terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Histórias de São Tomé:Perto da Lagoa Azul

Escureceu de repente e as primeiras gotas começaram a cair. Era a estação das chuvas. Era assim em São Tomé.

Nessa manhã saímos cedo de casa. 

O Manuel e eu tínhamos decidido dar um passeio na direcção de Neves com a intenção de conhecer novas praias. Neves – que se chama realmente Nossa Senhora das Neves – fica debruçada sobre o mar para Norte da Ilha

Recordo-a como uma terra abandonada, sem gente nem vida. Recordo vagamente uma praça sem interesse particular e um pequeno miradouro sobre o mar. O mar sim que era espantoso, com a cor esverdeada das águas transparentes no meio de rochas.

A ideia que guardo do caminho é uma costa acidentada de ravinas a pique e em baixo águas tranquilas como lagos de cor verde e translúcida. O mar formava naquela zona uma espécie de grande lagoa. O dia estava lindo quando chegámos, com um sol brilhante e quente – o que acontecia antes de as chuvas chegarem. 

Passámos pela Lagoa Azul e um pouco adiante descobrimos uma praia que ficava do outro lado de um ribeiro que corre para ir desaguar no mar, um ribeirinho transparente, cheio de seixos redondos e escorregadios. 

Tínhamos levado uma merenda e a nossa companhia era como sempre a Dáy e o Zac, o nosso cão. Ficámos a comer e a olhar para o mar. A Day era uma boa companheira sempre alegre e adorava o cão Zac. 

Um dia ele fugiu do jardim e ela foi a correr para a rua até o encontrar e veio-me chamar, aflita:
- Dôtora, os cães selvagens estão a ladrar muito e vão matar o Zac!

Estava aterrorizada, quase chorava. Lá fomos as duas "salvar" o Zac da matilha que costumava girar à volta da casa.

Quando as chuvas desabaram de surpresa, violentíssimas, receei que fosse mais uma daquelas tempestades dos trópicos a que me habituara e me assustavam ainda- quando em casa ficava à espera dos relâmpagos que cortavam o céu. 

Vira-as encher numa torrente volumosa as águas tranquilas do Água Grande (Rio Grande) e galgarem a balaustrada branca e, depois de alagarem as ruas da cidade, levavam tudo atrás, ramos, caixotes e pedras até à baía de Ana Chaves.

O céu, um momento antes, azul com poucas nuvens arrastadas pelo vento, fechara-se, agora cinzento cor de chumbo e o mar perdera a cor turquesa. Recolhemos a correr a roupa e os sapatos e corremos a procurar o jeep que ficara do outro lado do riacho.

A praia não tinha outra saída. Tínhamos de atravessar o tal ribeirinho. Naqueles poucos instantes, sem nos darmos conta, a corrente duplicara de volume e a travessia apresentava-se perigosa. Em frente o mar e ao lado a massa cerrada de coqueiros, das palmeiras de troncos grossos. Era um cenário quase irreal, com os coloridos fortes do céu, das nuvens escuras e dos coqueiros que pareciam desenhados a tinta roxa.

pintura de Barbara Coleman DuBois da série "Palms"

O vento e a chuva em rajadas fortíssimas dobravam tudo, o ruído dos ramos a partirem-se e a caírem no chão com estrondo  metia medo. Começámos a atravessar. A Dáy, habituada a calcorrear de pés descalços praias de areias ou de cascalho, ribeiros em plena cheia, ou secos e pedregosos, ria-se. Mas eu percebia que era para nos animar.

pintura de Barbara Coleman DuBois

Os seus pés pequenos saltitavam como se voassem e ela não sentia nada. Vejo-a, decidida, a segurar a mão do Manuel e a levá-lo conduzindo-o pelo trilho dentro de água, procurando o caminho de pedrinhas que não podia ver e adivinhava com os pés.

De olhos fixos no chão, punha os pezinhos descalços nas pedras redondas devagar, cuidadosamente, adivinhando o apoio que podia ter nelas para se equilibrar. Depois, preocupada comigo, espreitava para trás e gritava:

- Dôtôrra, vem depressa. A água vai subir muito. Tu põe o pé onde eu pus meu pé. Eu levo o dôtôr comigo!

Lá iam os dois de mão dada. Meti o Zac dentro do saco onde tinha trazido as sanduíches e os sumos onde estavam agora só as toalhas. Pu-lo bem aconchegado no fundo e segurei as asas do saco bem agarradas no meu ombro.

Fomos ficando os dois um pouco atrás - eu a adivinhar debaixo da água turva da corrente as pedras por onde a Dáy passara e a sentir o meu cão a balançar dentro do saco. O calor do corpinho dele na minha anca fazia-me companhia. Instintivamente sentia o meu receio e esperava o que eu decidisse, confiante. Ele acreditava que a sua dona podia resolver tudo. Sozinho e pequeno como era nunca teria conseguido atravessar o ribeiro a meio da corrente forte.

Os meus pés descalços tacteavam as pedras soltas, perto do areal, espreitando sempre o caminho trilhado pelos pés da Dáy. Nos seus dez anos, orgulhosa da missão, ia atenta agarrando com força a mão do amigo mais velho.

Quando passámos para o outro lado, olhei para trás. Tive medo. Era impressionante contemplar a corrente escura do rio em sobressalto e o rumor que fazia. Ouvia a água como se rolasse e enrolasse forte, sempre mais forte, continuando a encher o caudal em direcção ao mar. 

pintura de Barbara Coleman DuBois,  série "Palms"

Os coqueiros inclinavam-se como se o caule delicado se fosse quebrar, mas resistiam afirmando a sua elegância de encontro à luz estranha do céu de trovoada.

A chuva continuava a cair. O jeep estava à nossa espera - era o "porto" seguro. Quando nos vimos lá dentro, nervosos e sacudidos pelo susto, começámos a rir sem conseguir controlar o riso nervoso misturado com o medo.

O Zac entretinha-se a lamber o pelo molhado com um ar muito aplicado enquanto nos olhava. Depois, como sempre fazia quando queria participar na brincadeira, pôs-se a ladrar, a ladrar. O regresso foi um enorme alívio para todos nós. 

A chuva continuava a cair mas a nossa casa esperava por nós. E era muito belo o jardim nos dias de chuva.

7 comentários:

  1. Gratas recordações...
    Eu fico grata pela leitura deliciosa.
    Não conheço S Tomé, mas estive em Angola, sei como são as tempestades tropicais.
    Gostei de ver as fotos e como a pintura de Barbara se ajustou tão bem!
    Dias de saúde e paz. Beijinhos, MJ.
    ~~~~~~~~~~

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  2. Uma aventura e tanto. Gostei muito de ler, enquanto lia foi um pouco como estar aí.
    um beijinho e um bom Natal

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  3. M.J.Falcão, desejamos um Bom Natal 2020 com saúde
    e uma entrada em 2021 com pezinhos de lâ
    Paula e Rui

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  4. Já tinha estado a ler, com o blogue desligado e por isso não comentei. Gosto muito das suas histórias, mas esta foi um bom susto!

    Gosto das fotos e das pinturas que escolheu.

    Boas Festas! Espero que tudo esteja bem.

    Beijinhos🎄🎄🎄

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  5. UM NOVO ANO MELHOR DO QUE O QUE FINDA, COM SAÚDE E ALEGRIAS.

    QUE SE CONCRETIZE A PAZ MUNDIAL E A TÃO ALMEJADA PROTEÇÃO DO NOSSO PLANETA.

    APESAR DAS LIMITAÇÕES E DIFICULFADES, UMA PASSAGEM AGRADÁVEL.

    BEIJINHOS, MJ
    ~~~~~

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  6. Um feliz 2021, com muita saúde, para a Maria João e o Manuel e todos os que amam.
    São os meus desejos, com muita amizade:))
    Beijinhos:))

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