domingo, 21 de abril de 2019

"Perto do Coração Selvagem", de Clarice Lispector (1944)



Falo de um livro de que gostei há muitos anos! Resolvi reler Clarice Lispector  e o seu estranho livro "Perto do Coração Selvagem"; queria saber o que sentiria hoje...
Li-o, pela primeira vez, na velha colecção dos Livros do Brasil que tinha uma selecção de autores muito boa.

Colecção onde havia tudo o que de maravilhoso tinha a Literatura Brasileira: Graciliano Ramos, Lins do Rego, Érico Veríssimo e tantos mais!

Reli, pois, o livro que me ficara na memória como algo de mágico. 

“Perto do coração selvagem”, o título feliz da obra, foi-lhe inspirado por uma frase de Joyce, a epígrafe do livro “A Portrait of the Artist” (1916) : “Near to the wild heart of life.” (2)
Uma criança solitária. Que perde muito cedo a mãe, que tem um pai que brinca e a considera uma "guria", uma menina, um "ser" livre e especial. 
O pai morre. A vida dá uma volta tremenda...Tudo se vai: o pai, a ternura, a casa, o lugar que era dela. Ninguém a compreende. A tia que fica a tomar conta dela chama-a de "víbora"...

Então a "guria" vai à procura de si mesma. Do que é, do que foi. Do seu lugar na vida. A análise da  vida interior de uma criança, num tempo antigo, anterior - e a mesma análise feita pela (criança) mulher adulta.
Berthe Morisot

Quem era ela?” “O que deve fazer alguém que não sabe o que fazer de si?”
Conta de si, dos desejos, do que vai descobrindo sobretudo desde a morte do pai, pequenina, e a descoberta e a sensação de ser diferente de todos. 
Berthe Morisot
A independência feroz, a teimosia, a vontade de não se deixar prender, a defesa quase animal da liberdade intrínseca que pode ser normal em certos adolescentes, sim.
Nesta auto-análise, impiedosa e profunda, continua a “escavar” - e o momento interior vivido, depois passado, é "revivido", adulta, e quase “dissecado”- até tudo se perder e confundir no labirinto da memória, sem encontrar saída.
Análise psicológica?

 Além do mais, a Psicologia nunca me interessou...O olhar psicológico me impacientava.
"Analisar instante por instante, perceber o núcleo de cada coisa (...) possuir cada momento, ligar a consciência a eles (...) - é a vida?”
Virginia Woolf e o pai 

James Joyce, em Trieste, Ponte Rosso
Não sei quem se referiu a uma espécie de análise metafísica ao falar dessa análise cerrada, impiedosa, desse ‘olhar psicológico interior’, mais perto do “fluxo de consciência”, à maneira de Woolf e Joyce – dois escritores que que admirava.

O estilo elíptico e fragmentado e introspectivo destes escritores interessava-lhe sem dúvida. 

Clarice Lispector transcreve o complexo processo de pensamento de uma personagem, à procura de si, menininha. Do que foi passado, do presente, com um raciocínio lógico entremeado de opiniões pessoais, dúvidas, quando menina e quando mulher.
Dentro de si sentia de novo acumular-se o tempo vivido. A sensação era flutuante como a lembrança de uma casa em que se morou (...) como vago longínquo mundo. Um instante e acabou-se.”

Mais adiante: “Não podia saber se depois deste tempo vivido viria uma continuação ou uma renovação ou nada., como uma barreira... Ninguém podia impedir que ela fizesse exactamente o contrário das coisas que fosse fazer: ninguém, nada. (...) Não era obrigada a seguir o próprio começo.”
Pensamentos como farrapos soltos, incompletos, sem ligação aparente. Passado e presente e, sempre, a relação “infindável” com a infância.~

Quem era ela?”O que deve fazer alguém que não sabe o que fazer de si?”
Vive-se e morre-se”, dissera-lhe um dia o professor. “?” Não lhe bastava.
O que era a vida? como se prendia a vida? 
"(...) possuir cada momento, ligar a consciência a eles (...) - é a vida?”
Pensava que, “mesmo assim ela escaparia. Outro modo de captá-la (a vida) seria viver”. 
"Sonho introspectivo?", de Barbara Coleman DuBois

Para ela, porém, “o sonho era mais completo do que a realidade, esta um afogar na inconsciência.”

Questiona-se sempre. O que importa afinal: “viver ou saber que se está vivendo?” (pg.68)

Um processo de associação de ideias, também, entre passado e presente, relações homem-mulher, poder e posse, esbatendo as distinções entre consciente e inconsciente, realidade e desejo, e as recordações passadas que interferem com o presente.
"Também as plantas nascem de sementes morrendo. Também longe nalguma parte, um pardal sobre um galho e alguém dormindo. Tudo dissolvido. (...) e naquele mesmo instante o ponteiro do relógio ia adiante enquanto a sensação perplexa via-se ultrapassada pelo relógio." (pg. 197) 

Pensar, reflectir, recordar, infatigavelmente! Sempre um fluir desenfreado de sensações e pensamentos da consciência, da vida subjectiva.”

Sonho, memória, esquecimento do vivido – ou não-vivido afinal e apenas imaginado – “perdemo-nos” com ela sem achar a saída do labirinto da mente e da memória...
Livro que, pela complexidade dessa análise dos sentimentos e das situações - quase um monólogo interior - nos deixa no final a sensação de não “ter apanhado” tudo.
Sim, afinal valeu a pena reler “Perto do Coração Selvagem”...

***
 NOTA  Clarice Lispector nasceu numa aldeia da Ucrânia em 1922, numa família judaica. Um dia foi “aterrar” ao Brasil e por lá ficou. Morreu no Rio de Janeiro em 1977.  A obra "Perto do Coração Selvagem" saiu no Brasil em 1944. Refiro-me aqui, à edição da Relógio D' Água, 2000.
(1) Frase de James Joyce, epígrafe de "A Portrait of the Artist as a Young Man".

(2O escritor norte-americano, Benjamin Moser, na biografia “Clarice”, quer descobrir os aspectos fundamentais na trajectória da escritora, desde a origem miserável na Ucrânia - até ao reconhecimento internacional.
O autor viajou, propositadamente, até à Ucrânia para saber tudo sobre a escritora, numa “espécie de paixão  arrebatadora”, explica. Benjamin Moser ousa mesmo qualificá-la como “a melhor escritora judia depois de Kafka”.
Foi ele quem, nos USA, dirigiu a publicação das novas antologias das suas histórias desconhecidas.



2 comentários:

  1. Gostei de ler o post. Ainda não li "Perto do coração selvagem", mas tenho-o cá.
    Gosto da Clarice Lispector.

    Beijinhos, e que tenha sido um bom domingo de Páscoa:))

    ResponderEliminar
  2. Maria João,
    A edição que tenho é brasileira, da Editora Nova Fronteira. Infelizmente ainda não a li! Tenho parte da obra de Clarice Lispector, inclusive alguns livros biográficos, como este último cuja capa colocou no blog. E já vi algumas entrevistas que lhe fizeram!
    Um beijinho.:))

    ResponderEliminar