sábado, 21 de janeiro de 2017

O MEDO E A INDIFERENÇA


René Magritte, O Anjo migrante

                  esculturas submersas, de Jason Caires Taylor (*)

Mal entrou o ano 2017, mas já lhe sinto um ar morno e sem energia. Tudo parece amolecido, sem reacção, aceitando-se isto ou aquilo, a dizer-se: ‘vamos ver’ ou ‘é cedo ainda' - a propósito de tudo e de nada.
Talvez seja o resultado da “quebra” e do cansaço ou da desilusão que deixam as festas da passagem de ano e do Natal, agarrados aos pequenos e medíocres bons sentimentos, e fracos protestos, acompanhados pela última fatia de bolo-rei.
No entanto, há muita coisa mal e não vamos ver nada, nem é cedo de mais. Há gestos a fazer, coisas a dizer. Cada um de nós saberá os quais porque é – e só - na nossa esfera pessoal que poderemos realizar, pela palavra, pelo choque emocional, pelo suspiro arrancado cá do fundo, ou a vontade de dar um murro na mesa ao ouvir o que se ouve. Porque já se ouve muito disparate. E vê-se muita desgraça.

Gente que morre de frio pelas estradas da Europa ou, nas ruas, mulheres que morrem às mãos dos maridos e companheiros de vida.

Crianças batidas, crianças geladas pelas estradas da Europa. Soterrados na neve, sob abalos sísmicos: Lembro os mortos em Itália, a última tragédia do tremor de terra seguido de uma avalanche, há 3 dias, sofrimento e dor.
A nossa vulnerabilidade é igual. A visibilidade é que, por vezes, é diferente.
Culpas lançadas, injustamente, aos migrantes e estrangeiros, bodes-expiatórios dos descontentamentos e dos medos. Gente que morre de frio nas ruas das capitais europeias, dentro de caixotes ou abrigos de fortuna.
E recordo as sábias palavras de Zigmunt Bauman (**), filósofo e humanista, judeu polaco, que viveu e ensinou no Reino Unido, na Universidade de Leeds - onde morreu no dia 9 de Janeiro:
É infame a afirmação que todos os terroristas são migrantes. É falso: quase todos os terroristas são, de facto, indígenas do país que atacam! Os conspiradores e 'comanditários', os assassinos, vivem bem longe, em países estrangeiros e manobram os cordelinhos à distância, fora dos perigos, aproveitando-se, sim, dos mais desgraçados, dos discriminados pela sorte, dos humilhados e vingativos que crescem no meio de nós sem um futuro.” 
São, por vezes, apenas lugares comuns repetidos e inúteis porque tantas vezes ditos sem servirem para nada. Mas há gestos que contam e que elevam a humanidade! 
Como há dias, nas ruas de Turim, quando jovens e menos jovens distribuíram edredons que um armazém oferecera. E trouxeram chá quente e café, em ‘termos’, e bolos e uma palavra amiga. Outros, também, uma camisola de lã, um cachecol: muitos ainda se lembram disso, até de tricotar cachecóis e meias quentes. Ou servem sopa quente, aqui ou ali, e descobrem abrigos em vãos de escadas para os que não têm casa. 
Há quem saia de casa para ir tratar dos outros. Não basta, claro! Mas faz bem à alma humana fragilizada por tanta tragédia! 
Como diz o Papa: "é preciso sair à rua e tocar nos que sofrem. Ouvir, estar próximo. Sem pensar em beneficência. É muito mais." Apenas, no concreto, estar próximo do outro, do que sofre.
Parece ridículo perante a imensidade dos dramas? Parece. Mas conta para os que os recebem.
Pelo contrário, tantos recusam à partida os migrantes que chegam. Por medo. Do medo, disse também Bauman que “é o mais sinistro dos demónios aninhados nas cidades abertas em que vivemos.” (8 Março 2016). 
Abertas, até quando?
E lembro uma cena que vi na televisão dum país que não vale a pena identificar: uma camioneta cheia de mulheres africanas são conduzidas algures a uma aldeia da Europa, a um centro de acolhimento. Doze mulheres indefesas, algumas ainda crianças, cansadas, uma delas grávida.
Empurrados, porém, pelo medo que lhes impingem os partidos xenófobos, veio o ‘povo’ para a rua construir barricadas contra as ‘estrangeiras’ não ficarem na terra, pobre terra de pescadores, sem peixe nem trabalho. E, medrosos e ignorantes, gritavam slogans de protestos acusando-as de virem roubar e de trazerem o terrorismo.
Ninguém lhes explicara que eram inofensivas? Ou, vivendo mal e com tanto desemprego, as consideravam concorrentes? A verdade é que, nesse país, há uma soma atribuída à estadia de cada migrante. Portanto, ali ninguém perdia nada, elas não eram concorrentes em nada. Mas a ignorância é má conselheira.
Na madrugada gelada, foram afastadas para outra terrinha. Ali, talvez chocados pelas imagens que a televisão transmitira, um grupo decidira-se a acolhê-las. E decidira defender aquelas pobres mulheres.

Li há dias que mais um barco se afundou ao largo das costas europeias. Sobreviventes: doze pessoas.
Até quando morrerão inocentes à procura do Eldorado da Europa…que não existe? Até quando serão explorados, assassinados por culpa dos que destruíram o seu habitat, a sua vida, a sua paz? E cito de novo o Papa Francisco: "Que o Mediterrâneo se tenha tornado num grande cemitério deve fazer-nos pensar!" (1)
A este propósito lembro a afirmação de Fabrice Olivier Dubosc, psicólogo, no livro "Approdi e naufragi": 

“Creio que a consciência contemporânea deva confrontar-se com a necessidade de reconhecer quais sejam os mortos significativos que precisam que falemos deles. Talvez porque sejam aqueles que foram excluídos da história de todos os modos, que foram excluídos por causa da  escravidão e da colonização, assim como a multidão dos mortos, prematuramente, em guerras inúteis, unidos com todos os que, privados de sepultura, jazem incorporados, misturados nos alicerces da modernidade."
O livro de Dubosc vai ser apresentado em Bergamo amanhã. Demasiado longe, para nós.



 Zigmunt Bauman (1925-2017)

Só mais uma palavra de Zigmunt Bauman. Quando lhe perguntaram se estava preocupado com esta migração na Europa, respondeu: 
A minha única preocupação é que a Europa possa abandonar os seus valores e se possa dobrar aos códigos de comportamento dos terroristas. Seria o suicídio da moralidade e da beleza – do local onde nasceu a ideia de liberdade, igualdade e fraternidade.
migrantes portugueses, num 'bidonville' de França

Sem esquecer nunca que somos todos iguais: pertencentes à mesma raça: a humana! E que todos fomos um dia -ou poderemos ser ainda- migrantes!
(1) Papa Francisco, entrevista a El País, de Antonio  Caño, online, hoje, 22 de Janeiro.

(*) Jason Caires Taylor nasceu a 12 de Agosto de 1974 em Dover, no Kent. É um escultor britânico e o criador de primeiro Parque de Esculturas Submersas. O Museu Submerso, no mar das Caraíbas, granada.
Escultor, conservador marinho, fotógrafo submarino e instrutor de mergulho, estudou em Kent e, depois, no Camberwell College of Arts de Londres.

(**) https://032c.com/2016/zygmunt-bauman-love-fear-and-the-network/A

(***) http://www.quilibri.eu/presentazione-di-approdi-e-naufragi-resistenza-culturale-e-lavoro-del-tutto-di-fabrice-olivier-dubosc-2016morettivitali/

1 comentário:

  1. Maria João,
    Li com arrepio a sua postagem pertinente nas palavras e tocante quanto às imagens escolhidas.
    Esperemos que a Europa não esqueça os seus valores.
    Obrigada.
    Beijinhos.

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