domingo, 8 de outubro de 2017

“Um Bicho da Terra", de Agustina Bessa-Luís (Iª PARTE)


Rembrandt, O Filósofo Meditando, 1632

(Capa de "O bicho da terra")

Leio o livro “Um bicho da terra” com o pensamento fixo no “bicho da terra tão pequeno” de que falou Camões n’ Os Lusíadas, numa passagem dramática, de grande humanidade, que se refere à nossa condição humana solitária, precária, indefesa perante as adversidades da vida, causadas pela força negativa dos elementos da Natureza, pela agressão do mundo dos outros, pela indiferença dos deuses e dos céus que nos contemplam (ou não) lá do alto.

“Ó caminho da vida nunca certo,
Que aonde a gente põe sua esperança,
tenha a vida tão pouca segurança!
….
Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida
Que não se arme, e se indigne o Céu sereno
Contra um bicho da terra tão pequeno?”
(Canto I, estâncias 105-106)

No romance, o “bicho da terra” é o judeu converso Uriel da Costa em cuja figura Agustina Bessa Luís pega magistralmente.

Confesso que comecei o livro imaginando: “será que sou capaz de o levar até ao fim?” Não porque ponha em dúvida a qualidade literária da escritora e, muito pelo contrário,  reconheço-a, porque tem livros que nunca esquecerei: A Sibila, Os Incuráveis, ou O SustoTernos Guerreiros,  O Manto, ou Fanny Owen.  

Sinto-a esquecida, abandonada por todos, morta em vida. Quem fala dela? E, no entanto, é uma escritora tão importante na nossa Literatura.
Aconteceu-me sentir-me confusa, a lê-la, perdida num labirinto de palavras e de ideias para o qual nenhum fio de Ariana encontro à mão.
Mas é uma grande romancista com páginas geniais e figuras muito bem dadas, fortes e inesquecíveis. Páginas e “criaturas” que lhe poderiam ter trazido um Nobel que foi injusto não ter.

O livro foi publicado em 1984 e vários outros saíram depois. Poucos li, confesso, até ao fim - mas reconheço que têm sempre momentos extraordinários. Ficamos presos a pensar na riqueza da sua linguagem, na violência e loucura das personagens, no cuidado do pormenor com que descreve ambientes estranhos, misteriosos, sombrios, numa língua um tanto “barroca” onde nos perdemos.

Por curiosidade, interrompo para lhes contar uma história que me aconteceu com ela e que ajuda a ver a pessoa que Agustina é. Encontrei-a pela primeira vez em Roma, na nossa casa. O Manuel conhecia-a, mas eu não. Estivemos a conversar toda a tarde. Passaram muitos anos mas ‘vejo-a’ com o seu ar tranquilo, quase “angelical”, a contar, com uma pontinha de maldade e uma ironia corrosiva, uma série de coisas que lhe tinham acontecido. 
E a falar de pessoas que conhecíamos. Ela, pelo menos, conhecia-as bem. Falou tanto! E tão interessante era. Lembro-me que me ri muito com a conversa e o humor dela. 

Pusera o nosso cão nos joelhos e, placidamente sentada no sofá, fazia-lhe festas, e ele regalava-se porque era muito mimoso o Zac. Vejo o sorriso divertido dela e oiço as gargalhadinhas, como de inocente criança, apesar da evidente ironia.
Anos mais tarde, estávamos a viver em Israel, a Agustina viajou para receber, em Jerusalém, um prémio que, recordo bem, teve das mãos de Shimon Peres.
Com prazer, fomos esperá-la ao aeroporto  Ben Gurion. O avião deveria ter chegado em horário, tudo perfeito, mas a Agustina não apareceu por mais que a procurássemos e, inclusivamente, a tivessem chamado pelos altifalantes. Aguardámos um bocado e voltámos para casa, em Telavive. 

O aeroporto fica situado a meio caminho de Jerusalém e de Telavive. O Manuel contactou o marido que ficara no Porto e se angustiou logo, pois não sabia de nada. Só sabia que o avião tinha partido!
- Por favor, encontre a minha mulher!, disse.

Lá voltámos ao aeroporto. Dessa vez, ia o Zac que não suportava ficar em casa sozinho durante muito tempo. E entrou no aeroporto connosco.
Voltámos a dar as mesmas voltas, falámos com os serviços de apoio, e várias meninas bonitas se interessaram logo quando souberam que se tratava de uma senhora já não muito nova e que viajava sozinha. Ninguém sabia daquela pessoa perdida num aeroporto do Médio Oriente.
Reuven Rubin, Jerusalem
Demos mais uma volta e, a dada altura, o Zac seguiu em frente mais apressado e a puxar para um lado enquanto dava ao rabo. Puxava e puxava e eu ia atrás dele, pendurada da trela. E não esqueço o que vi: a Agustina tranquila, sentada entre duas viajantes, com um vestidinho branco de lã, o casaco pousado no colo, como se não tivesse acontecido nada de especial. O Zac já estava ao pé dela, a lamber-lhe a mão, e ela fazia-lhe festas. 
Sorriu-nos e disse apenas: “Eu sabia que haviam de me encontrar. Não estava preocupada.”
Era quase noite e fomos levá-la ao hotel a Jerusalém. Regressámos a Telavive - finalmente aliviados! 

No dia seguinte, fomos a Jerusalém assistir à entrega do prémio. Agustina agradeceu num belo discurso em espanhol que grande parte da assistência entendeu porque os judeus sefarditas sabem castelhano.
Dias mais tarde veio almoçar a Telavive, com o nosso amigo Ariel Scweitzer, crítico de cinema,  e o Zac fez-lhe as honras devidas! 
Nunca mais a vi, mas esta recordação é uma das mais agradáveis que tenho!
***
Voltando ao bicho da terra… “Bicho da terra”, dizem alguns, pela escolha que Gabriel da Costa fez, quando voltou a ser "judeu", em Amesterdão, o nome Adam: homem, filho da terra (em hebraico "adam" é "homem"). 

Gabriel da Costa além do nome Uriel que servia para a convivência comum e familiar escolheu Adam Bormez para as relações de negócios internacionais.

A figura de Uriel da Costa é dramática. Cristão? Judeu? Incréu? Rebelde sem causa, sem defesa? Espírito livre?
Perseguido em Portugal, como outros "cristãos-novos", é incompreendido na Holanda como "judeu" reconvertido à fé dos antepassados.

É o símbolo da solidão do “bicho da terra” perdido, à procura dum sentido para aquilo que o não tem, aos seus olhos “iluminados” pela inteligência e pela sabedoria, num mundo religioso de circunscrição fechada, sem saída.
Rembrandt, "Jovem Senhor"

Judeu, descendente de judeus de Espanha, filósofo e céptico (Porto 1585- Amesterdão 1640) de seu nome Gabriel da Costa Fiúza, estudou Direito Canónico, no Colégio das Artes em Coimbra. Durante o seu percurso religioso, questionou as instituições Católicas e Rabínicas do seu tempo.
Cristãos-novos, alguns seus familiares, são acusados pela Inquisição Portuguesa de judaizantes. Assim, quando o pai morre, deixando problemas de dívidas, a família de Bento Costa Brandão decide fugir, uma noite, num barco holandês, refugiando-se em Hamburgo e Amesterdão.
Explica Agustina:
Corria o processo de António Homem e ele contaminara a consciência do cidadão nos Costa Brandão. (…) Tratara-se evidentemente dum processo socrático, com acusações de ‘crime nefando’, não praticado mas sugerido (…), subornos e invejas do foro universitário, a rede policial alastrou e muita gente foi envolvida. (…) os Costa Brandão optaram pelo exílio.” (op.cit. pg. 99)

J. M. Turner, Auto-retrato (pormenor)

Durante a travessia, Gabriel, nervoso e doentiamente sensível, de humor melancólico, sofre de vários males. A descrição que nos faz Agustina desta figura, martirizada pela dúvida, pelo tormento das alucinações, pela incerteza da sua fé impressiona.
J. M. Turner, "Enterro no Mar"

“Os longos cabelos, molhados da brisa salgada, colavam-se às faces pálidas. Não tinha febre mas parecia muito doente. As suas alucinações voltavam, e passava as noites muito inquieto. Gritava que o atormentavam, que sentia os pés a arder sobre tições e que o fumo claro, de lenha seca, subia até ao peito dele, como uma prova da bênção de Deus. Era imolado, ao mesmo tempo fruto e bicho da terra, entregue ao altar do Senhor que recebia a sua oferenda, impassível, em horrível significação de perdão, atrás de todo o senso, oculto para além da noite da razão.” (pg 101)
J. M. Turner, "Tempestade"

É um futuro mártir? É um cordeiro em oferenda? E a “noite da razão” o que significa nesta passagem? É ele, como afirma a escritora, um precursor do Iluminismo? Para Agustina, ele tem já uma atitude de pré-iluminista.

O espírito das Luzes e da Razão e da Dúvida viviam dentro dele. Era “uma poderosa máquina de raciocinar”, escreve Agustina Bessa Luís. O que lhe interessava não se prendia com a filosofia apenas.

Os inquisidores em Portugal acusaram-no e não o consideraram  nunca “exactamente católico”…
 Sinagoga Portuguesa de Amesterdão

Mais tarde, em Hamburgo e em Amesterdão, também os rabinos o não levavam a sério, no modo de ser, dizendo que Uriel «não era exactamente judeu». Seria um homem livre? Não me parece que se sentisse livre, puxado como era para lados tão diversos.
Rembrand, Auto-retrato 

A liberdade de pensamento, de ser ou não ser desta maneira, ou de ser ou não de outra religião “exactamente”, tem o preço da solidão e da incompreensão dos outros : esse é o preço que pagam os espíritos livres.
Não é fácil abandonar tudo e partir. São muito boas as páginas em que se fala desta "partida", do que fica para trás, do que forçosamente se quer levar para se ter uma recordação próxima, no desconhecido que se avizinha. 
A descrição da viagem e do sofrimento de Gabriel é, também, na beleza da linguagem, e nas imagens, inesquecível.
“Ouvia-se o gemer das madeiras, o rufar das velas que o vento inchava. A água tinha ervandijas repelentes, o queijo morcões. Mas de noite, na tenda do convés, se o vento não soprava, havia um conforto quase consolador, com o cheiro das comidas condimentadas e Gabriel vestido com o seu roupão de  chamalote.” (pg.102)
Rudolf Bakhuyzen, "Amsterdam view from Mussel Pier"

Um dia avista-se finalmente o porto de Amesterdão: “Estava, à vista, o porto de Emden e produziu-se grande excitação entre os viajantes.”
J. M. Turner, "Nascer do sol no porto de Amesterdão"

Refere-se à chegada de Gabriel a Emden - antigo nome de Amesterdão. Onde ele vai ser o “anjo da desordem” no “seio dessa sociedade místico-comercial”.
Rembrandt, "O anjo Rafael"

Deixo para uma próxima vez, na II Parte, a continuação desta trágica aventura que foi a vida de Gabriel-Uriel-Adam da Costa.


5 comentários:

  1. Não conheço nada da autora, mas gosto de ler o que escreves, e me encantaría conhecê-la pessoalmente como tu. Tens muita sorte, a gente interessante é como o bom perfume, sempre muito dosificado...

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  2. Vou ficar à espera da II Parte.
    um beijinho e uma boa semana

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  3. Que texto maravilhoso!! Adorei ler e senti uma enorme ponta de vergonha porque pouco sei da Agustina... Vou pôr-me em campo...

    Beijinho.

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  4. Eu não ouso dizer (ou melhor escrever) qualquer linha aqui. Não quero estragar os meus sentires com tudo o que escrevestes, Maria. Preciso ficar em silêncio, com todo este conteúdo ecoando em um lugar, dentro de mim, muito longe e além da minha mente. Aliás, a mente nem é convidada quando me deparo com textos como os teus, 'cara mia'! A trilha, deste lugar delicioso e silencioso, começa pelo meu coração... a encontrar-te nos reinos da inspiração.
    Maria, sinto imenso prazer em ler-te. É aqui, no Falcão, que eu não percebo o tempo passar.
    Termino aqui, para a segunda parte.

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  5. Uriel, ou seja Gabriel, da Costa Fiuza, português sefardita, natural do Porto, foi contemporâneo de B. Espinoza. Séculos XVI/XVII.

    Ambos foram condenados e excomungados pela Lei Judaica, por reflectirem questionarem, filosoficamente, o cristianismo e o judaísmo, debatendo obscurantismo religioso.

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