o túmulo de Rafael Sanzio, no Panthéon (MJF)
“Mon
père disait” era uma nostálgica canção de Jacques Brel mas a verdade é que o
meu pai “dizia” também muitas coisas.
Dizia,
quando eu voltava para o visitar: “Já
viajaste tanto, viste tantas coisas, conheceste lugares, gentes – por que não
escreves sobre isso?”
Roma e o rio Tibre (net)
A
sua ideia era escrever e ler e saber mais sempre. Tinha razão e, passados
tantos anos, hoje procuro falar sobre o que vi. Ser uma testemunha, contar.
Tenho pena que ele nunca tenha lido nada do que eu contei. Morreu muito cedo o
meu pai.
Sei
que teria gostado que eu escrevesse sobre a Itália que tanto amava e onde eu
estava a viver quando, na quinta da Serra, o ia encontrar. E onde falávamos do que ele vira e do que eu ia descobrindo cada dia.
Panthéon, fachada lateral (MJF)
Da
Itália, porém, pouco falei. Demasiado dentro de mim, muito lá no fundo da alma,
esses quinze anos hoje tão distantes.
E
de repente senti vontade de falar dos últimos dias em Itália. Lembro a casa dos
Orti della Sibilla, em Roma, na via
Cassia, uns quilómetros ao norte de Roma, onde vivemos esses quinze anos.
Santa Maria Sopra Minerva (MJF)
Roma estava à mão e, de carro, ou de autocarro, depressa estava no centro onde havia um mundo maravilhoso à nossa espera.
Via della Pace, à noite (MJF)
Vejo a casa vazia. Lá fora, no viale, dois
camiões cheios com as nossas coisas. As portadas de madeira e os vidros da
sala, abertos sobre o jardim, deixam entrar o ar ainda fresco daquela manhã de
Maio. No chão, os colchões onde iríamos dormir a última noite: não queríamos ir
para nenhum outro lugar. Malas fechadas ao pé das escadas, nas paredes o vazio
dos lugares onde tinham estado quadros e estantes – davam-me uma sensação
estranha de um sonho absurdo.
a Piazza Navona (MJF)
Os
espaços desenhados, a branco, na parede acinzentada por tantos invernos de
lareira acesa, eram janelas abertas sobre um fantasmagórico nada.
Roma e o centro histórico, a noite de Roma, a Piazza Navona ou o Panthéon, a Piazza Santa Maria Sopra Minerva ou a Piazza del Popolo estavam longe, muito longe, e eu preferia não pensar neles. O tempo da Itália parara.
a cúpula do Panthéon (MJF)
O
Zac, o nosso raposinho, deitara-se num canto, na manta escocesa e suspirava. Na
manhã seguinte, a porta fechada para sempre, partimos os três no carro, o
Manuel, o Zac e eu. Uma viagem que queríamos rápida, sem paragens a não ser as
mínimas necessárias, com a intenção de atravessar o mais depressa possível a
fronteira com a França.
o Manuel e o Zac, no jardim em Roma (MJF)
Parar
para quê? Onde? Qual o sentido? A Itália era um capítulo fechado da nossa vida.
O meu pai já tinha morrido e nem sabia disso.
E
fomos subindo, estrada atrás de estrada, auto-estrada depois de auto-estrada.
Pouco falávamos, e nunca da viagem que se iniciara nem do regresso.
Uma olhadela ao mapa, de
vez em quando, os olhos presos nalgum ângulo da estrada, ou numa elevação em
que surgia um paesino com o seu duomo, os ciprestes da Toscana, a terra
vermelha, ou a montanha.
Era um
olhar fugidio, sem querer fixar, o meu. E a vontade que acabassem depressa
todas as imagens de beleza que iam ficando para trás, cada vez mais longe. Na
urgência sentida de ver o fim duma ‘jornada’ tão difícil.
E
lembro – como esquecer, se tanto me magoou esse momento?- a passagem por
Génova. A estrada desenrolava-se lá no alto e, em baixo, recortava-se a cidade no
golfo: Génova que não conhecíamos.
-
Vamos ver Génova?
Não,
não descemos para ver Génova. Lembro de ouvir a cassette, no rádio do carro que, repetidamente, incansável, tocava
“Roma nun fa' la stupida stasera” e
eu chorava com o rosto virado para a janela.
Lá
no fundo, ao entardecer, Génova enevoada pelas lágrimas pareceu-me uma pérola
colorida no azul do mar. E nunca fui a Génova. E lembro os versos da canção de Paolo Conte e o seu receio de "non tornare più".
Se o sítio para onde vamos não nos engole de vez e nunca voltaremos mais...
Génova e o golfo (net)
auto-retrato de Van Gogh
"Noite estrelada"
Atravessámos
a fronteira e recordo Aix en Provence, onde finalmente descansámos. E, depois,
foi em Arles, que voltámos a reconciliar-nos com a vida, ao visitar a terra que
nos falava de Vincent Van Gogh e do seu tempo na Provença, entre 1888 e 1890, os anos mais produtivos do grande pintor.
Olivais azuis (1889)
Campos e searas (1889)
As paisagens eram as dos seus quadros: searas douradas, olivais azulados, céus turvos ou muito azuis.
A
beleza e a vida continuavam, afinal. Van Gogh ensinou-nos de novo que é preciso olhar a
beleza que (ela) nunca morre e continuará a viver por toda a parte onde vamos.
Basta ter os olhos abertos e querer amar a vida. É preciso viver, até ao último
momento.
"Estrelas sobre o Ródano", Arles (1889)
"O Hospital de Arles", 1889
O Hospício de Saint-Rémy, 1889
"Café em Arles" (1988)
Uma
das coisa belas que recordo desse ‘renascer’ é o Zac a passear no jardim do
Hospício de Saint-Rémy, onde Van Gogh passeara, desesperara e pintara algumas
das suas obras maravilhosas.
Sim, era necessário renascer...
Pomar, em Arles, 1889
Van Gogh em Arles:
Paolo Conte - "Genova e noi":
Lando Fiorini, "Roma Nun Fa' la Stupida Stasera":