sexta-feira, 22 de setembro de 2017

A primeira separação


Lembro-me bem do dia em que tive de me separar da minha irmã mais velha. Devia eu ter cinco anos - e ela tinha um ano mais. Adoecera com tosse convulsa e, para eu não ser contagiada, o meu pai foi levar-me a casa de uma das tias da minha mãe, a tia Mariquinhas. 
A minha irmã ficou ao cimo das escadas, a ver-me partir. Queria descer, para vir ter comigo e gritava. Recordo o seu bibe branco, enfeitado com folhos nos ombros,e  a camisola vermelha de lã angorá, as botas curtas e as meias de renda até ao joelho. 
Eu olhava-a, e choramingava. Não a queria deixar, nem percebia a razão por que tinha ir embora da minha casa, quase de noite, de casa dos meus pais. O grande laço de fita escocesa, que me segurava os cabelos, caía desmanchado para um lado. Nem o casaco de lã  forte me aquecia.
Tinha sido um Inverno muito frio o desse ano. Lembro-me que, dias antes, debruçada à janela alta da nossa casa amarela, vira os meus pais irem para o cinema, ao velho Cine-Teatro maravilhoso, o tecto pintado de azul, pelo qual corriam figuras femininas cheias de grinaldas e de flores. 

Recordo as frisas e os camarotes forrados de veludo vermelho escuro e o rebordo suave do parapeito onde encostava a cara para espreitar a plateia e descobrir o meu avô, que me dizia adeus com a mão.

Eram os tempos da Florinda, inesquecível amiga que nos tratava como filhas - ela que nunca casara e tanto desejava ter uma família- fez de nós três as suas meninas. 
Mais tarde, já eu casada, foi para minha casa e tratou dos meus filhos que, também, nunca a esqueceram!
Nessa noite de Inverno, vira o meu pai abrir o guarda-chuva, muito grande, e nele pousarem devagarinho pequenos flocos brancos.
Magritte, Guarda-chuva

Flocos suaves que se desfaziam em gotas e escorregavam pela seda preta, até ao empedrado da rua que ficava brilhante e onde uma manchinha branca começava a formar-se. É a única recordação de neve da minha infância.
A noite em que o meu pai me levou era fria e a separação custou-me logo no primeiro momento em que olhei e o meu pai já lá não estava.
Havia três primas já crescidas naquela casa que sentia estranha, ao fundo da rua estreita, a Rua João Acciaoli, com casas bonitas. 
Ao fim da tarde, passava um burro com duas bilhas de latão cheias de leite. Habituei-me logo a correr à janela para o ver. Era uma novidade que me divertia. 
Outras vezes, ouvia, desinteressada, os cascos a escorregarem nas pedras redondas e polidas da calçada. Burrinhos de olhos doces como esses só os encontrei em Marrocos, na Medina de Fez.

Durante o dia inteiro, as minhas primas penteavam-me, faziam e desfaziam-me as tranças, punham-me laços, vestiam-me vestidos com golas engomadas, bordadas com pintinhas de todas as cores. Brincavam comigo, para me tirarem da tristeza em que ficara depois da partida. 
Pesava-me  a ausência da minha irmã, dos meus pais, e da pequenina que me olhara de olhos muito abertos quando me fora despedir dela.
Na casa, havia um gatinho que dormia ao fundo da minha cama numa almofada e a quem eu dava leite num biberon de bonecas: das bonecas de louça, com vestidos gastos e olhos de vidro parados. Havia também brinquedos de madeira que eram mesas e cadeiras minúsculas e armários pintados com flores de várias cores.
Os dias desenrolavam-se lentos e era à noite que eu mais pensava na minha casa onde sabia que o meu pai lia, debaixo do candeeiro de vidrinhos verdes e brancos.
E a minha irmã como estaria? Quando estava já na cama, lembrava-me de muitas coisas e ficava triste.
Não sei quanto tempo passou. Uma noite, tínhamos acabado de jantar há pouco, e ouvi a campainha da porta. Eu estava a brincar, fazia uma “cantareira” em cima do sofá, arrumando os tais brinquedos de madeira, que tinham brincado as minhas primas, em pequenas. Começava a ter muito sono.
A Mimi, que era a mais nova, foi abrir. Soaram uns passos rápidos no corredor. Aproximavam-se e eu conhecia-os bem! Virei-me  para  a entrada: era o meu pai, eu sabia! 
Lembro-me de lhe saltar ao pescoço e de o apertar com força com os meu braços pequenos. 
Saímos os dois sozinhos na noite. Eu, com o meu casaco felpudo e o meu barrete de lã vermelha, que se apertava por debaixo do queixo com uma fita, e as botas grossas e quentinhas de que tanto gostava. O meu pai trazia o sobretudo comprido que o fazia parecer ainda mais alto, o cachecol cinzento e umas luvas que recordo serem de pele amarela.
Sé de Portalegre (foto Mão de Ferro)

Atravessámos o largo da Sé, deserto àquela hora. Detrás da igreja, no alto, a lua brilhava encoberta por nuvens cinzentas que, pouco a pouco, se desvaneciam.

Sentia-me bem, com a mão pequenina na mão enorme do meu pai, a saltitar para poder acompanhar as suas largas passadas, feliz, por voltar a casa.

7 comentários:

  1. Ficamos sem saber o desfecho? Não acredito.... Espero bem que a maninha estivesse já recuperada...

    Beijinho.

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    1. Acho que tenho de acabar a história...ficou em suspenso! beijo

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  2. Ao ler recordei como era estar doente em criança, nunca fui separada das minhas irmãs, mas recuperei mais cedo do sarampo e não tinha com quem brincar porque elas ainda estavam doentes e por essa altura comecei a fazer figuras em plasticina - e tive tosse convulsa, assim como a minha irmã mais nova, a minha irmã mais velha escapou porque tinha sido vacinada, e consigo ainda lembrar-me como era horrível, estava sempre a tossir
    um beijinho e boa noite

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    1. Tenho muitas recordações (infelizmente) de doenças na infância...não havia vacinas e "apanhávamos"tudo umas das outras... sarampo, anginas, varicela...

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  3. As minhas recordações, nesse aspecto, são por desgraça mais duras. Tinha um irmão, o Toli, que só tinha um ano de diferença de mim.. Apanhámos os dois o sarampo e a que estava pior era eu, mas de repente a ele veio-lhe o garrotilho e levou-o por diante. O médico pôs-lhe o soro antes de tempo e depois já não se pôde fazer nada, morreu asfixiado nos braços do meu pai. Nunca será para mim um tema a narrar, é demasiado doloroso. O meu pai sofreu de claustrofobia o resto da vida.

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    1. Que tristeza, Maria! Não imaginava um drama assim. Nem todas as histórias tê o mesmo final feliz. Faz muita impressão, minha amiga!

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  4. O final parece sugerir o amanhecer, como um recomeço, após a linda lua, em casa com a família e a irmã querida.

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