O
dia 27 de Janeiro é considerado, mundialmente, o Dia do Holocausto, da Shoah, porque foi nesse dia que, ao ser libertado
o campo de Auschwitz, em 1945, pelo
Exército Vermelho, se descobriu o horror da vontade organizada da exterminação
dos judeus.
Talvez
pensem: “Falar dos judeus outra vez?
Nunca mais se calam com os judeus?” E eu digo: falar dos judeus é para
sempre, porque neles, seres humanos, foi gravado, na carne, a ferro e a fogo, o ódio de outro ser humano - apenas por ser judeu.
A decisão de exterminação, pela Alemanha nazi, de pessoas iguais às outras, que se tinham identificado com um país, na sua cultura, na
língua, nos costumes e
que, de um dia para o outro, ficam sem identidade, sem país, sem língua e são hostilizados, excluídos da sociedade, lançados em campos de extermínio e
mortos.
Alguns sobreviveram porém. E falaram. E contaram. E parece incomodar
muita gente, ao ponto de terem “negado” a sua existência.
Lembro
Aharon Appelfeld que tanto testemunhou da passagem pelos campos. Pensei nele porque no jornal La Stampa apareceu uma entrevista, feita por Francesca Paci (1).
E como a vida é sempre mais rica do que julgamos e cheia de acasos -ou
necessidades?- faço aqui uma breve pausa.
Descobri que a entrevistadora de Appelfeld é afinal a pessoa que escreve o
Posfácio do livro de que aqui falei há dias, "In fuga", de Anne Michaels (Fugitive Pieces): Francesca
Romana Paci, italiana licenciada em Literatura Inglesa, escreve duas ou três páginas muito inteligentes e de grande sensibilidade que ajudam a ‘abrir’ um livro nem sempre fácil.
Recorda nele os “portadores
de pedras” (um dos capítulos do livro tem esse nome), os que trazem a lembrança. Talvez pessoas como
Appelfeld, Amos Oz, Voghera ou Singer – e tantos outros!- sejam os portadores de Anne Michaels.
Porque todos nós somos ‘portadores de pedras’ de um passado, de uma
memória. Temos diante de nós “um reino do tamanho do globo terrestre e
extenso quanto a vida” e, nele, as pedras que encontramos ao longo da passagem
da vida e de que fazemos a nossa 'cosmologia' própria.
Escreve Francesca Paci: “Existe o sentido de recomeçar e a eternamente
possível ‘segunda história’, de que fala Anne Michaels: ‘há sempre um segundo
momento’. O presente é sempre uma segunda história em relação ao passado e à
tradição. A história de cada um de nós é a segunda história do “ser humano que é
sempre um acontecimento novo”, como dizia
Athos Roussos."
O eterno voltar atrás e ser novo sempre. Mas cada um tem dentro de si “a responsabilidade moral, sempre reafirmada,
e quase imperativa” de levar as suas “pedras” para recordar os que ficaram
para trás.
“Só morrem os que
verdadeiramente esquecemos”, diz o povo. Nem todos têm o peso do ‘holocausto’
de Oz ou Appelfeld, a recordar, mas a cada um cabe esse bocadinho de memória “para não esquecer as vidas perdidas ou irrealizadas”
e dar-lhes uma segunda história.
Voltemos a Aharon Appelfeld, “um dos maiores escritores do
nosso tempo”, segundo The Guardian, escritor israelita que viveu na pele o Holocausto.
o Sydney Taylor Book Award, de literatura infantil 2016
Aharon Appelfeld era um rapazinho de 9 anos que viu a mãe ser violada e assassinada
pelos soldados nazis. Tinha-se escondido e fugiu. E foi apanhado. Presos em momentos diferentes, esteve com o
pai no mesmo campo de trabalho. E evadiu-se.
Perderam-se um do outro, para só se reencontrarem em Israel, em 1960. Appelfeld era já adulto quando viu o nome do pai numa lista de judeus recém-chegados e puderam ver-se depois de tantos anos.
Perderam-se um do outro, para só se reencontrarem em Israel, em 1960. Appelfeld era já adulto quando viu o nome do pai numa lista de judeus recém-chegados e puderam ver-se depois de tantos anos.
Depois de inúmeras peripécias, dignas de um
romance de aventuras e de horror, encontrou-se num campo de prisioneiros, no
sul da Itália. Dali, seguiu com tantos outros judeus para Israel.
Que não era a sua terra, ele judeu romeno, de língua e cultura alemãs, que se sentia alemão.
Como tantos outros judeus que se sentiam 'assimilados' às pessoas e aos países onde viviam. Muitos desses judeus assassinados consideravam-se sem religião, e alguns até tinham sido baptizados e julgavam que eram cristãos.
Que não era a sua terra, ele judeu romeno, de língua e cultura alemãs, que se sentia alemão.
Como tantos outros judeus que se sentiam 'assimilados' às pessoas e aos países onde viviam. Muitos desses judeus assassinados consideravam-se sem religião, e alguns até tinham sido baptizados e julgavam que eram cristãos.
kibbutz, em1938
Nova terra -onde não conhecia a língua, nem os costumes. Onde teve de se
adaptar às gentes, à vida e ao clima. Ao trabalho do campo, da construção
civil, num kibbutz. E adaptou-se e encontrou a sua terra. Vive há muitos anos nos arredores de Jerusalém, em Mevasseret Zion.
Reuven Rubin, Jerusalém
caffetaria "Tmol Shilshom"
Tive a enorme sorte de o ter conhecido! Homem extraordinário, de cultura e de
simplicidade, de sensibilidade dolorosa e de abertura ao outro. Nunca esqueci o olhar suave e azul, sem espanto, aberto. Encontrámo-lo na caffetaria "Tmol Shilshom" cujo nome é uma homenagem ao livro de S.Y. Agnon, "Only Yesterday (Tmol ve Shilshom, tradução: Ontem e anteontem).
Com grande sentido da realidade, Appelfeld pensa que “o anti-semitismo continua a existir
e hoje está condensado no ódio a Israel”.
“Hoje
sabe-se que os judeus não foram mortos como carneirinhos mansos, houve
resistência nos campos. Uma resistência em cada momento. Nos ‘ghettos’, cada
gesto à procura de comida. De ter de proteger e nutrir os filhos, dar-lhes um
bocadinho de pão ou um tomate, amparar os que não tinham ninguém, era já um
gesto de resistência. Sobreviver é resistir. Não precisam de ter armas, são os
gestos do dia a dia.
‘ghetto' de Lvov, 1942
É a lição do ‘ghetto’, do ‘lager’, da floresta. Nos meus
livros, os protagonistas além de se baterem resistem também recuperando a
cultura para lá da barbárie que viviam, lêem Tolstoi, os clássicos russos, a
literatura hebraica, Martin Buber, confiam nos livros para reencontrar a vida normal
fora da lotaria da morte.”
Appelfeld
considera que o seu testemunho de "portador de pedras" – o trabalho de memória- talvez impeça o esquecimento de uma
tragédia sem nome. O testemunho é essencial: para recordar sempre.
“Os resistentes de que falo no meu livro são
homens, mulheres, crianças e velhos, uma família ligada entre si sem serem
laços de sangue mas por solidariedade, e que se ajuda mutuamente. Todos têm a
sua história.”
Inquisição, Pedro Berruguete, 1475
E
a ‘história comum’ são os livros que leram, e que lêem, é a língua que falam, é
a perseguição comum que sofrem. E sofreram: da Inquisição, aos 'pogroms'.
“A história são os livros que
lêem. (…) Têm de partir do zero, da linguagem para sobreviver e reencontram a
identidade hebraica. Os judeus estavam integrados na cultura alemã, a minha
cidade natal, Czernowitz, tinha uma importante universidade e produzia
filosofia, música e literatura. Depois, de repente, aquela cultura que era
minha tirou a máscara e revelou-se a barbárie.”
Refere-se
à personagem do último livro (“Les partisans”),Kamil: “O grupo de que falo é composto de intelectuais que eram assimilados à cultura
nativa. Pensavam que eram europeus e foram mortos. Com a normalidade que tinham, perderam
as suas origens, a literatura e a música alemã, a cultura que achavam que era a
melhor do mundo. Não foram apenas apanhados de surpresa: foi um choque! A
identidade hebraica é o que lhes resta quando não existe mais nada. E fica-nos
para sempre com muitos problemas, inclusive psicológicos, porque, à força de
ouvirmos dizer que a tua identidade está errada acabamos por acreditar nisso, e
é um processo de auto-ódio.”
A identidade é a última trincheira. Sofrem duplamente porque a capacidade de auto-crítica, de auto-ironia dos judeus foi sempre enorme.
A identidade é a última trincheira. Sofrem duplamente porque a capacidade de auto-crítica, de auto-ironia dos judeus foi sempre enorme.
“Os judeus são, por natureza, hiper-críticos mas
o que podia ser uma força, na Europa, foi a nossa fraqueza. O Talmud e outros textos
do judaísmo são livros críticos porque procuram a verdade - e produzem livres-pensadores,
alérgicos ao dogmatismo. Israel é fruto dessa experiência. É certo que entre os
políticos existem dogmáticos, mas a sociedade é composta de livres-pensadores,
todos se exprimem como querem, até de modo vulgar. Daí que há laicos que são
super-tradicionalistas e religiosos caracterizados por grande abertura mental.”
Livres
pensadores, complexos, paradoxais? Livres sobretudo, tudo é discutível, tudo se pode pôr em questão, nunca dogmáticos.
Quantas vezes ouvia dizer em Telavive: “quando dois judeus discutem, há sempre três
opiniões pelo menos.”
Telavive, Café Segafredo (MJF)
Appelfeld não
ignora que há cada vez mais judeus a fugirem da Europa. Resta-lhes o quê?
Israel...
“Onde estão hoje, na Europa? O
anti-semitismo é anacrónico, odeia-se algo que já não existe. Existe, claro, mas
depressa os judeus vão desaparecer da Europa. Hoje o anti-semitismo chama-se
“política israelita” e tem um objectivo diferente do anterior, do
anti-semitismo clássico. Quando vês que Israel tem todos os países contra, bem,
então percebes que é o anti-semitismo moderno.”
O
que ficará dessa memória quando morrer o último sobrevivente?, pergunta-lhe a
jornalista Francesca Paci (1).
“A memória é forte. Recebo muitas cartas de pessoas a quem os pais não contaram nada do Holocausto. Dizem que encontram, nos meus livros, uns novos pais. É comovente. É como se os livros tivessem um papel agora eterno. Não sei o que acontecerá no futuro, nem quero pensar nisso. Faço o que posso para contar a história do povo hebraico na sua complexidade e fá-lo-ei até ao último momento, é uma história universal.”
“A memória é forte. Recebo muitas cartas de pessoas a quem os pais não contaram nada do Holocausto. Dizem que encontram, nos meus livros, uns novos pais. É comovente. É como se os livros tivessem um papel agora eterno. Não sei o que acontecerá no futuro, nem quero pensar nisso. Faço o que posso para contar a história do povo hebraico na sua complexidade e fá-lo-ei até ao último momento, é uma história universal.”
Telavive, praia na 'Promenade' (MJF)
Infelizmente, a lição que se tira do Holocausto é triste. “Aprendemos
a não nos fiar em ninguém. Nem nos exércitos, nem nas ideologias. O problema da
minha geração é ter deixado de usar a expressão ‘tenho a certeza’. Não temos a
certeza de nada. Aprendemos a desconfiar.”
Qual o futuro de Israel? Guerra ou paz?
“Todos os pensadores abertos e liberais são pela paz. Eu queria fazer a paz com a nossa região. Mas o mundo árabe e muçulmano está atravessando um terrível processo de guerra intestina, matam-se entre eles, árabes contra árabes. Israel vive uma situação menos crítica. Há terrorismo mas não há guerra como na Síria, Sudão, Yemen. E, se quisermos falar de paz com os palestinos, então abandonemos os ‘summit-farsa’ como em Paris – com os países árabes apenas, que - em vez de falarem dos seus problemas- falam dos palestinos e dos israelitas, ausentes, ali.”
“Todos os pensadores abertos e liberais são pela paz. Eu queria fazer a paz com a nossa região. Mas o mundo árabe e muçulmano está atravessando um terrível processo de guerra intestina, matam-se entre eles, árabes contra árabes. Israel vive uma situação menos crítica. Há terrorismo mas não há guerra como na Síria, Sudão, Yemen. E, se quisermos falar de paz com os palestinos, então abandonemos os ‘summit-farsa’ como em Paris – com os países árabes apenas, que - em vez de falarem dos seus problemas- falam dos palestinos e dos israelitas, ausentes, ali.”
Oslo
acabou com Shimon Peres?, última pergunta.
“É assim hoje, mas tudo pode mudar num momento. Bastariam que os ‘líders’ dos dois povos se sentassem prontos a fazer compromissos verdadeiros e que os seguissem. Peres era um grande. Devemos continuar a procurar o diálogo.”
“É assim hoje, mas tudo pode mudar num momento. Bastariam que os ‘líders’ dos dois povos se sentassem prontos a fazer compromissos verdadeiros e que os seguissem. Peres era um grande. Devemos continuar a procurar o diálogo.”
A verdade é que Appelfeld
escreve para recordar a ‘shoah’ mas igualmente a humanidade que lhe sobreviveu
e que avança alternando entre a recusa e a 'homenagem' ao passado.
E Francesca Paci termina:
"Appelfeld diz-nos pelo telefone de Jerusalém onde escreveu todos os seus romances: 'O futuro é um enigma, a minha memória declina-se no presente'. O seu último livro, 'Il partigiano Edmond', que sai em Itália, é um livro intenso, épico, que conta a resistência hebraica pedindo ao leitor que se identifique porque, 'mutatis mutandis', somos todos anti-heróis até ao momento da prova da História."
"Appelfeld diz-nos pelo telefone de Jerusalém onde escreveu todos os seus romances: 'O futuro é um enigma, a minha memória declina-se no presente'. O seu último livro, 'Il partigiano Edmond', que sai em Itália, é um livro intenso, épico, que conta a resistência hebraica pedindo ao leitor que se identifique porque, 'mutatis mutandis', somos todos anti-heróis até ao momento da prova da História."
(1) Il partigiano Edmond", editora 'Guanda', o livro de Appelfeld, fala dos últimos meses da
Segunda Guerra Mundial, quando um grupo de resistentes judeus, escondidos numa floresta
da Ucrânia, resistem ao exército alemão que os persegue. Chefiados por Kamil, homens mulheres e crianças organizam-se para lutar contra o
frio, a fome e, sobreviver. Resistiam de vários modos -fazendo igualmente descarrilar comboios e
salvando os judeus que andavam perdidos ou escondidos.