimo, pg. 82.)
"Ela estava ao mesmo tempo viva e morta,  -o que me causava uma angústia e um desespero indizíveis. (...) Nunca sonhara que ela pudesse, antes de morrer, decair a essa agonia lenta e humilhante. (...) E ainda não posso perdoar a Deus estas coisas!" (29 de Outubro de 1946)
E sonha que a mãe chega um dia à loja do pai, vestida de preto -e "era de luto por si própria. Porque ela já tinha morrido uma vez; e agora estava outra vez viva mas em  contínuo perigo."
José Régio, o pai e os irmãos João Maria e Júlio
A vida continua difícil de se viver. Nessa carta ao pai, antes do Natal, queixa-se: 
"Do miserável aumento que o governo entendeu dever conceder-nos já nada fica: subiu o preço da Pensão, subiu a lavadeira, subiu a soldada da mulher que me serve, subiu o preço da luz, etc.,etc. Mas é assim em todo o mundo não vale a pena a gente estar a consumir-se e a matar-se antes do tempo. (...) A mim o que me vale, ainda é o que vou ganhando fora dos meus vencimentos de professor. Estaria bem aviado se tivesse de me governar só com eles." (p.136)

Ao pai vai continuar a escrever e a falar dos problemas económicos, das suas publicações, das críticas e dos sucessos na literatura. O pai de Régio interessava-se por teatro e pelo que o filho escreve e será sempre um interlocutor nestes assuntos.

Numa das últimas carta ao pai (a última é  no dia 1 de Abril de 1957 e o pai morrerá a 24 de Abril), conta-lhe, para o animar, de um espectáculo da radiotelevisão. E da sua próxima ida a Vila do Conde, a férias.

" Houve em Lisboa, um espectáculo com a minha peça em um acto 'Três Máscaras'. Já me pediram, de lá, outra  peça que demorasse trinta minutos e talvez eu lhe mande uma em breve! Já falta pouco para as férias da Páscoa, e por isso já começo esperando voltar a Vila do Conde." (22 de Março de 1957)
Casa Museu José Régio (e o gigantesco Centro Cultural!)

* * *
Volto atrás, no tempo. Recordo-me de o cumprimentar, com um beijo, eu miúda pequena, no largo do Liceu, sem saber do que se passava na sua vida de todos os dias. E revejo a sua toilette cuidada, sinto o seu perfume de lavanda, e penso hoje sabe Deus com que dificuldades.
Agora, através da sua voz, vou revendo a minha cidade, em tempos que não conheci: as “trovoadas, as “ventanias ciclónicas”, ou as “atmosferas pesadas e súbitas alterações de temperatura” de que não me lembro. E as coisas que, como ele, sofria: o frio nas salas geladas do liceu em que -ele e eu- tentávamos aquecer, sem que nenhum comunicasse ao outro o que sentia. E é como se tivesse voltado à minha infância...

Não vou contar tudo o que me impressionou, nem da proximidade que voltei a sentir deste amigo tão antigo. Há mais mundos? Quem sabe? Contento-me em apreciar o que sempre encontrei nele, o amor e o respeito pelo outro, e uma grande humanidade. 
E a ter saudades dele!

"A pouco e pouco, vou chegando.
Não sei a quê. Sei que, na tarde ruiva,
Já mal respira, brando,
O Vento que só raro ainda uiva."


(1) As cartas de Régio foram publicadas, em 2010, com o título de “Correspondência familiar José - Cartas a seus pais”, introdução e notas de António Ventura, na editora Caleidoscópio, (colecção de José Régio). Editora que publicara em 2007  um outro livro sobre o escritor, da autoria de Maria José Madeira de Ascensão, A Personagem Feminina em 'Histórias de Mulheres'.
(2) a mãe de Régio, Maria da Conceição Reis, morre em 28 de Abril de 1946
(3) Páginas de Diário Íntimo, IMPRENSA NACIONAL/CASA DA MOEDA, 2002
(4) As fotografias de Régio e familiares foram tiradas do livro José Régio, Itinerário Fotobiográfico, ao cuidado de Isabel Cadete Novais,  IMPRENSA NACIONAL/CASA DA MOEDA

7 comentários:

  1. Um post muito interessante!
    Tenho esse livro de cartas e fiquei com mais vontade de o ler.

    Já tinha saudades destes post...tem andado "escondida"...

    Um beijinho :)

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  2. É estranho que tendo saído esta semana a correspondência de José Régio com seu irmão Antonino, que se radicou no Brasil com 19 anos, esse lançamento não seja aqui citado nem referido:
    http://www.regio.pt/2015/10/saiu-correspondencia-com-Antonino.html

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    1. Agradeço a sua informação. Desconhecia essa publicação. Vou ver o link que me enviou.

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  3. O seu texto sobre José Régio deu-me um enorme prazer. Recordar alguém com a
    ternura com que o fez enternece e sabe bem. Obrigada.
    ..........
    Assim, lacaios,guardas e senhores!,
    Soube afinal, que de mim próprio é que sou rico.
    Ninguém me roubará meus esplendores!
    Vós passareis!Eu sei que fico.
    (do livro "As encruzilhadas de Deus)

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  4. É sempre curioso conhecer a parte mais humana dum escritor. Com razão alguém disse que era "um habitante de dois mundos" .
    Sei da tua amizade com ele, que deve ter sido interessantíssima, nota-se que o aprecias e admiras, o que não é de estranhar
    Bom finde!.

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  5. Maria João,

    Gostei muito deste registo e gostava de ter este livro que não tenho.
    A fotografia de Régio na janela está fantástica.
    Obrigada por esta partilha.
    Beijinho.:))

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  6. Esta confidência que faz, aqui, da sua amizade com Régio revela ternura e admiração pelo professor e autor. ]E uma bela homenagem que a distingue, MJ.
    Por volta dos anos 1976-78 privei com um professor aposentado que conhecia desde miúdo, até porque a minha mãe frequentava a casa dele. Mas foi quando eu já adulto, em cavaqueira à volta de uma chávena de café mr contou as agruras dos professores da época (décadas de 40, 50. 60) que tinham a ver com as dificuldades económicas - materiais de toda a ordem - e sociais. Começava a narrativa invariavelmente com a expressão: "aquele santa-comba dum raio".

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