Escureceu de repente e as primeiras gotas começaram a cair. Era a estação das chuvas. Era assim em São Tomé.
Nessa manhã saímos cedo de casa.
O Manuel e eu tínhamos decidido dar um passeio na direcção de Neves com a intenção de conhecer novas praias. Neves – que se chama realmente Nossa Senhora das Neves – fica debruçada sobre o mar para Norte da Ilha.A ideia que guardo do caminho é uma costa acidentada de ravinas a pique e em baixo águas tranquilas como lagos de cor verde e translúcida. O mar formava naquela zona uma espécie de grande lagoa. O dia estava lindo quando chegámos, com um sol brilhante e quente – o que acontecia antes de as chuvas chegarem.
Passámos pela Lagoa Azul e um pouco adiante descobrimos uma praia que ficava do outro lado de um ribeiro que corre para ir desaguar no mar, um ribeirinho transparente, cheio de seixos redondos e escorregadios.
Tínhamos levado uma merenda e a nossa companhia era como sempre a Dáy e o Zac, o nosso cão. Ficámos a comer e a olhar para o mar. A Day era uma boa companheira sempre alegre e adorava o cão Zac.
Um dia ele fugiu do jardim e ela foi a correr para a rua até o encontrar e veio-me chamar, aflita:
- Dôtora, os cães selvagens estão a ladrar muito e vão matar o Zac!
Estava aterrorizada, quase chorava. Lá fomos as duas "salvar" o Zac da matilha que costumava girar à volta da casa.
Quando as chuvas desabaram de surpresa, violentíssimas, receei que fosse mais uma daquelas tempestades dos trópicos a que me habituara e me assustavam ainda- quando em casa ficava à espera dos relâmpagos que cortavam o céu.
Vira-as encher numa torrente volumosa as águas tranquilas do Água Grande (Rio Grande) e galgarem a balaustrada branca e, depois de alagarem as ruas da cidade, levavam tudo atrás, ramos, caixotes e pedras até à baía de Ana Chaves.
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A praia não tinha outra saída. Tínhamos de atravessar o tal ribeirinho. Naqueles poucos instantes, sem nos darmos conta, a corrente duplicara de volume e a travessia apresentava-se perigosa. Em frente o mar e ao lado a massa
cerrada de coqueiros, das palmeiras de troncos grossos. Era um cenário quase irreal, com os coloridos fortes do céu, das nuvens escuras e dos coqueiros que pareciam desenhados a tinta roxa.
O vento e a chuva em rajadas fortíssimas dobravam tudo, o
ruído dos ramos a partirem-se e a caírem no chão com estrondo metia medo. Começámos
a atravessar. A Dáy, habituada a calcorrear de pés descalços praias de areias
ou de cascalho, ribeiros em plena cheia, ou secos e pedregosos, ria-se. Mas eu percebia que era para nos animar.
Os seus pés pequenos saltitavam como se voassem e ela não sentia nada. Vejo-a, decidida, a segurar a mão do Manuel e a levá-lo conduzindo-o pelo trilho dentro de água, procurando o caminho de pedrinhas que não podia ver e adivinhava com os pés.
De olhos fixos no chão, punha os pezinhos descalços nas pedras redondas devagar, cuidadosamente, adivinhando o apoio que podia ter nelas para se equilibrar. Depois, preocupada comigo, espreitava para trás e gritava:
- Dôtôrra, vem depressa. A água vai subir muito. Tu põe o pé onde eu pus meu pé. Eu levo o dôtôr comigo!
Lá iam os dois de mão dada. Meti o Zac dentro do saco onde tinha trazido as sanduíches e os sumos onde estavam agora só as toalhas. Pu-lo bem aconchegado no fundo e segurei as asas do saco bem agarradas no meu ombro.
Fomos ficando os dois um pouco atrás - eu a adivinhar debaixo da água turva da corrente as pedras por onde a Dáy passara e a sentir o meu cão a balançar dentro do saco. O calor do corpinho dele na minha anca fazia-me companhia. Instintivamente sentia o meu receio e esperava o que eu decidisse, confiante. Ele acreditava que a sua dona podia resolver tudo. Sozinho e pequeno como era nunca teria conseguido atravessar o ribeiro a meio da corrente forte.Os meus pés descalços tacteavam as pedras soltas, perto do areal, espreitando sempre o caminho trilhado pelos pés da Dáy. Nos seus dez anos, orgulhosa da missão, ia atenta agarrando com força a mão do amigo mais velho.
Quando passámos para o outro lado, olhei para trás. Tive medo. Era impressionante contemplar a corrente escura do rio em sobressalto e o rumor que fazia. Ouvia a água como se rolasse e enrolasse forte, sempre mais forte, continuando a encher o caudal em direcção ao mar.
Os coqueiros inclinavam-se como se o caule delicado se fosse quebrar, mas resistiam afirmando a sua elegância de encontro à luz estranha do céu de trovoada.
A chuva continuava a cair. O jeep estava à nossa espera - era o "porto" seguro. Quando nos vimos lá dentro, nervosos e sacudidos pelo susto, começámos a rir sem conseguir controlar o riso nervoso misturado com o medo.
O Zac entretinha-se a lamber o pelo molhado com um ar muito aplicado enquanto nos olhava. Depois, como sempre fazia quando queria participar na brincadeira, pôs-se a ladrar, a ladrar. O regresso foi um enorme alívio para todos nós.
A chuva continuava a cair mas a nossa casa esperava por nós. E era muito belo o jardim nos dias de chuva.