quarta-feira, 14 de abril de 2021

ILSE LOSA e o livro "O MUNDO EM QUE VIVI"

 

 “Relâmpagos rompem de novo as nuvens do céu. São eles que me fazem recordar a tempestade que abalou a minha terra” escreve Ilse Losa na "epígrafe" do livro "O Mundo em que vivi."

Ilse Lieblich Losa (1) foi uma escritora portuguesa, autora essencialmente de literatura infantil. Nasceu numa aldeia perto de Hanôver, Buer. É filha de  Hedwig e Arthur Lieblich ambos judeus alemães.

 

O Mundo em que vivi” (2) é um romance autobiográfico. Conta a história de uma menina judia, Rose (ela própria, Ilse), que vive os primeiros nos da infância até aos seis anos com os avós.
Os pais trabalhavam noutra cidade e os avós cuidaram dela. Mais crescida vai viver com os pais e com os irmãos mais novos em Osnabruch, Hildesheim - onde estuda.

Fala de uma criança que vive na Alemanha hitleriana e que começa cedo a perceber o que é ser “judeu”. O medo, a desconfiança dos outros assustam a pequena Rose-Ilse. 

O pai morre muito cedo de cancro. E Ilse, em 1930, vai trabalhar para Inglaterra como “au pair” a tomar conta de crianças para ajudar a família. Regressa um ano depois, em 1931.

Entretanto, criara-se um clima de fervor pró-nazi e a família Lieblich sente-se ameaçada como outras famílias judaicas, sendo alvo de ataques anti-semitas. 

Gestapo

Em 1933, Ilse Lieblich é chamada à Gestapo. Depois de um interrogatório que durou horas, ameaçada de ser enviada para um campo de concentração, decide-se  abandonar a Alemanha com a mãe. Como ela refere “num barco miserável cheio e superlotado de gente escorraçada”.

Hitler sobe ao poder

Desde a subida de Hitler ao poder, tudo se transformara na pequena terra de província. Pouco a pouco as amigas da escola, naquela pequena aldeia em que todos se conheciam,  afastam-se, não vêm visitá-la, não a convidam.

                                         Auguste Renoir e Rose

A particularidade deste romance é que a realidade “é vista” pelos olhos de uma criança - Rose ou Ilse - que não entende exactamente o que se passa mas que vai fixando dentro de si a dor de se sentir afastada e diferente. E “vê” tudo, de modo inocente, porque não tem idade para entender de outro modo que não seja através dos sentimentos.

 Ilse Losa refugiou-se em Portugal, em 1934,  onde um seu irmão Fritz já vivia. Radicou-se no Porto, cedo adquirindo a nacionalidade portuguesa, casou, teve duas filhas e ali viveu até 2006.

A obra narrativa e poética, publicada na década de 50, centra-se na retrospectiva do seu passado, os seus livros evocam a infância e a adolescência, enquanto "vivência ensombrada pela ruptura da inocência e da unidade efectuada pela experiência do horror nazi e pela perda da pátria de origem".

O seu livro mais importante é sem dúvida o que conta a história da sua vida “O Mundo em que vivi”. 

Na dedicatória escreve: “A todos os que me encorajaram a levar esta obra por diante, em especial para Óscar Lopes, os meus agradecimentos”.

Na 'Epígrafe' lemos:

“Relâmpagos rompem de novo as nuvens do céu. São eles que me fazem recordar a tempestade que abalou a minha terra.”

No entanto outros livros que escreveu têm o seu interesse. Gostaria de reler "Silka" que creio ter lido em tempos. 
A simplicidade com que revela angústias passadas e presentes, o sentimento de se saber estrangeira - - quer no espaço natal quer na pátria adoptiva - faz com que estabeleça a dada altura uma continuidade com a escrita para as crianças - a quem dedica uma obra muito extensa. 
Em 1984 é distinguida com o “Prémio Gulbenkian de Literatura Infantil".

 
Fundação Gulbenkian

Um dia escreveu numa crónica depois reunida com outras num livro (3), com o qual vai receber, em 1998, o "Grande Prémio  de Crónica" da Associação Portuguesa de Escritores (3).

 Terminada a Segunda Guerra Mundial – conta - regressei à Alemanha depois de longa ausência. Apeei-me na cidade da Colónia, oitenta por cento destruída pelos bombardeamentos, um autêntico cemitério.

Como não conseguia orientar-me facilmente entre ruínas, montões de pedras e ruas sem nome, tomei um táxi. O motorista, palrador, iniciou uma conversa e não demorou em “deliciar-me” com o seu “dantes”. Esse “dantes” era o tempo de Hitler, em que ele ocupara um lugar de destaque. ‘Dantes, éramos um grande povo, dantes não nos faltava nada; dantes, havia respeito e ordem, disso se encarregava o Fuhrer...’

E Ilse Losa vai pensando e escrevendo:

Apesar do seu querido  Fuhrer… ter planeado e levado a cabo a guerra que lhe destruíra a cidade e o resto do país (não falando já nos outros países), apesar de todos os crimes cometidos e, nessa altura, em grande parte revelados, ele manifestava-se nostálgico pelo “dantes”.

E podemos comparar com o que, por vezes, “ouvimos” alguns que ainda se lamentam por cá:

'Dantes' - escreve Ilse Losa- no tempo de Salazar, havia respeito e ordem; 'dantes', os malvados eram punidos; 'dantes' toda a gente comia bacalhau; 'dantes' os meninos aprendiam uma imensidade de coisas, agora não aprendem coisa nenhuma; 'dantes', os estudantes universitários estudavam, agora são uns preguiçosos…”


Acho extraordinário que o diga porque continua a ser uma realidade. Porque a verdade é que, hoje ainda, quanta gente por aí pensa que "dantes" é que era bom. 

Exactamente com as mesmas frases que Ilse Losa usa aqui. As "saudosas" são "as pessoas que no seu tempo “dantes” gozavam privilégios". Ou, então, "as pessoas com uma memória curta".

“De um modo semelhante, já falavam as avozinhas do século passado e, decerto, também as dos séculos mais recuados. Assim falam em todos os tempos as pessoas que no seu tempo “dantes” gozavam privilégios incompatíveis com novas situações. E também falam assim as pessoas com uma memória curta.”

E continua, com a lucidez que a vida que teve a obrigou a ter, não esquecendo nunca o que realmente foi "dantes".
 Hoje em que  é o "Dia da Memória" ou "Dia da Shoah", para os Judeus. Não esquecer, porque "dantes" foi muito mau!
Ilse Losa que se preocupou com o fim de todas as guerras e "militava" pela Paz (4).

“Se não conseguirmos viver sem nostalgia - porque não a ter então dos rios límpidos, das ruas ladeadas de árvores, das praias sem petróleo derramado, da ausência de centrais atómicas e armas nucleares?… 

Mas ter nostalgia dos ditadores, dos que nos oprimiam, não nos ajuda a melhorara as condições do nosso “agora”. Pois quanto ao dantes, seria mais sensato recear-se do que desejar que ele volte.”

Penso que será bom e útil relermos -ou lermos - este livro triste, mas nunca sem esperança.

Olhar sempre a beleza e o que é bom nas pessoas e na vida é uma máxima maravilhosa. 

Já o dizia o Rabbi Nahman de Breslau: não desesperemos nunca!

"Vê sempre para o que há de bom nos outros. E procura sempre o que há de bom em ti..."

https://pt.wikipedia.org/wiki/Ilse_Losa 

NOTAS:

(1) Ilse Losa nasce em 20 de Março de 1913 na Alemanha, Baixa Saxónia. Morre em 6 de Janeiro de 2006, no Porto

(2) “O Mundo em que vivi” saiu em 1949; a edição a que me refiro é da Edições Marânus, Porto, 1950. 

(3) Ilse Losa, in “À flor do tempo: crónicas”, Edições Afrontamento, Porto, 1997, pg. 136. 

Com esse livro recebeu a autora, como acima referi, o Grande Prémio de Crónica APE (Associação Portuguesa de Escritores/Câmara Municipal de Beja), 1998 .

(4) Ilse Losa pertenceu à "Associação Feminina Portuguesa para a Paz"

 

sábado, 10 de abril de 2021

Recordações da Ilha - Perto da Lagoa Azul...

 De manhãzinha havia um sol ardente e à tarde caía a chuva ininterruptamente, trazendo cheias grave ao Água Grande - rio normalmente tranquilo - que atravessava a nossa cidade.

Nessa manhã muito cedo, o Manuel e eu tínhamos decidido dar um passeio em direcção a Neves, ao Norte da ilha, com a intenção de procurar uma nova praia. 

Ouvira dizer que o mar era diferente daquele lado. E as praias muito belas, mas perigosas. Então pegámos no nosso UMM- Alter e fomos eu, o Manuel e a Dáy quer sempre gostava de nos acompanhar nos passeios. E, é claro, que o Zac vinha connosco.

Neves – que se chama realmente Nossa Senhora das Neves – fica debruçada sobre o mar. Recordo-a como uma cidade abandonada, sem gente nem vida - apenas uma praça sem interesse particular e um pequeno miradouro sobre o mar.

A ideia que guardo do caminho é a de uma costa acidentada, com ravinas a pique, águas tranquilas como lagos e o mar verde e translúcido. O mar formava naquela zona uma espécie de grande lagoa. O dia estava lindo quando chegámos, um sol brilhante e quente – o que normalmente acontecia antes de as grandes chuvas chegarem.

Passámos pela Lagoa Azul e um pouco mais adiante descobrimos a uma praia que ficava do outro lado do ribeiro que corre para desaguar ali no mar, um ribeirinho transparente e cheio de seixos redondos e escorregadios.

Escureceu de repente e as primeiras gotas começaram a cair. Era a estação das chuvas. Tínhamos levado uma merenda e a nossa companhia era como sempre a Dáy e o Zac, o nosso cão. 

Quando as chuvas desabaram, violentas, receei que fosse uma daquelas tempestades típicas dos trópicos que me assustavam - quando, em casa, ficava à espera de ver os relâmpagos e a pensar onde iriam cair.

O céu fechou, cor de chumbo, o mar perdeu a cor turquesa de momentos antes. Recolhemos a roupa e os sapatos, vestimo-nos a correr e fomos procurar o jeep que ficara do outro lado.

Tínhamos de atravessar o ribeirinho que atravessáramos antes. A corrente aumentara sem darmos por isso e o ribeirinho representava agora uma travessia perigosa de tal modo enchera. 

A praia não tinha outra saída - em frente o mar e ao lado a massa cerrada de coqueiros que não deixava ver mais nada. O vento e a chuva em rajadas fortíssimas dobravam-nos e o ruído dos ramos a partirem-se e a caírem no chão com estrondo  metia medo.

Começámos a travessia. A Dáy, habituada a calcorrear praias de areias ou de cascalho, ribeiros em plena cheia ou secos e pedregosos, ria-se. Os seus pés saltitavam como se voassem e ela não sentisse nada. 

Vejo-a decidida a segurar a mão do Manuel e a levá-lo, conduzindo-o pelo trilho dentro de água, procurando o caminho de pedrinhas que adivinhava com os pés, que não podia ver. De olhos fixos no chão, punha os pezinhos descalços nas pedras roliças devagar, cuidadosamente, adivinhando o apoio que podia ter nelas para se equilibrar. Pouco a pouco começara a perceber o perigo da situação.

Depois, preocupada comigo, pôs-se a olhar para trás e gritava:

- Dôtôrra, vem depressa. A água vai subir de repente. Tu põe o pé onde eu pus o meu. Eu levo o dôtôrr comigo. 

E lá iam de mão dada. Enfiei o Zac no saco onde tinham vindo as sanduíches e os sumos-  e encolheu-se em cima  das toalhas, bem aconchegado no fundo. Pus as asas bem presas no meu ombro e lá segui.

Íamos um pouco atrás eu a ver, debaixo da água turvada pela corrente, as pedras por onde a Dáy passava - e o Zac quieto a balançar ao sabor do meu movimento. Sentia o calor do corpo dele nas costas e na minha anca e sabia que ia espantado, a achar aquele meu modo de andar um pouco estranho.

Instintivamente, apercebia-se do meu receio mas como sempre esperava que eu decidisse tudo, confiante : para ele a sua dona sabia resolver tudo. Ia angustiada e só pensava que, sozinho, ele nunca conseguiria atravessar o ribeiro com as suas patinhas a meio da corrente forte,  tão pequeno como era.

Os pés descalços tacteavam as pedras soltas, já perto da areia que estava ali a dois passos do outro lado. E espreitava o caminho trilhado pela Dáy.

Nos seus dez anos, ela ia, orgulhosa da missão, a segurar bem apertada a mão do amigo mais velho.

Quando nos encontrámos do outro lado, são e salvos, virei-me para ver. O  rio, cujas águas se ouviam rolar tambores, era muito forte e continuava a encher. Tão longe a casa, mas estávamos salvos.

A chuva caía, torrencial. O jeep estava à nossa espera e era um ponto seguro. Quando nos vimos dentro, nervosos e sacudidos pelo susto, desatámos a rir sem conseguir controlar o riso misturado com o medo. 

O nosso Zac parecia espantado e entretinha-se a lamber o pelo molhado com um ar aplicado enquanto olhava para nós. Depois, como sempre fazia, quis participar na brincadeira e pôs-se a ladrar, a ladrar.

Estávamos longe de São Tomé mas tudo tinha corrido bem. A casa esperava por nós, acolhedora.

 

quinta-feira, 1 de abril de 2021

Victor Segalen, etnógrafo no rasto de Gauguin, o Insurrecto...


Victor Segalen foi um etnógrafo, arqueólogo, escritor, poeta, explorador, teórico de arte, linguista e crítico literário francês. Tudo isto no curto espaço de vida de apenas 41 anos.

Nasceu em Brest  em 14 de Janeiro de 1878 e estudou medicina naval em Bordeaux. Viajou muito e viveu na Polinésia de 1903 a 1905 e na China de 1909-1914 e, mais tarde, em 1917. Morreu, acidentalmente e em circunstâncias misteriosas, de causas desconhecidas, em 21 de Maio de 1919 (1)

De facto, depois do seu desaparecimento, durante um passeio normal na floresta de Huelgoat, no Finisterra, foi encontrado morto passado poucos dias. Apresentava apenas uma ferida no calcanhar. Nunca se souberam as causas reais da morte. Contam alguns que tinha pousado, aberto em cima do peito, um exemplar do “Hamlet” de Shakespeare, dizem que no Capítulo III.  

 

Depois da sua morte, deram o nome de Victor Segalen à “Universidade Victor Segalen II, de Literatura e Ciências Sociais”, de Bordeaux. No entanto, parece-me bem que, apesar disso, continua um desconhecido por cá.

Recordo algumas informações sobre Victor Segalen. Segundo o tradutor português de A Cidade Proibida, Aníbal Fernandes, Segalen nasceu sob um 'horóscopo' muito complicado:

Em 1878, quando seis planetas em signos de terra lhe concertam no céu astrológico um "horror ao mar" ele que, ironia maior, passa na sua carreira da Marinha.” (2)

Algumas passagens da Introdução ao livro "A Cidade Proibida" (chamada também "René Leys"), na tradução portuguesa, ajudam a perceber o percurso de vida de Segalen:

"Literariamente marginalizado em vida, Victor Segalen é mais tarde uma boa reputação póstuma com direito ao inquérito que apenas consegue dar realce, numa biografia neutra, à mãe autoritária, à miopia forte e à sua morte singular.”

Passa despercebido durante os vinte e cinco anos de vida que correm rápidos.

Sempre solitário, em 1919 instala-se no Finisterra num pequeno albergue situado perto da floresta de “Huelgoat, que é centro mítico do Ciclo do Rei Artur, e, manhã mal nascida, sai de aparente passeio para morrer debaixo de uma árvore com o Hamlet aberto numa cena do III Acto” diz ainda o tradutor português de Segalen. (op.cit)

Da relação entre o etnógrafo e o pintor Paul Gauguin (4) falarei- apoiada noutro livro, “Hommage à Gauguin, l’ insurgé des Marquises” obra de Segalen que foi publicada  pela editora Magellan.

Um livro cheio de interesse para quem goste de etnologia apenas? Não, um livro super-interessante pelo que revela - além das suas viagens pelos Mares do Sul, e os conhecimentos etnológicos e etnográficos que tem dessas paragens longínquas e misteriosas - sobretudo porque muito vai descobrir sobre a passagem de Gauguin. 
 
Segalen informou-se de modo muito completo sobre os tempos em que Paul Gauguin viveu naquelas paragens.

Quais as causas da morte? 

Quando Segalen desembarca em Papeete, Paul Gauguin morrera três meses antes na ilha de Hiva-Oa, após  ter estado na prisão durante três meses devido a  uma discussão com um polícia francês. Sofria de sífilis, estava num estado de grande debilidade e morrera com uma overdose de morfina.

Gauguin, Day of the God, 1892

Para começar a compreender: quem terá falado a Victor Segalen de Paul Gauguin, o exilado dos mares do Sul? 

Em 1903 Victor Segalen parte para o Tahiti, numa missão médica. Tem 25 anos e a cabeça cheia de literatura  - mas nunca tinha visto uma pintura ou uma cerâmica do grande Gauguin. 

Jovem médico, saído de fresco da Escola de saúde naval de Bordeaux, vai encontrar involuntariamente um "mestre de arte - e também um mestre de pensar” - nesse revoltado que foi Paul Gauguin.
 
 Parti para o Tahiti mal conhecendo o seu nome...”, confessará mais tarde.

É encarregado de verificar o legado de Paul Gauguin, após a morte do pintor, e nada sabia dele.  O que lhe disseram quando desembarcou do navio La Touraine  em Tahiti sobre o pintor - personagem “odiada pela colónia” francesa - deve-lhe ter esfriado o entusiasmo:

Gauguin? Um doido que pinta cavalos cor de rosa!”, disseram-lhe. Gauguin pertence, com Manet e outros, à família dos pintores malditos”, (isto diz laconicamente André Breton no seu ‘Journal des Iles’, em 1903). 

Segalen vai recolher em Nuku-Iva a pasta dos papéis de Gauguin e, deslumbrado com o que vê e lê, parte em peregrinação à procura dessa personagem.
Gauguin, O feiticeiro, 1902

Aproxima-se da figura do grande pintor depois de ver o “legado” estético por ele deixado e de ficar seduzido pela grandeza do pintor e pela sua alma completamente livre. Nessa obra que descobre compreende o génio selvagem do revoltado, “verdadeiramente artista, exilado e solitário...”

Victor Segalen vai participar no leilão das obras do pintor - onde todos os haveres daquele "louco que pintava os cavalos de cor de rosa" são vendidos a preços irrisórios.

Casas com neve em Pont Aven

 Decide então comprar alguns quadros do grande artista, entre eles "Paisagem de neve em Pont-Aven" (1883) e umas tábuas pintadas que faziam parte da "casa" de Gauguin. Conserva também  a paleta do pintor ainda suja de tinta, que guardará como um talismã precioso.

No relatório que envia para França, Victor Segalen arrisca-se a tomar uma posição corajosa quando evoca "os tristes restos de um povo com uma vida híbrida de selvagens em vias de perversão civilizada".

Aprendera já com Gauguin “o direito de tudo ousar”? Gauguin fora um "monstro", reconhece Victor Segalen sem outras palavras para o definir, porque o pintor não “entrava em nenhuma das categorias conhecidas que bastam para definir a maior parte dos indivíduos".

O artista colossal e frágil, solar e cheio de desespero; o artista diverso e em tudo excessivo. É esse excesso que dará força à sua obra altiva, dolorosa.

Gauguin, ex-marinheiro, ex-agente de câmbios, ex-marido, ex-chefe de família, Gauguin que deixou tudo para trás e tudo queimou na vida. Mas se tudo queimava era porque ele também era fogo e ardia”.

era porque ele também era fogo e ardia

E é desse Gauguin "ardente" e rebelde que Victor Segalen vai à procura, ou parte à conquista, numa espécie de peregrinação às raízes, aprendendo com ele o significado de "tudo ousar", quer isso dizer ter a coragem de dizer, pintar, interpretar, simbolizar, imaginar tudo o que achasse importante para a sua arte.

No Prefácio a Les Immémoriaux  encontramos estas afirmações:  "O que Segalen deve acima de tudo a Gauguin é "um certo olhar" sobre o universo polinésio. 
Tal como ele, o pintor era um estranho na Oceania; mas, sem renegar essa diferença essencial, nunca deixou de marcar a sua distância em relação aos outros Brancos vindos incarnar e assegurar, entre os autóctones, a soberania europeia!" (5)

Por essa altura Victor Segalen escrevia em carta ao pintor e amigo de Gauguin, Georges Daniel de Monfreid: "Posso dizer que nada tinha percebido do país e dos seus Maoris, antes de ter visto e quase vivido os desenhos e os 'croquis' de Gauguin."

Como súmula dessa aprendizagem, desse conhecimento, dessa semelhança de "olhares" é a homenagem da qual vos aconselho a leitura assim que puderem arranjar o livro: “Homenagem a Gauguin, o insurrecto das ilhas". 

Quero desejar a todos uma Páscoa Feliz! Que melhor imagem do que este auto-retrato do pintor com o seu "Cristo Amarelo" ?

 
(1)   Victor Segalen nasce em Brest em 14 de Janeiro de 1878. Morre em circunstâncias misteriosas, em 21 de Maio de 1919, na floresta de Huelgoat, em França.

 (2) In Prefácio de A Cidade Proibida, tradução portuguesa de Aníbal Fernandes.

(3) "Hommage à Gauguin, l’ insurgé des Marquises, ed. MAGELLAN and Cie, Collection Traces & Fragments, Paris, 2003. 

(4) Paul Gauguin nasceu na Bretanha em Pont d'Aven em 1848 e morreu em Hiva-Ao, nas Îles Marquises (Polinésia Francesa) em 1903. Terra onde, muitos anos mais tarde, viveu e morreu Jacques Brel. Estão enterrados no mesmo cemitério.

Îles Marquises

(5) Les Immémoriaux, Classiques de Poche, Prefácio de Marie Dollé e Christian Doumet

https://falcaodejade.blogspot.com/2009/11/saga-de-victor-segalen-os-maoris.html