sexta-feira, 5 de outubro de 2018

Outras histórias: O monte de Turquinos, no Baixo Alentejo...



Vivíamos nessa altura numa aldeia que se chamava Sabóia, perto de Santa Clara, no limiar entre o Alentejo e o Algarve”, contava-me a minha tia. 

Nunca tinha ouvido falar desse lugar. Os meus tios viveram uma vida que parecia aventurosa mas devida apenas ao que o meu tio estudara e ao trabalho que escolhera: topógrafo. O que os levou a calcorrear milhas pelo Alentejo fora, de forma com certeza nem sempre cómoda. A aventura estava sim dentro deles. E eu admirava-os por isso.

Eram caminhos de pedra soltas onde a potente moto Jawa do meu tio não conseguia chegar, porque os pneus se rasgavam nas pedras cortantes. Tinha que a deixar na aldeia e subir a pé até à casa do monte.

O meio de transporte comum era a carroça. Ou, muito provavelmente, o burro. Dessa vez, ela ia a caminho de Turquinos, o monte onde iriam viver uns tempos.

E lá íamos a abanar, na carroça, desde Odemira...”
Continuava a minha tia a contar.
Foi uma campanha difícil. O teu tio nunca se queixou. Sabes como ele é.”
Sorriu.
Partia ao nascer do sol e voltava ao fim do dia, já o sol se tinha posto. Sempre com a mesma alegria, a contar histórias para me distrair...”
Lembrava-se da primeira viagem dela. O meu tio já lá estava a viver no monte, há uns meses. Instalara-se numa parte de uma casa, no mote. Os que o receberam era boa gente, cheia de bondade e respeito por si e pelos outros. A minha tia nunca os esqueceu.
Ela adiara a partida porque o filho ainda era pequeno. Fora um colega do meu tio que a fora esperar ao comboio e a acompanhara até a aldeia de Sabóia, no baixo Alentejo.
A carroça chocalhava, dizia-me, ela sentia-se abanar até à alma “dum lado para o outro, dum lado para o outro...”

O olhar velava-se-lhe pela força do calor e do suor enquanto uma neblina parecia subir dos campos e fazia tremeluzir as searas amarelas.

A minha tia, com o meu primo pequenino ao colo, enjoada, vermelha do sol dourado e ardente, que incidia em cima dela desde manhã, ansiava. E eu imaginava uma "Madonna" abraçada ao filho pequeno, a defendê-lo.
"Madonna" de Bernardino Luini, discípulo de Leonardo

O zumbido dos besouros, das cigarras e dos ralos era ensurdecedor e a cabeça ardia. Parecia-lhe que ia adormecer, desfalecia, tinha medo de deixar cair o menino do colo, e só perguntava:
- Ó Vilarigues, ainda falta muito?
- Não é longe, respondia ele. É já ali.

“Não era longe, não, mas custava a chegar lá.”
Quando chegaram, o cacho de bananas, que se lembrara de levar ao meu tio, tinha cozido com o calor e as bananas eram uma papa intragável.

"Menina", de Jacob Maris (holandês)
Nunca a ouvi queixar-se desses tempos.  No entanto, ela era uma menina que viera do Porto, mimada, cheia de comodidades toda a vida, pais com dinheiro que tudo lhe queriam dar, menina querida do seu pai - que nunca adivinhou exactamente por onde ela andava.
 Ela não queria nada. Bastava-lhe estar ao pé daquele rapaz de olhos esverdinhados, de sorriso sempre aberto e carácter alegre, por momentos silencioso e sorumbático, mas que vivia os dias sem remorsos nem invejas, nem ambições que não fossem as de fazer bem o seu trabalho que ele amava, indo de terra em terra como um cigano.

E a minha tia continuou a contar.
“Um dia, parecia-me que ele nunca mais voltava, o pôr-do-sol estava já ali em cima, e decidi ir esperá-lo à curva do caminho, que ficava lá em baixo.”
A noite caiu de repente, porém, e a curva do caminho era sempre mais adiante.
Ouviam-se os ralos, o piar dos mochos, algum pássaro de rapina que descia em voo picado com o seu grito estridente, à caça dos coelhos da charneca, ou de algum rato.
A noite do Alentejo, negra e estrelada, não alumiava e a escuridão envolvia tudo.

Teve medo, tia Nina?”, perguntei. Não, nunca tive medo. Senti-me abandonada, sim, perdida, sem saber se devia andar para a frente ou se voltar para trás. O caminho tinha desaparecido diante dos meus olhos...”

Ouviu o ruído dos bois acompanhados por um homem que os conduzira à fonte, ali perto, mas que ela não sabia onde era. Ouvia o pau que trazia, a arrastar pelos caminhos, e o ruído que fazia "assim como uns estalinhos com a boca" , explicava, a indicar aos animais para onde deviam ir. 

Essa presença animou-a. Foi atrás dele. Chamou-o. Disse-lhe que estava perdida.
O homem respondeu-lhe, tranqulizando-a:
Assim que os animais beberem, a senhora venha atrás de mim e lá adiante no cruzamento vai dar com o caminho para o monte. Não há que enganar.”
Lá seguiram. O homem e os bois iam à frente, a minha tia atrás, a ver bem onde poisava os pés.
Adiante, como o senhor avisara, estava uma bifurcação. O homem disse que continuasse pelo carreiro em frente até ver as luzinhas da terra e desviou para um atalho.
Boa noite…”

E lá foi cada um para seu lado. Ela continuou, pé à frente de pé. A escuridão era total, não via um palmo à frente do nariz.
A dada altura, teve a sensação de ouvir passos pesados e rápidos atrás dela. Estugou o passo, quase corria, desejosa de chegar a qualquer sítio. Sabia lá ela quem vinha ali àquelas horas da noite?
Um vadio? Um maltês?”, pensou.

Viu as luzes, viu a casa perto. Correu e entrou em casa, bebeu água fresca de um cântaro, e sentou-se, ofegante. O coração batia. Custava-lhe a respirar.

Poucos momentos depois a porta abriu-se e o meu tio entrou.
 Calcula que era o teu tio que tinha vindo aquele tempo todo atrás de mim! Nem ele me via nem eu a ele.”
E riu-se com o seu riso cristalino do costume.

Quase a dois passos, nenhum se apercebera de quão perto estava do outro, na negrura da noite...

Quando penso que era o teu tio! O medo que eu tive!”, ria ela.

5 comentários:

  1. Conta os factos passados de maneira muito agradável, com
    descrições de quem conhece bem o calor alentejano...
    Realmente uma tia excecional, para viver feliz desse modo,
    sendo grande parte do mérito realizado pelo tio.
    Muito interessante, gostei muito.
    Beijinhos, estimada MJ.
    ~~~~

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  2. Era corajosa a sua tia!

    E esta é uma bonita história onde o amor se impõe! Deixar assim uma vida confortável para vir atrás de um amor cheio de aventuras, não é para uma qualquer! Era de certeza uma pessoa fantástica, a sua tia!

    Beijinhos e bom fim-de-semana:)

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  3. A minha tia era - e é ainda, com os seus 95 anos - uma pessoa excepcional! O meu tio morreu há dois anos com 98. Teriam feito setenta anos de casados poucos dias ante dele morrer. O mesmo amor e ternura até ao último dia.
    Fico muito contente por ter "mostrado" um pouco como eles eram! Um beijo, amigas!

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    1. Ah! Era essa senhora? Que maravilha!

      São pessoas inspiradoras:))

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