terça-feira, 27 de março de 2018

Morte de um escritor policial português...


Morreu Dick Haskins – aliás, o português António Andrade Albuquerque que escrevia romances policiais com esse pseudónimo.

Romances que, desde 1950, passaram a ser publicados não só em Portugal por várias editoras, como também no estrangeiro onde tiveram fama. Traduzido em mais de 30 países, era considerado o mais internacional dos escritores portugueses. 

Se tivesse publicado com outro nome teria tido o mesmo sucesso? Talvez sim, ou talvez não.

Nasceu em 11 de Setembro de 1929, em Lisboa, onde morreu na madrugada de 21 de Março. TTinha 88 anos.

Estudou Medicina até publicar o seu primeiro romance – que escreveu aos 25 anos e que se chamava O Sono da Morte. 
O livro chegou às livrarias em 1958. Foi nesse ano que o próprio autor criou uma colecção Policial, a Enigma, na Ática.

Desde esse ano, foi publicado por várias editoras portuguesas, além da 'Enigma': a 'Dêagá', a 'Reverso', a 'Vampiro' e a 'XIS'. E a 'Asa'.


No estrangeiro, publicaram-no editoras alemãs, australianas, nórdicas, britânicas, americanas, irlandesas, italianas, sul-americanas e outras.
O seu último livro saiu em 2016 e chama-se A Metáfora do Medo.
Fiquei com curiosidade de o ler. Recordo o nome de Dick Haskins, que talvez tenha lido algum na Vampiro. Confesso que não o li muito, preferia os seus Mestres, Dshiell Hammett e Chandler – grandes mestres da Literatura de todos os tempos, que me encantavam – e que ele seguia de perto. Ou ler outros da Vampiro como S.S. Van Dine, Erle Stanley Gardner, Hartley Howard - ou a inglesa Dorothy Sayers – escritores dos quais a Colecção Vampiro publicou variadíssimos títulos.
Outros livros do autor: LabirintoO Isqueiro de Oiro, O Espaço Vazio, 'O jantar é às oito.~
De qualquer modo, presto homenagem ao “nosso” escritor policial mais conhecido no mundo.



Engraçada esta história que me contou, sobre ele, o meu amigo Inácio Steinhardt, judeu polaco, cuja família fugiu para Portugal nos tempos das perseguições nazis, e aqui viveu. Um dia a família Steinhardt foi para Israel, onde, muito mais tarde, os conheci muito bem.

Contou-me ele que, há muitos anos atrás, ia num eléctrico em Lisboa e encontrou um jovem judeu holandês sentado a ler um livro de um autor inglês. Era um Dick Haskins ‘traduzido’ em português – segundo julgou...
Perguntou-lhe por que razão não lia o livro na versão original e ele explicou: “Este escritor é português mas tem um pseudónimo inglês, talvez para vender melhor. E eu acho que a língua coloquial se aprende nos livros policiais…”

No que tinha muita razão e, por isso, achei graça porque eu também aprendi o meu francês coloquial com um escritor policial : o grande Georges Simenon, talvez por o ter inicialmente lido na Vampiro...

Lendo a infinidade de bons livros que escreveu na sua vida- e aprendendo!
Espero que muitos "estrangeiros" tenham aprendido o seu português coloquial com os livros do português Dick Haskins...

Sobre a morte de Dick Haskins


Alberto Giacometti, esse desconhecido!





quarta-feira, 21 de março de 2018

no Dia da Poesia, António Botto


Poema

"O mais importante na vida
É ser-se criador –criar beleza.

E, pra isso, É necessário pressenti-la
Aonde nossos olhos não a virem.

Eu creio que sonhar o impossível
É como ouvir a voz de alguma coisa
Que pede existência e que nos chama de longe.

Sim, o mais importante na vida
É ser-se criador.

E para o impossível
Só devemos caminha de olhos fechados
Como a fé e como o amor."

“As Canções de António Botto”, edição muito aumentada da Livraria Bertrand, 1º volume das obras completas, s/d, pg 43

segunda-feira, 19 de março de 2018

Falando do pintor Português Carlos Botelho

Carlos Botelho, My father, 1937

Carlos Botelho nasceu num prédio da Avenida da Liberdade, em 18 de Setembro de 1899 e morreu também em Lisboa em 18 de Agosto de 1982. Foi um pintor, caricaturista e ilustrador português de grande valor. Podemos dizer mesmo que foi um precursor da Banda Desenhada. 
A sua figura do “Píu” e outros, no “Sempre fixe”, na página "Ecos da Semana", são inesquecíveis.

Habituei-me a ver a sua pintura e a amar as suas imagens de Lisboa, com seu traço ligeiro sempre reconhecível, e pela visão poética da cidade.
Carlos Botelho, Lisboa manhã de domingo, 1935
Carlos Botelho, Lisboa 1936

Descobri aqui em casa um livro esquecido, livro com algumas das suas pinturas com um breve texto autobiográfico muito interessante.
Um livro pequeno bem organizado, com algumas das mais belas “vistas” de Lisboa mas também com pinturas sobre New York, com um colorido vermelho lindo, ou de Paris, a bela Place du Tertre.

A sua pintura pertence à 2ª geração modernista portuguesa.

Começo por falar do magnífico retrato -com que ilustrei o início deste post- do pai, Carlos Botelho também, pianista, tal como o era a mãe do artista. Um quadro em que é extraordinária a expressividade do rosto, a elegância da figura e as cores. 
Filho de músicos, Carlos Botelho Carlos começa a estudar violino em 1910, pouco depois da morte do pai. A dada altura abandona-o por outro amor, a pintura. Nos últimos tempos da sua vida volta, no entanto, a esse amor.

De facto, nesse texto autobiográfico, refere-se à sua entrada no Liceu Pedro Nunes onde vai descobrir a verdadeira paixão artística da sua vida: a pintura. 

Frequentava uma aula suplementar de Desenho, e começa a pintar com grande afinco.

Lembro-me que andei semanas a desenhar, de um cartão, uma gazela, e tanto rabisquei que os meus companheiros me diziam que a gazela já se parecia comigo.
Não havia festa no Liceu que não tivesse a minha colaboração como actor ou como decorador e assim executava dezenas de cartazes e desenhos para os jornais da turma.”


O Reitor interessa-se, ao ponto de lhe propor: “Não sais do liceu sem fazeres a tua primeira exposição e há-de ser na sala da Reitoria.”

Escreve Carlos Botelho:
“Por esta razão festejei os meus 50 anos de pintor neste mesmo liceu com uma retrospectiva de óleos (…)”

Assim foi. De facto em 1918, realiza a sua primeira exposição no Liceu Pedro Nunes e, ali, vendia o seu primeiro quadro.


Ingressa, depois, na Escola de Belas-Artes onde passa apenas dois anos –não se adaptando muito bem à Escola.

Saí da Escola e comecei a minha vida profissional, vivendo do que  ganhava com o meu trabalho.
Pintava cerâmicas para ganhar a vida, nos primeiros anos.
Nos anos 20, dedica-se sobretudo às artes gráficas e à banda desenhada.

Nos inícios pinta, com uma clara inclinação para o expressionismo, cidades, retratos ou histórias.
Carlos Botelho, "Nocturnal", Nova-Iorque 

A paisagem urbana atrai-o e vai ter um lugar central na sua obra. Paris, Veneza (onde participou na Biennale de 1950) Nova-Iorque e, claro, Lisboa.
Carlos Botelho

Lisboa, a bem-amada, que pintará de todos os modos, com todas as cores e momentos do dia, na solidão das ruas, no silêncio das praças,  no rosado do amanhecer, no cair da tarde - ou na luz de um domingo de alegria.
Carlos Botelho, Lisboa 1946

Carlos Botelho, Lisboa e o rio

Lisboa que servirá de modelo e de mote às suas experiências abstraizantes dos anos 50, como o será nas décadas finais da sua pintura. 
Carlos Botelho

Difícil imaginar Lisboa sem nos vir à memória um quadro ou uma gravura de Botelho!


(1)Da Colecção Artistas Portugueses, nº 1, Ed. S.E.I.T. ed. Panorama, 1973

https://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Botelho

Pintor Carlos Botelho - 1982 -" Continuarei aprender até à última tela d...

quinta-feira, 8 de março de 2018

IRENE LISBOA E AS COISAS DA VIDAS




Há tanta coisa a descobrir nesta autora! Observações, apontamentos sobre coisas tão variadas como assuntos do dia a dia a pensamentos, reflexões sobre literatura e crítica, a condição das mulheres-escritoras, atitudes, ou a diferença dos mundos.
O mundo da cidade e o do campo, por exemplo. As gentes e a miséria que encontrou nas aldeias iguala a das gentes simples dos bairros populares de Lisboa, das ruas com as suas vendedeiras e seus pregões.
Toulouse-Lautrec, Café e solidão...

Ou os cafés onde se esconde a solidão não passam de fragmentos de vida, vivos, com as suas cores desmaiadas ou gritantes, quase agressivas mesmo, mais sentidas do que pensadas. 
O seu olhar mergulha na vida, atento ao sofrimento do outro, às injustiças, aos sentimentos de injustiça, com o seu "recolhimento quase furtivo", a descortinar a humanidade de cada um, na sua desgraça, na sua pobreza ou na sua ambição, desalento ou esperança. 
De si revela muito. Até a pena de não ver  a sua obra apreciada. Um dia alguém lhe diz que apreciava a sua obra e sentir esse respeito faz-lhe bem.
“Este homem que saiu daqui disse-me de cara a cara mas amavelmente que eu procurava o ‘inefável’ no quotidiano, e que tinha a mística…
Será que o entendi? Que tinha a mística do que sensivelmente me agita: que exploro as coisas com um recolhimento profundo. Ele respeitava-me dando-me a entender tudo isto.”
As suas palavras soltas, livres, são lançadas como pedradas tantas vezes, sempre inteira na procura do tal ‘inefável no quotidiano’. A ver as pequenas coisas que os outros não vêem, absorvidos como estão nas suas próprias “vidinhas”, fechados ao que os rodeia. 

Preocupada com a miséria da vida das mulheres, da dificuldade de chegar ao fim do mês quando nada se tem e se vive -sobrevive!-de subterfúgios, dum quartinho alugado a outro desgraçado que lhe garante a comida do dia a dia.
Conhece a marginalização da mulher em todos os campos e classes sociais ou mesmo entre os intelectuais. Sabia defendê-las quando era necessário, muitas vezes em tom sarcástico e irónico como no texto em que fala das mulheres escritoras.
Dizia Irene que a palavra tinha poderes ocultos e a sua força era infinita. Os textos sobre Lisboa impressionam-nos pela capacidade de compreensão, empatia, com os seres mais frágeis, mais desprotegidos pela sorte – que ela encontra no seu dia-a-dia. 

Por curiosidade conto uma coisa engraçada: estava eu a escrever sobre Irene Lisboa e a cidade de Lisboa e descobri aqui em casa um livro maravilhoso do pintor Carlos Botelho que nem me recordava de ter. Descobrir a cidade de que ela fala, com as cores de Botelho é muito bom para mim.


Vejo-a vaguear por aquelas ruas, devagar, contemplativa, ou agitada, nervosa – a compreender os os habitantes dos sítios por onde passa , com a sensibilidade delicada à flor da pele que é a sua - e que é infinita.
Carlos Botelho

Vai falando consigo : “Eu penso que podia fazer alguma coisa…E não eu! Não é bem em mim que penso porque eu sou passageira e ínfima. Penso que alguma coisa se podia e devia fazer…”

Instantes da realidade diária que a tocam e nos tocam. A história do burrinho coxo que vai a arrastar a perna,  mancando, enquanto puxa a carroça que a dona trouxe à cidade carregada de fruta, couves e verduras – é patética! 
Condói-se com o sofrimento do burrinho e a aflição dessa pobre “mulher esgrouviada que dizia mal à sua vida” que explica, com vergonha, que não tem dinheiro para o levar ao veterinário. O grupo que se formou à volta da mulher agita-se e tem opiniões: os comentários de apoio ou de crítica são agressivos.
Carlos Botelho

Recordo a história do menino que vendia limões e que, a fugir do policia, vai parar debaixo do eléctrico.
Ou a mulher que ela encontra, certa manhã, às vassoiradas no passeio, enquanto um magote de gente tenta perceber o que aconteceu. Ela grita e bate com a vassoira. Afinal era apenas um rabo de lagartixa que se contorcia.
Carlos Botelho

Tantas e tantas histórias que se passam nos seus livros. Contadas apenas, deixando ao leitor a sua liberdade de ouvir, reflectir também.

Nela há sempre a urgência de fazer alguma coisa. Sente no entanto a fragilidade da sua pessoa. O mundo é vário e o seu poder é pouco. Mas ela não desiste.
Van Gogh, Olival e nuvens
Cada lugar em que se vive exerce sobre nós a sua influência, e não há que lhe fugir. É sempre reconhecível. Só a monotonia e a permanência nos podem enganar, cegar, tirar-lhes o poder de sensibilidade.” Por isso, para ela, a chuva é diferente não campo e na cidade.
O mistério das nuvens carregadas de chuva, manchas negras num campo aberto até ao horizonte – de onde começam a mover-se e é assustador.
“No campo a chuva passa às ondas, num movimento, baixas e baças. Entristece e parece misteriosa”, escreve.
Não se compara à chuva que vemos na cidade “num ambiente doméstico de conforto.” No calor da casa, ou nas ruas com gente e movimento, companhia. 
O único modo de fazer algo pelo seu semelhante, creio, é o olhar que lança sobre o ser humano, seja no campo, seja na cidade, a descortinar os sofrimentos, os problemas que vive no dia a dia e a escrever. Felizmente, há a palavra!

É urgente ouvir  sua palavra. Ler o que escreveu. Saber que há estudos, teses sobre Irene Lisboa, de jovens e menos jovens que se interessam pelas suas preocupações éticas.

Lembro o trabalho importante que realizou a Professora Paula Morão (1), quer pela organização dessa primeira Antologia de textos de Irene Lisboa (2), quer pela tese de Doutoramento a ela dedicada, intitulada “Irene Lisboa Vida e Escrita” quer pela continuação do seu interesse  por ela. 

O que a leva a interessar-se pela reedição das obras da autora. Em 1994, prefacia a reedição de “Voltar atrás para quê?”, que sai na Editora Presença – livro cuja primeira edição é de 1940.
De assinalar, porém, que é em 1973 que sai a primeira reedição de "Voltar atrás para quê?", saído, em 1973, na colecção Unibolso (Lisboa Editores Associados). E que, nessa altura, vendeu mais de 15.000 exemplares!
Paula Morão interessou-se também pela criação da Casa-Museu Irene Lisboa na terra da autora, na Arruda dos Vinhos. Museu onde se realizam exposições, conferências e onde existem originais da escritora.
Quero referir também a recente tese de Mestrado, defendida em 2017 por Sara Barbosa, professora do ensino secundário –  minha amiga e apaixonada pela escritora.

Todas estas publicações são muito relevantes para o conhecimento desta personalidade da nossa Literatura ainda desconhecida para o grande público.
Irene Lisboa

(1)Paula Morão nasceu em 1951. É Professora Catedrática do departamento de Literaturas Românicas da Faculdade de Letras de Lisboa.
(2)Esta “antologia”, organizada, prefaciada e anotada por P.M. (“ensaio preparado em Paris de Janeiro a Julho de 1983) intitula-se “Folhas Soltas da Seara Nova” e reúne escritos variadíssimos da autora, publicados na revista Seara Nova de 1929 a 1955. Saiu na Imprensa Nacional Casa da Moeda, biblioteca  de Autores Portugueses, em 1986.