terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

“AS ALMAS ERRANTES”, DE TOBIE NATHAN


Tobie Nathan

Vou guardando certas páginas do jornais e revistas para ler mais tarde, com mais tempo. Neste caso, trata-se duma entrevista encontrada no jornal Le Monde (1).

O título "Les âmes errantes" de Tobie Nathan interessou-me e guardei o jornal. Li-o há pouco. Gosto de saber, de ler desordenadamente conforme me apetece, sem plano de leitura. 
Ouvia dizer, quando era pequena “o saber não ocupa lugar” e confesso que me parecia uma frase pomposa e até antipática. No entanto é verdadeira: o nosso cérebro acaba por ter lá muito espaço: apaga umas coisas e regista outras. 
Há sempre mais espaço para uma nova aprendizagem - e o artigo interessou-me.
Esta entrevista com Tobie Nathan (1948, Cairo), etnopsiquiatra, termo que nem conhecia, é muito útil para consolidar o que talvez já pensasse antes sem saber. Ele conta quem o empurrou para saber mais sobre isso.
Com 21 anos, uma infância turbulenta e movimentada, criando problemas atrás de problemas, era um momento difícil. Nascera no Egipto, era judeu e, em 1957, no tempo do general Nasser, os pais fugiram para Itália e viveu parte da juventude em Roma. Depois, instalaram-se em Paris. 
Difícil percurso, para um miúdo, em adaptação e readaptação constantes.
   Georges Devereux

Passam os anos 1968/69, de 'Maio 68', das barricadas, e Nathan está na Sorbonne a estudar Psicologia e Etnologia. Indeciso sobre que futuro escolher, um dia, por curiosidade,  vai assistir a um curso de Psiquiatria de Georges Devereaux.
                                       Georges Devereux

Para Nathan, “aquele curso foi como uma bofetada! Não aguentei mais do que 4 semanas mas percebi que ia voltar quando me sentisse mais preparado.”
Para ele foi uma pedrada no charco, no vazio. Volta dois anos mais tarde. Quer inscrever-se na tese de doutoramento com o Professor que o deslumbrara anos antes.
Fez-me um teste da sua autoria e depois conversámos. Cheguei às 10 da manhã e parti às 10 da noite. Entretanto, contara-me a sua vida. No final desse dia que passámos juntos, disse: 'aceito-te' no meu seminário!”
Nathan fica impressionado. Tinha pais, não era órfão, tivera acompanhamento mas fora um rebelde sempre, mas neste momento sente uma coisa especial como se tivesse sido adoptado.
O facto de ser aceito por este professor bastante rígido, rodeado dum perfume de Austro-Hungria – pareceu-me uma adopção. O professor Devereaux tornou-se, pois, meu director de tese e foi assim que me tornei ‘etno-psiquiatra’. Mas o que era a etnopsiquiatria?", interroga-se.
 No fundo, tratava-se apenas de aprender mais e mais ainda.

“Aprender com os outros povos os conhecimentos que eles têm dos problemas de saúde psíquica e saber os seus tratamentos”.
 Aprender coisas a partir das outras culturas, no fundo.
 Ter em conta as suas tradições e os seus ritos ancestrais para curar os males.

Penso em Claude Levi-Strauss, e na dedicação de toda a sua vida ao estudo dos povos ameríndios, no Brasil, e outros cuja cultura e tradição estudou. 
A viver junto deles, a querer entender e a aprender com eles. Basta ler “La pensée sauvage” ou "Tristes Tropiques". 
Ou em Victor Segalen que foi estudar os povos que Gauguin pintara e que escreveu sobre eles. 
Também Devereux estuda os ameríndios Mohave, com a intenção de “saber” o modo que têm de “curar” os problemas mentais, quais os mecanismos, qual a influência do que os rodeia. 
Nathan cita o livro de Devereaux que considera essencial: “Mohave Ethnopsychiatrie (1961), “onde ele descreve pormenorizadamente os pensamentos que os ameríndios Mohave têm a propósito das doenças a que chamamos mentais.”
jovem Mohave (foto de 1903)
Achei interessantíssimo que houvessecuriosidade em “aprender” com os povos considerados “primitivos” por tantos ignorantes que por aí andam. Não desconhecer essas culturas é não só um enriquecimento próprio como uma forma de evitar que essas culturas morram. E criar laços, união, pontes.
Parece-nos estranho ouvir isto, no entanto a etnopsiquiatria existe e pode funcionar!
A verdade é que quando o governo de François Hollande, em 2014, encarrega Tobie Nathan de “acompanhar” durante uns meses um grupo de jovens em vias de radicalização islamista, e ele segue cerca de 50 jovens rapazes e raparigas, o trabalho interessa-o muito e descobre mais do que julgara. 
Tira conclusões, faz um relatório, mas não acredita que seja suficiente e decide escrever um livro, para continuar ele próprio, esse estudo e essa reflexão. 
Na sua opinião, existem nesta questão “demasiados clichés, demasiadas ideologias a agitarem-se, e falsas respostas dadas.” Daí, nasce o livro “Almas errantes”, publicado em 2017. 
Deixo algumas passagens que julgo importantes para entendermos o modo como aborda essa questão e a procura de um novo discurso político que defenda uma sociedade verdadeira em que não falte utopia.
 “No livro lança uma ponte entre a sua própria existência de emigrado judeu egípcio e estas vidas de jovens “capturados” por uma ideologia religiosa radical. Um livro apaixonante e belo.” (wikipedia)

“Não se trata de fabricar um contra-discurso, é preciso sim fabricar um discurso. Esta é a prevenção: um discurso verdadeiro da nossa sociedade, que proponha a utopia”, escreveu Nathan.

Importa conhecer a outra cultura, o que nos é desconhecido. Importa não ignorar que o Homem é feito de muitas culturas e “nada do que é humano nos é alheio”, como dizia outro pensador, há muitos séculos. “Homo sum: nihil humani a me alienum puto.”(2)
Terêncio

(1) Les âmes errantes, ed. L’ Iconoclaste, 2017
(2) in Le Monde, de 15 de Outubro de 2017
(3) Publio Terêncio, dramaturgo e poeta romano, nascido entre 195-185 a.C.  É sua a frase: “Sou homem: nada do que é humano me é estranho.”
(4) Etnopsiquiatria ou Psiquiatria Transcultural (em inglês) é um campo de pesquisa que partilha objectos e métodos ligados tanto com a psicologia clínica como com a Antropologia Cultural. Interessa-se pelas desordens psicológicas em relação com o contexto cultural em que surgem.



4 comentários:

  1. Gostei de ler. "Almas Errantes" é um título bonito e deve ser um livro interessante.

    Às vezes também guardo artigos e coisas para ler mais tarde, mas nem sempre depois leio.

    Beijinhos e boa semana:)

    (Coloque mais post. Fico sempre ansiosa à espera de ver um novo post.
    Este é o melhor blogue da blogosfera!)

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  2. Sou sim!
    E tenho aprendido muito com a Maria João:)

    Beijinhos:)

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  3. Uma história interessante e rica. Almas Errantes me chamou.

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