Durante os anos 50 e 60, Cornwell/Carré trabalhou para o M15 e M16 (*) e, quase simultaneamente, começou a escrever romances de espionagem sob o pseudónimo de John le Carré.
Falava de
coisas que conhecia, do chamado "Circus" ou Cambridge Circus, por exemplo, nome que aparece nos seus livros para indicar a
sede dos serviços secretos ingleses. Desses seus livros fica-nos a imagem cinematográfica de um grande actor, Alec Guiness, a figura inesquecível do agente "Smiley".
Ansiamos por um mundo melhor. Por um mundo mais decente. Alguma coisa mudou, sim, sem dúvida. Não chegou para a nossa vontade de “bem”, “justo”, algo ficou pelo caminho… Sim, a voz de uma consciência que tem tendência a desaparecer - e que é fundamental manter alta.
Poderia dizer sobre John Le Carré “calou-se a voz de um justo”? Talvez alguém fique chocado pois John Le Carré foi um espião, terá agido incorrectamente muitas vezes.
No entanto, quando leio os seus livros eu sinto-o como um justo. Alguém que no meio da luta entre o bem e o mal procura sempre um sentido de honestidade, fidelidade, solidariedade. Os seus livros interrogavam o mundo em que vivemos.
Um mundo pelo qual tanto esperámos e ansiámos e até julgámos ter lutado e contribuído para que fosse melhor, nos pequenos gestos que nos são possível, na impossibilidade dos “grandes” – que esses são os dos heróis em que acreditámos. E que nos iludiram tanto tempo.
Ou fomos nós que sonhámos de mais? Como o albatroz do poema de Baudelaire cujas asas gigantescas o impediam de voar? “Ses ailes de géant/l’empêchent de voler”.
Ilusões demasiado grandes? E a velha crença, todos os dias repetida – hoje, ainda! “O mundo vai mudar um dia! Vais ver!” – dizemos uns aos outros.Abrimos um livro dele e entramos num mundo negro onde as aparências são como sombras na caverna, invertidas: o mal está dentro, “entre nós”. Está do "nosso" lado. Como reagir?
John Le Carré nunca deixou de denunciar essas "falhas" em todos os campos, contra os direitos dos homens..
Em Dezembro de 2010 numa entrevista que o autor concedera ao jornal Le Monde, em Berna, escreve o entrevistador: "Assinalando que "esta pode ser talvez a sua última entrevista, com quase 80 anos (isto foi em Outubro de 2010, portanto em Outubro passado fez 91 anos), no momento em que saiu em Londres,o 22º romance, 'Our Kind of Traitor', este autor britânico mantém a sua actividade, mas não quer perder tempo com a publicidade."
Nunca lhe interessaram as ”honras” - de facto, pediu que fosse retirado o seu nome da selecção do prestigiado Man Booker Prize. Porque, como explicou "tem ainda livros para escrever, injustiças para revelar, imposturas a denunciar."
Lá fora, as sombras cercam-nos: escondem esse mal, atenuam-no aos nossos olhos, disfarçam-no. Confundem-nos. Gente normal? Espiões? Agentes secretos? E o que sabem eles? Falam verdade? Trata-se de um traidor? A quê? A quem? O que os liga? Que redes se enrolam e desenrolam, e os envolvem envolvendo-nos com eles?
Os seus
romances O Espião que saiu do Frio, A Casa da Rússia, A Gente
de Smiley, Um Espião Perfeito, Um
Traidor dos Nossos ou Um Homem muito
Procurado tiveram sucesso pelo mundo inteiro.
Que teia infernal os vai unir espiões e gente inocente? O que escondem uns dos outros? De que têm medo?
E seguimos atentos, suspensos, o que o autor nos vai revelando sobre as suas personagens. E uma transformação gradual vai acontecendo em cada um deles. No meio disto tudo, nós continuamos a interrogar-nos sempre. Quem são os traidores afinal?
Vamos percebendo o que os move. Percebemos mesmo? A dúvida continua dentro de nós. Ou não queremos perceber, porque a realidade nos mete medo de mais?
É este o mundo em que vivemos? Afinal não há segurança, nem do "nosso lado"? Um dos seus heróis "vê", de repente, ao espelho, uma imagem (a sua própria) e “impressiona-o a ansiedade de um rosto que principiara a não conhecer.”
Quero referir-me especialmente a um livro de John Le Carré publicado pela Dom Quixote, em 2008, com uma bela tradução de Isabel Veríssimo: "Um homem muito procurado" - que me impressionou de modo especial. "A most wanted man", o título inglês, talvez tenha pouco mais de subtileza. Revoltou-me, fiquei indignada como muitas vezes, adolescente, alguma coisa me chocava porque injusta e eu não a queria aceitar.
A velha e perversa injustiça, sempre pronta a "saltar" contra a inocência, até a bondade (ou boas intenções?) sempre castigada, ofendida, espezinhada. Indignada porque as pessoas sofrem.
Há injustiças. Continuam. Sem fim. Alguns sofrem e não deviam sofrer. As pessoas são iguais, seja onde for, têm direito a ser ouvidas, a ser julgadas com justiça igual, seja quem forem.
Ou isto será só utopia? Então, ainda bem que a utopia existe! Quando é que um homem é culpado? Até que ponto é justificado entrar dentro da vida de alguém e destruí-la? Até que ponto tudo é permitido? Afinal os fins justificam os meios? É lícita a tortura, o desprezo pelo ser humano?
Desde o 11 de Setembro, com a nova ideia do "eixo do mal", tudo é permitido? Ou foi sempre tudo permitido?
Talvez a utopia em que acreditámos nos possa um dia salvar. Há pessoas e pessoas. Ao contrário do que hoje muitos pensam os chamados políticos "não são todos iguais". Há quem faça "estradas" diferentes, conheça percursos diferentes, outros mundos e por eles fique marcado!
"A most wanted man" é um livro que fala do jovem Issa. Abrimos o livro e entramos no mundo das trevas, das sombras. Quem é quem?
Quem é Issa? Um
possível terrorista, apanhado em
Hamburgo, onde entrara clandestinamente uma certa noite, saído de uma prisão algures
no mundo onde fora torturado sem saber por quê. Culpado - como é considerado logo por todos os serviços secretos e polícias de vários países. Investigam, lutam espionagem e contra-espionagem, jogam ‘ao
gato e ao rato’ com a vida do rato.
Ou será, apenas, alguém a quem pode ter acontecido estar no sítio errado, no momento errado. Ou será, pelo contrário, um inocente: o jovem russo que aparenta ser, magro, esfomeado e cheio de frio, com o seu sobretudo negro que nunca larga, e um saquinho ao pescoço com algum dinheiro?
Terá razão a advogada alemã, uma jovem idealista que o quer proteger e o vai defender legalmente? Ou será “a máquina” quem vai vencer - seja ela qual for (normalmente homens, com pseudo ideologias) que trucida os outros homens, destrói neles a capacidade de sonhar, de acreditar ou de viver com dignidade, ou mesmo de viver apenas.
O último livro de John Le Carré saiu em 2019, na Dom Quixote, mas ainda não o comprei. Talvez no Natal que aí vem.
Fala do momento decisivo do “Brexit”. É a sua última intervenção, o rettrato implacável de mais um assunto internacional aos ziguezagues e incompreensvel
A máquina -ou os outros? - destrói em todos a vontade de justiça, o sentido do bem que existe em cada um enquanto criança e jovem, e que às vezes resiste toda a vida, mas que outras vezes se perde com a passagem do tempo: envelhecendo. E isto não é uma questão de idade.
Acabamos o livro sem respostas e com muitas interrogações. Comovidos, revoltados, cheios de esperança.
E, de facto vem na Torah: “ Quando um justo morre, deixa a cidade às escuras”.
Sinto este mundo cada vez mais escuro, confesso. Faz-me falta a “luz” de John Le Carré que procurava desfazer as sombras...
(*) M15 é o serviço britânico de informações (ou inteligência) de segurança interna e contra-espionagem.é a abreviatura de Military Intelligence, section 5, que é a designação tradicional, ainda vulgarmente usada, do Serviço de Segurança.
M16 é a agência britânica de inteligência (ou de informações) que abastece o governo britânico com informações estrangeiras.
contigo é fácil aprender. muitos beijinhos
ResponderEliminarUm escritor cujos livros nos vão fazer falta.
ResponderEliminarFeliz Ano Novo!
É bem verdade!!! Bom Ano, malgré tout...
EliminarNão conheço a obra do autor citado, apenas li O Espião que saíu do Frio, mas foi um prazer ler a sua abordagem sobre o autor, seus livros e época.
ResponderEliminarGostei de recordar Alec Guiness que nos acompanhou por tanto tempo e de conhecer o belo edifício dos 'Secret Intelligence Service'...
Que tudo suceda como deseja neste inquietante ano...
Beijinhos, MJ.
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