segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Pelas ruas de Trieste, no Outono, e em redor da literatura



O mar de Trieste e as suas ruas e bairros. Não me cansarei de repetir as maravilhas da cidade que fica lá bem ao norte da Itália, perto da Ístria e da Eslovénia, no Adriático.
A tranquilidade, o tempo que se desdobra, calmo, à nossa frente, os dias que se vivem pacíficos, sem pressas, sem atropelos. 
Os cafés sóbrios e confortáveis, muitos deles lugares de leitura e de estudo escolhidos pelos jovens e pelos menos jovens, as ruas amplas, a quantidade de  livrarias - as gentes sem agressividade: tudo é acolhedor para quem chega. 
Sem exageros, nem trataments especiais para o turista, que é, apenas, uma pessoa como as outras. 
No fim de semana em que chegámos  desta vez, realizava-se a Regata Barcarola e havia sobretudo turismo interno. Maravilhosos barquinhos brancos em cima do mar!
Barcarola, 2015 (net)

chuva, na Piazza de l'Unità

A Piazza dell' Unità deslumbrou-me de novo. Já a conhecia de outros tempos. Bela e nobre, aberta de dia como de noite. 
Ver chover na Piazza,  bebendo um chá quentinho no Caffè degli Specchi, é uma sorte, um momento inesquecível. 
Como o é visitar o "Caffè San Marco", ou o "Tommaseo" ou do "Ex-Urbanis", hoje Excelsior. Com tantas "presenças" em cada um deles.

Voltarei, ainda, a falar de Trieste! 
Hoje quero lembrar uma cena passada na Via degli Artisti, que fica antes da Via del Monte, onde era o antigo bairro judaico, o "ghetto". 
o "gueto" de Trieste

Os "guetos" foram sempre lugar situados  fora do centro das cidades, onde as famílias se acumulavam em prédios altos porque o terreno era sempre exíguo e os judeus muitos e com poucos direitos a espaços.

Mais tarde, criou-se uma classe média judaica, com dinheiro, ligada ao comércio e à banca. Trieste era um grande porto no Mar Adriático. Onde predominou durante anos uma cultura mista em que a a cultura mittel-europeia e judaica predominavam.

Diz Jan Morris (1) no seu livro sobre Trieste: "(...) os judeus vivem ainda em Trieste. O velho gueto, na zona detrás da Piazza dell' Unità, foi em grande parte demolido devido ao desenvolvimento urbanístico, o que resta é hoje uma zona "na moda" -como aconteceu em muitos guetos da Europa: abundam livrarias, lojas de antiquariado, galerias de arte e locais  de restauro. Aos domingos há uma 'feira da ladra'. Na via del Monte onde se acolhiam os visitantes judeus de passagem existe hoje o Museo Ebraico.(...) Aqui e ali sobrevivem vielas medievais abandonadas ou em demolição."
Lembro o escritor e dramaturgo, Italo Svevo (Aron Hector Schmitz), nascido, em 1861, numa família de religião judaica, em Trieste – cidade que pertencia ao Império Austro-húngaro.  

De pai alemão e mãe italiana, Svevo é o símbolo da cultura mista da cidade. Em 1874, vai estudar, para a Baviera, línguas, literatura e matérias ligadas ao comércio. Volta para Trieste em 1878 onde termina os seus estudos comerciais.  É o autor de grandes livros como "La coscienza di Zeno" ou "Senilità". 
Italo Svevo, pequena escultura em terracota

Quando o pai morre e deixa a empresa falida, ele vai trabalhar na filial do Banco Union de Vienna. A sua biculturalidade é, no entanto, vivida sem conflito. Em harmonia. Os escritores clássicos italianos estarão a par das leituras de Nietzsche ou Shopenhauer. Morre, estupidamente, em 13 de Setembro de 1928, depois de ser atropelado por um carro. 

Se tivesse vivido alguns anos mais tarde,  teria sido "apanhado" pelo nazismo. De facto, em 1938, com a promulgação das leis raciais, os judeus triestinos foram proibidos de partir. Mesmo que quisessem, não podiam viajar, portanto, nem entrar nem sair da cidade. Alguns conseguiram esconder-se no interior da cidade.
 Arturo Nathan, "O mar de gelo", também chamado "O exilado"

Como diz Morris: "Trieste, nos anos 30, enquanto se preparava a catástrofe, desempenhou um papel de honra, ajudando os judeus da Europa Central a fugir ao seu destino. Havia cerca de 5000 judeus na altura, e Trieste era chamada porta de Sião.(op.cit. pág.111)

Por ali passou Albert Einstein, entre muitos fugitivos. No entanto, até 1938, os triestinos sentiam-se relativamente seguros. Antes de 1939, alguns (como por exemplo Giorgio Voghera) decidem fugir para Palestina então sob o Mandato Britânico onde existiam já várias colónias de judeus, mas não era muito frequente. Giorgio Voghera (1908-1999) vive em  Jaffa - disso tudo fala 'Carcere à Giaffa') e só regressa em1948.

Estavam, apenas, "relativamente seguros"...
"Em 1943, escreve Morris, foram apanhados pela História. Os nazis apoderaram-se de Trieste. Algumas centenas de judeus conseguiram fugir para a Suíça ou mesmo para Itália. Alguns, poucos, esconderam-se na cidade até ao fim da guerra. Cerca de 700 triestinos judeus, porém, foram condenados à morte ou à deportação." (op.cit. pg 112)

Em San Saba, na chamada Risiera San Saba (2)- edifício onde se guardava o arroz e se pelavam os bagos- é criada logo nesse ano uma caserna da polícia que, depressa, se vai transformar no único campo de extermínio de Itália. 
Risiera San Saba, hoje Museu

"Porque -continua Jan Morris -os alemães declararam Trieste como parte integrante do Reich." 
Com as leis do IIIº Reich, em vigor.
Trieste é uma cidade ainda hoje ligada à Literatura. Andei a passear por ali, frequentei os cafés "literários", pensando em Italo Svevo e em James Joyce -que lá viveu tantos anos -e que foi professor de Inglês de Svevo. 
James Joyce, escultura em terracota
James Joyce
James Joyce e Il Ponte Rosso

Recordei a figura de Giorgio Voghera -pessoa simples, encantadora que conhecemos, há muitos anos, no Caffè Stella Polare. 
Caffè Stella Polare

Lembrar o que escreveu, dos "anos de Trieste" ou os livros "Nostra Signora Morte" e "Anos da Psicanálise" em que faz reviver a Trieste dos psicanalistas, alunos de Freud,como Edward Weiss que vai tratar o pintor Arturo Nathan cuja pintura (próxima dos "metafísicos") pus acima e que sofria de neurastenia. 
o Caffè Tommaseo

E outros, anteriores, que li, ainda em Itália, dois escritores que foram amigos da juventude e que, por isso talvez, e pelo entusiasmo e amor à sua cidade, aproximo sempre: Scipio Slataper escritor e poeta que morreu tão jovem, na I Guerra, em 1915, e o amigo Carlo Stuparich que morre como ele, na Guerra, nos Montes Cengio, um ano mais tarde - e o irmão deste, Giani Stuparich. 
Scipio Slataper (1888-1915)
Monte Cengio

Carlo escreveu apenas “Cose ed ombre di uno". Slataper escreve "Il mio Carso" sobre as gentes e as montanhas do Carso (publicado em 1912, com 26 anos).
Carlo  Stuparich (1894-1916)

Carlo  Stuparich com a mãe
Giani Stuparich (1891-1961) com Umberto Saba

Caffè San Marco, café-livraria 

Outro que lembro é Umberto Saba (1883-1957) poeta triestino de origem judaica também de que li muitas coisas. Impressionou-me acima de tudo a sua simplicidade. Mas quem disse que a simplicidade é simples? Parece evidente, mas não é: uma poesia essencial, das coisas e sentimentos comuns da vida, pode ser muito difícil. 

Faço minhas as palavras de alguém que muito o ama: 
"Foi-me difídil entrar na obra de Saba cuja aparente simplicidades -rigorosamente trabalhada- enraíza no puro clássico. Considerava mestres Dante e Petrarca. Cheguei a seguir uma antologia escolar da sua poesia, anotada, do ensino secundário, para o entender. E, pouco a pouco, consegui. Saba é um poeta visceralmente independente e cioso da sua visão da vida." (4)
Saba, traduzido em japonês

Deambulando, procurando vestígios -ou sombras- a saber que andaram por aqueles cafés, viveram os duros invernos com a bora e a chuva gélida. Mas agora o tempo está ameno e as águas azuis da baía reflectem todas as luzes em redor.


E volto ao "gueto": na Via del Monte - ao lado da Colina de San Giustolá estão as casas altas, típicas dos "guetos", algumas já restauradas, outras ainda entaipadas. 
Uma ou outra loja de modas, um bar muito singelo mas agradável, um clube e uma sala de ginástica. Para baixo é a Via degli artisti, para cima, sobe-se pela rua del Monte

Num pequeno hotel de duas estrelas, colados ao vidro de entrada, vêem-se caracteres de uma língua desconhecida. Enquanto espreito, aparecem uns jovens estrangeiros que entram desenvoltos. Um voltou a sair e, vendo-nos ali parados, pergunta se não queremos entrar. É curto o diálogo, em italiano:
- Podem entrar... E sorria. 
Do hotel veio um senhor de certa idade vestido de escuro que me pareceu um religioso. Cumprimentou-nos e explicou:

- Em baixo, está escrito em pashtun(3). Por cima, está em árabe. É um centro de acolhimento.
- Sim, somos refugiados. Eu sou paquistanês.
E o rapaz voltou a sorrir-nos. Havia bicicletas estacionadas ao lado do hotel. Pegou numa.
O que dizer? Achei que devia dizer alguma coisa, porque os vi limpos, arranjados, com uns cadernos na mão. E saiu-me um:
- Que belo trabalho!
O senhor de idade agradeceu.
Mas era tão pouco o que lhe dizia - para falar da verdadeira compaixão, da generosidade, da ajuda aparentemente desinteressada, que via nele.
Sei que há outros centros, sei que há coisas que funcionam mal, disseram-me depois, centros que não cumprem.
Sei que muita gente não quer “aceitar” a ideia dos “profughi” em Itália como por cá como pelo resto da Europa. Mas o que fazer então?
 A mim agradou-me o sorriso daqueles refugiados.


(1) Jan Morris, "Trieste o del nessun luogo", Il Saggiatore, 2014 (The meaning of nowhere", 2001)
(2) La Risiera di San Saba - hoje recuperado- é o monumento histórico, o Museu Cívico da cidade.
(3) Pashtun é uma língua do grupo etnolinguístico que se fala numa parte do Paquistão e do Afganistão.
(4) Manuel Poppe e Umberto Saba
http://sobreorisco.blogspot.pt/2011/04/o-universo-singular-de-saba.html

4 comentários:

  1. Muito, muito interessante!
    Adorei aquele café com a livraria.

    Um beijinho :)

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  2. ~~~
    ~ Beijinho grato pela excelente e deliciosa partilha.~
    ~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~

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  3. Mais um texto de utilidade pública

    Sempre grato
    Bj

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  4. Um óptimo texto, em plena forma intelectual como sempre!

    ...Mi siento,
    con i panni e con l´anima di allora,
    in una luce di folgore.....
    ( Ceneri, de Umberto Saba)

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