sábado, 10 de abril de 2021

Recordações da Ilha - Perto da Lagoa Azul...

 De manhãzinha havia um sol ardente e à tarde caía a chuva ininterruptamente, trazendo cheias grave ao Água Grande - rio normalmente tranquilo - que atravessava a nossa cidade.

Nessa manhã muito cedo, o Manuel e eu tínhamos decidido dar um passeio em direcção a Neves, ao Norte da ilha, com a intenção de procurar uma nova praia. 

Ouvira dizer que o mar era diferente daquele lado. E as praias muito belas, mas perigosas. Então pegámos no nosso UMM- Alter e fomos eu, o Manuel e a Dáy quer sempre gostava de nos acompanhar nos passeios. E, é claro, que o Zac vinha connosco.

Neves – que se chama realmente Nossa Senhora das Neves – fica debruçada sobre o mar. Recordo-a como uma cidade abandonada, sem gente nem vida - apenas uma praça sem interesse particular e um pequeno miradouro sobre o mar.

A ideia que guardo do caminho é a de uma costa acidentada, com ravinas a pique, águas tranquilas como lagos e o mar verde e translúcido. O mar formava naquela zona uma espécie de grande lagoa. O dia estava lindo quando chegámos, um sol brilhante e quente – o que normalmente acontecia antes de as grandes chuvas chegarem.

Passámos pela Lagoa Azul e um pouco mais adiante descobrimos a uma praia que ficava do outro lado do ribeiro que corre para desaguar ali no mar, um ribeirinho transparente e cheio de seixos redondos e escorregadios.

Escureceu de repente e as primeiras gotas começaram a cair. Era a estação das chuvas. Tínhamos levado uma merenda e a nossa companhia era como sempre a Dáy e o Zac, o nosso cão. 

Quando as chuvas desabaram, violentas, receei que fosse uma daquelas tempestades típicas dos trópicos que me assustavam - quando, em casa, ficava à espera de ver os relâmpagos e a pensar onde iriam cair.

O céu fechou, cor de chumbo, o mar perdeu a cor turquesa de momentos antes. Recolhemos a roupa e os sapatos, vestimo-nos a correr e fomos procurar o jeep que ficara do outro lado.

Tínhamos de atravessar o ribeirinho que atravessáramos antes. A corrente aumentara sem darmos por isso e o ribeirinho representava agora uma travessia perigosa de tal modo enchera. 

A praia não tinha outra saída - em frente o mar e ao lado a massa cerrada de coqueiros que não deixava ver mais nada. O vento e a chuva em rajadas fortíssimas dobravam-nos e o ruído dos ramos a partirem-se e a caírem no chão com estrondo  metia medo.

Começámos a travessia. A Dáy, habituada a calcorrear praias de areias ou de cascalho, ribeiros em plena cheia ou secos e pedregosos, ria-se. Os seus pés saltitavam como se voassem e ela não sentisse nada. 

Vejo-a decidida a segurar a mão do Manuel e a levá-lo, conduzindo-o pelo trilho dentro de água, procurando o caminho de pedrinhas que adivinhava com os pés, que não podia ver. De olhos fixos no chão, punha os pezinhos descalços nas pedras roliças devagar, cuidadosamente, adivinhando o apoio que podia ter nelas para se equilibrar. Pouco a pouco começara a perceber o perigo da situação.

Depois, preocupada comigo, pôs-se a olhar para trás e gritava:

- Dôtôrra, vem depressa. A água vai subir de repente. Tu põe o pé onde eu pus o meu. Eu levo o dôtôrr comigo. 

E lá iam de mão dada. Enfiei o Zac no saco onde tinham vindo as sanduíches e os sumos-  e encolheu-se em cima  das toalhas, bem aconchegado no fundo. Pus as asas bem presas no meu ombro e lá segui.

Íamos um pouco atrás eu a ver, debaixo da água turvada pela corrente, as pedras por onde a Dáy passava - e o Zac quieto a balançar ao sabor do meu movimento. Sentia o calor do corpo dele nas costas e na minha anca e sabia que ia espantado, a achar aquele meu modo de andar um pouco estranho.

Instintivamente, apercebia-se do meu receio mas como sempre esperava que eu decidisse tudo, confiante : para ele a sua dona sabia resolver tudo. Ia angustiada e só pensava que, sozinho, ele nunca conseguiria atravessar o ribeiro com as suas patinhas a meio da corrente forte,  tão pequeno como era.

Os pés descalços tacteavam as pedras soltas, já perto da areia que estava ali a dois passos do outro lado. E espreitava o caminho trilhado pela Dáy.

Nos seus dez anos, ela ia, orgulhosa da missão, a segurar bem apertada a mão do amigo mais velho.

Quando nos encontrámos do outro lado, são e salvos, virei-me para ver. O  rio, cujas águas se ouviam rolar tambores, era muito forte e continuava a encher. Tão longe a casa, mas estávamos salvos.

A chuva caía, torrencial. O jeep estava à nossa espera e era um ponto seguro. Quando nos vimos dentro, nervosos e sacudidos pelo susto, desatámos a rir sem conseguir controlar o riso misturado com o medo. 

O nosso Zac parecia espantado e entretinha-se a lamber o pelo molhado com um ar aplicado enquanto olhava para nós. Depois, como sempre fazia, quis participar na brincadeira e pôs-se a ladrar, a ladrar.

Estávamos longe de São Tomé mas tudo tinha corrido bem. A casa esperava por nós, acolhedora.

 

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