segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Trieste: do Canal Grande à Via Cavana...

Trieste é um estado de espírito?, interrogo-me. 
Carlo Sbizà, triestino, A desenhadora
Não sei mas é decerto um local que nos transforma, que nos acalma, que nos dá vontade de procurar coisas novas. 
Ou tudo isso não passa da minha vontade de pensar que é assim? Pouco importa, a verdade é que me sinto sempre bem em Trieste. Durante dias e dias, abri os olhos e guardei dentro o que vi. E o que ouvi. 
As meninas que vêm de outros países e servem nos cafés e têm os mesmos sonhos que as outras de Portugal ou da Itália. A esperança de de terem trabalho ou de poderem continuar os estudos. Um dia, talvez, quem sabe? Como as jovens licenciadas que aparecem em Outubro, a festejar, coroadas de louros?
Vi a esperança, vi o entusiasmo, o desejo de outras coisas, e vi a aceitação cinzenta dos que não esperam coisa nenhuma.

Trieste será um estado de espírito? 
a Via Cavanella, à noite
Da Cidade Velha e da Porta Cavana ao Borgo teresiano, do Golfo  ao monte San Giusto estendem-se espaços diferentes, como se de várias cidades se tratasse.
passeio na Via Cavana

A Cidade Velha é o centro habitado, mais antigo de Trieste - composta por três bairros: Cavana, San Giusto e o antigo ghetto judaico, mais o Borgo teresiano e a Barriera Nova compõem a chamada IV Circunscrição
San Giusto (foto da net)

Esta parte, em relação à Catedral de San Giusto, no alto da colina, onde está também a muralha do Castelo Medieval, tem um desnível de cerca de 60 metros. Depois, desce, plana, até ao Mar Adriático.  
o Castelo medieval  (foto da net)

A zona do Canal Grande foi um pântano - secado e tratado no tempo da Imperatriz Maria Teresa de Áustria: daí o nome de Borgo teresiano
Assim se construiu a nova Trieste, junto ao rio, para aproveitar o caminho fluvial para o porto de mar.

Passeando pelas margens do Canal, perto do Ponte Rosso, vêem-se barcos ancorados, lançando a sua sombra nas águas escuras. Os prédios reflectem-se no espelho que as águas formam, ao acender das primeiras luzes.
O céu tem um azul muito forte e, ao cair do dia, ganha tons diversos que vão do rosa ao roxo.
A essa hora, as luzes amarelas dos candeeiros fazem dourar as paredes das casas e a água enche-se de parafusos de ouro, com o tremular da pequena ondulação.  
É uma zona cheia de vida, esta, que fica perto da Marginal, com muitos cafés e restaurantes de peixe e de vários tipos de ‘pasta alla marinaia’. 

As cidades descobrem-se devagar. Descobri um bairro novo, o ‘borgo’ de Via Cavana. Tão perto da rua onde vivemos e afinal tão difícil de encontrar. 
O mal das viagens - ou dos viajantes?- é o espírito do hábito: o escolher um Café apenas, repetir um passeio sempre igual, ir a um bairro, ou a uma praça. 
Ora, nada é igual e que bom é partir uma manhã sem destino, à aventura, virando exactamente para o lado contrário da rua! Um dia resolvi virar à esquerda, na rua do hotel, na via Armando Diaz, e segui em frente até à praça Revoltella, onde já conhecia o Museu - que visitáramos dias antes.
o céu via Armando Diaz
Em vez de voltar para trás, pela mesma rua e ir direita à maravilhosa Piazza dell’Unità, como era costume, virei noutra rua quase paralela à Via Diaz.
Um jardim e uma igreja novos, um caminho que subia sem saber até onde, nova perspectiva, e descobri a Via Cavana, um lugar de paz, normal, sem agitação!

Gente que trabalha e vive ali, um jardim, o Jardim Attilio Hordis, com o parque infantil, sombreado por árvores enormes, onde os meninos jogam e se empurram e falam de aventuras imaginárias. 
A casca da árvore tem tons de cobre e, para as crianças, transforma-se num perigo novo: “É uma serpente, não vês?” –diz  o menino loiro, de camisola vermelha, ao amigo que traz um barrete de lã roxa. E, com o bocadinho de casca, simula o ondear da serpente. O outro encolhe-se e sorri. Sabe que é apenas a casca da árvore. Mas gostou do desafio. Dá-lhe um empurrão e dali saltam para outra brincadeira: entretêm-se no 'escorrega'  um instante. 

Grupos que se fazem e desfazem. “Querem ir ver o que está ali?” e todo o grupo dá a volta ao jardim atrás da menina com tranças que parece ser a chefe. No regresso, diz o menino do barrete azul : “agora sou eu que mando. Vamos apanhar pedrinhas!”
Os rostos vermelhos, a alegria, dos meninos e meninas. Espaços e liberdade, árvores, bancos, canteiros de flores. Olhos tapados, lá está uma menina de casaco de lã,  a contar “um, dois, três…já estão escondidos? Quatro, cinco… Aí vou eu!”

Procuras, gritos, espantos fingidos, fugas, os blusões de várias cores, os barretes de lã, rosa, azuis, vermelhos ou amarelos correm entre os bancos do jardim, escondem-se detrás dos arbustos.
Eu, sentada num banco, com o meu novo casaco de penas, com o nariz gelado, rio-me.
Era voltar aos meus tempos de correrias, ao “apanha”, aos “cinco cantinhos”, ou a jogar às pedrinhas? Há quanto tempo não pensava nisso! E gostava tanto de jogar!
Desço devagar a rua Cavana que foi centro da cidade no passado, hoje espaço de peões, entre a Piazza dell’ Unità e San Giusto lá no alto. 
Piazza dell’ Unità e "As costureirinhas"

O Borgo Cavana foi reconstruído e os poucos velhos edifícios originais foram restaurados, tentando recriar o ambiente de 1900. 
Piero Marussig, Senhoras no Café

Muito amado por James Joyce este bairro, com lojas que vendem de tudo. O que vejo enche-me a alma! Livrarias que não conhecia, outros cafés, verduras frescas à porta, um talho onde já está a comida meia preparada e com bom aspecto.

(Da Via Cavana contava Svevo: “Ao chegar à Via Cavana, tive de abrandar devido à multidão que enchia a estreita rua." in 'Consciência de Zeno', 1923). Italo Svevo que tem uma estátua, mesmo ali, no jardim Hordis.

E nos cafés que maravilha o cheiro a bolos! Descubro uma pastelaria onde fui beber o café mais saboroso da viagem! Talvez fosse o frio da manhã, talvez a novidade do sítio e o conforto do calor lá dentro. E o ambiente tão rico do perfume dos bolos. 
Un croissant”, ia dizer, mas disse “un cornetto”, porque em Roma pedia “un espresso e un cornetto, per cortesia!” Mas lembrei-me que o ‘croissant’ no Norte se chamava “brioche”. Corrigi: “una brioche”. A menina detrás do balcão lançou-me um olhar divertido. “È uguale, si può dire pure un cornetto…”

Senti-me bem quando saí. Era bom o cornetto, o meu preferido -com “la bomba”, que é a nossa “bola de Berlim”- dos bolos, em Itália. Em Trieste habituara-me, é verdade, a comer o strudel, bem quentinho, com a sua massa crocante e o recheio de maçãs com canela e sultanine, que vem do Império Austro-húngaro, que comi nas pastelarias vienenses.  E que se comia em Israel, trazido pelos judeus askenazis.

E continuei à descoberta. Tanta gente agradável. Um cão, outro cão: os cães são amados por aqui e até podem entrar nos cafés –e sabem comportar-se. Não me admirei nada, o meu Zac passeava-se por todos os cafés de Telavive.
um cão que me lembrou o meu Zac
Vou andando e olhando as montras. Roupas variadas, cores e tecidos um pouco ao gosto veneziano, veludos, tons rosa suaves, ou verdes vivos, ou carmesim…
Descubro o “Caffè Chocolat”! Chocolates vindos de todo o mundo enchem as paredes e as prateleiras, em caixas e lotes variados. Quem quiser, também pode tomar café. Tomo mais um café, não resisti ao perfume. 
Ao meu lado, uma senhora de cachecol encarnado pede um chocolate quente. A jovem, bem vestida e bem pintada que a atende vira-se e vai buscar uma enorme panela cheia de chocolate – que vai mexendo sempre com uma caço, como se fosse uma sopa consistente. E enche com ele uma chaveninha pequenina de chocolate escaldante.
Olho, espantada, porque nunca vi servir um chocolate em chávena tão pequenina. Pensei que seria a quantidade exacta de chocolate a beber: aquece, não enjoa, nem enche…
E penso nas diferenças e nas riquezas das terras. O mundo é um lugar cheio de gentes e a vida é uma longa viagem. E isso entusiasma-me! É uma estrada que se desenrola. Quanto mais rica for a estrada, mais rica será a vida.

E, sentindo-me meio ingénua, meio teimosa, quis acreditar que sim, que a vida possa ser um lugar de gentes diversas, de culturas longínquas tantas vezes e que seja possível viverem juntas as gentes de todas as partes do mundo.

Trieste será um estado de espírito?
Brincarão alguma vez juntos os meninos de todas as terras, como os vi brincar ali no jardim? Verão as mesmas coisas belas um dia?
Vittorio Bolaffio, triestino, pormenor

Cantarão ou tocarão piano, e dançarão juntas, as meninas por esse mundo fora?

E perco-me numa certa nostalgia, fico triste. Lembrei Leonard Cohen e as suas “canções de estrada”. 
Percursos, estradas, terras, vidas… a mesma estrada? Será possível um dia?

3 comentários:

  1. Vivi a nossa viagem. Uma das nossas viagens que andaram pela Europa, pelo Médio Oriente, por África, pela Rússia. Revivi Trieste: daqui a uns meses, no Outono, lá voltaremos! Itália... é o nosso mundo, talvez... porque todos os lugares que visitámos eonde vivemos juntos foram sempre "o nosso mundo"...

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  2. Um encanto esta leitura!
    Era bom que o mundo fosse um lugar de paz. Eu já não acredito que alguma vez o seja. Os homens repetem ciclicamente os mesmos erros. A humanidade tem tanto de bom, como de mau.

    Pode ser que um dia se descubra uma vacina contra a maldade!

    Um beijinho:)

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  3. Este é o teu Trieste de que mais gosto,visto e sentido de dentro do teu casaquinho de plumas, "virando exactamente para o lado contrário da rua"...

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