O que recordo da minha vida em Telavive é a amizade que encontrei. A solidariedade frequente. A curiosidade do outro. O riso quando eu passeava com o meu cão Zac e as pessoas o olhavam e diziam "kelev hamud". Mesmo antes de saber o que significava (e que é "lindo cão, amoroso") percebia que era um elogio ao Zac.
Entrávamos em todas as lojas a espreitar o que havia e era fácil conversar. Os primeiros amigos encontrei-os nas lojas de discos, nas vendas de fruta, no lugar onde comprava o pão - ou os utensílios de que necessitava depois de chegar de São Tomé com pouca coisa em casa a funcionar, à espera que a "mudança" chegasse de barco.
na rehov Ben Yehuda
Podiam ser chávenas ou panelas ou copos mas depressa descobri onde havia. Era na loja da Sara e do Moshé, a meio da Ben Yehuda, não muito longe da nossa casa.
Também me lembro bem do local onde bebi o primeiro sumo de cenoura, temperado com um fiozinho de azeite, como só aquele senhor fazia. Chamavam-lhe a brincar meshuga, o 'doidinho', por ter os cabelos compridos atados com uma fita e ter tantas ideias.
Ficámos a viver na Rehov Lassalle que fazia esquina com a Ben Yehuda - onde, como disse, havia tudo. Era também que apanhava o sherut - a carrinha de seis lugares mais o condutor que parava onde queríamos, bastava fazer sinal com a mão. Os cães podiam entrar, coisa fundamental, e o Zac adorava ir comigo.
O "sherut" levava-nos pela rua Ben Yehuda abaixo até à rehov Sheinkin, para os lados do mercado - onde havia uma livraria boa e uma loja com imensos discos de Jazz, discos de música e cantores que não conhecia nem de nome, e nunca tinha ouvido. John Coltrane, Miles Davies, Oscar Peterson, Coleman Hawkins, Dexter Gordon - tantos!
Por perto, havia um quiosque com sumo de romã cor de rubi e bolinhas de "falafel" - croquettes feitos com uma pasta de grão, temperada com especiarias e frita.
Recordo que uma vez que a Gui nos veio visitar quase apanhámos uma indigestão de falafel acompanhados de sumo de romã! Havia também a sopa de beterraba dos judeus russos, o "bortch", que no Verão se bebia gelada.
Esses novos amigos de Telavive queriam saber de mim: de onde vinha, o que fazia e por que razão escolhera viver em Israel. Não era a curiosidade mórbida que por vezes sentimos em certas pessoas, era a vontade real de saber se eu gostava de ali estar e por que razão viera viver com eles.
Talvez porque o judeu tenha dentro o sentimento de não ser amado - quantas vezes expulsos de mundos que consideravam como "seus".
A verdade é que toda a gente das lojas apareceu para me ajudar! Afugentaram o cão, ralharam à dona do pittbull e queriam chamar a polícia pois o bicho não devia andar sem açaimo. Tudo se resolveu em paz, a miúda estava tão assustada como eu, só queria ir-se embora.
Ajudaram-me a tirar o Zac da cabeça e eu pude respirar fundo. O Zac, coitadinho, teve pesadelos por causa desse trauma - e eu é que as paguei pois quando me fui encosta, para lhe dar um beijo, toquei na perna magoada. Acordou sobressaltado e mordeu-me o nariz. Nunca mais me esqueci do medo que tive até me ver ao espelho. Deitava tanto sangue que me convenci que ia ficar com um buraco no nariz.
Lá fui no carro sozinha, com um lenço a tapar o nariz, até ao Hospital Ichilov. Viram-me e esperei porque não era grave a situação. Fui bem tratada e, com muita conversa, coseram-me os cortes dos dentinhos dele e voltei para casa.
No "meu" carro, no maravilhoso Honda vermelho que pouco mais tempo sobreviveu. De facto, espatifei-o na garagem, numa manhã de calor intenso, com mais de 30 graus. Entrei no carro, liguei-o e perdi os sentidos, suponho - talvez pelo calor. Tinha posto a mudança em marcha atrás para sair e, como era automático, arrancou e foi bater numa parede. Eu, com o barulho voltei a mim mas, confusa, sem perceber nada meti a primeira e acelerei. Claro que fui de encontro ao muro em frente. Sei que acordei realmente quando a vizinha do primeiro andar entrou na garagem e gritou: "Maria! Puxa o travão de mão"!
Era tarde de mais, o meu amado Honda vermelho estava desfeito, mas o habitáculo resistira, estava perfeito e não me aconteceu nada. Por acaso, penso que as minhas costas nunca mais ficaram bem - mas não vale a pena falar dos males passados.
Eu era muito inconsciente em Israel. E teimosa. Amuei, não quis ir ao hospital, voltei para casa e não me levantei da cama durante um dia ou dois. Já nem sei o que o Manuel disse ou não. Sei que ele estava no escritório no terceiro andar e ouviu o barulho todo.
Acabou tudo bem porque o carro estava no seguro. E foi aí que passámos para os carros alemães (mas devo dizer que agora voltei aos japoneses).
As aventuras com o Zac continuavam e começámos a avançar descendo o boulevard Ben Gurion em direcção à rehov Dizengoff.
E descobrimos os Cafés. Um dos mais amados era o Segafredo Café e muitos amigos passaram por lá e muitas conversas por lá houve. Foi o nosso primeiro Café, meu e do Manuel.
Mais tarde ele passou para o Café Dizza, na esquina da Dizengoff com a Frishman, um Café hoje desaparecido mas naqueles anos cheio de vida cultural! Inesquecíveis os encontros com escritores e artistas.
Quanta gente! Nathan Zach, o poeta, Moshé Zachar o pintor, a bela Pnina que fora a modelo do primeiro "poster" com uma mulherdo IDF - o exército israelita. Ainda era linda.
Enfim, são muitas as razões por que me senti bem em Telavive!
Tive uma grande amiga que foi a minha professora de hebraico. Comecei a aprender a língua quando cheguei a Telavive, no Ulpan. É uma escola de língua hebraica para estrangeiros full-imersion- que, por sorte, ficava na minha rua.
Tinha que ir todos os dias de manhã e à tarde, era muito pesado, passei a ir só à tarde, um dia pareceu-me que era impossível falar hebraico e desisti - antes de ter somado um certo número de lições e teria tido um "título" - mas assim não tive o certificado e arrependi-me toda a vida.
Continuando por aqui e por ali com o Zac, percebi que conseguia ler tudo o que estava escrito nas lojas, nas publicidades, nos cafés e nos jornais para estrangeiros.
Quis aprender mais e encontrei a Ruti que me deu lições em casa. Ficámos amigas.
E tornou-se mais simples a relação com os meus amigos - eles "apreciavam" que eu tivesse escolhido aprender a língua deles. Mesmo falando mal...
A Ruti era alegre, inteligente e cheia de vida. Vejo-a como uma kibbutznika mas não sei qual foi o passado dela própria nem cheguei a saber dos seus antepassados vindos da Rússia há mais de um século.
Aprendera, cedo, que num substantivo a desinência final “i” indicava o possessivo, Ruti era “minha Ruth”- mas também que neste caso o diminutivo seria sempre um termo afectivo, de pertença.
Quando
me vim embora, a Susana foi viver para Paris onde tinha uma filha. Escrevemo-nos e falámos ao telefone. Um dia ela deixou
de "aparecer". Soube que tinha morrido
E
vêm mais recordações de amigos: a Danit, do Café Panorama que dava sobre a Promenade. Café que hoje não existe e foi substituído pelo "Pôr-do-Sol".
Era muito perto da nossa casa e muitos sábados passávamos ali a conversar com ela, descíamos as escadaria e chegávamos à praia onde, nessas manhãs, vinham grupos de todas as idades cantar, com um velho "bombone" onde ouviam velhas músicas do Kibbutz e se dançavam danças de outros tempos.
A Rina e o Dani Eli Eli, outros grandes amigos desses anos - ela psiquiatra e ele fotógrafo. Íamos encontrar-nos no Café Kassit. O Dani fotografara, anos antes, uma Lisboa pouco turística: a Lisboa das vidas
difíceis, da pobreza dos anos de Salazar que não agradou a todos mas era verdadeira. Em Telavive, o Manuel organizou uma
exposição e foi na inauguração que nos conhecemos todos. Amigos até ao
fim.
A Rina falava muito com o Manuel da sua experiência de "médica da mente" e ele gostava de a ouvir. Dizia-me que certas coisas da novela "Sombras em Telavive" aprendera com as histórias dos doentes dela.
Fico contente que o livro tenha sido traduzido em hebraico como também o foi "A mulher nua" - pela Dalit Lahav.
A
vida é feita de laços que se criam e se perdem porque a vida é efémera e há
sombras que passam mais depressa do que as outras. Ficam, porém, memórias importantes na nossa
via. O nosso cão Zac ficou para sempre no "moshav" onde eles viviam.
Vieram
uma vez visitar-nos a Lisboa. Estavam já doentes mas ninguém imaginava que, num espaço de seis meses, estariam ambos mortos com um cancro
de pulmão.
Tudo é decisivo em Israel porque tudo é ainda mais efémero do que nos outros lugares do mundo. Somos sombras, na breve passagem da vida. Mas a vida é também bela e luminosa.
Dizia-me um amigo: “Maria João, lembre-se que o ontem já passou, o amanhã pode nunca chegar e temos de viver o dia de hoje intensamente.”
Ouvia-o e pensava que era por isso que Telavive é chamada “ha-ir bli hafsakah”, a cidade sem intervalo que não pára 24 horas por dia. Para se ter tempo para viver!
Dantes a tarde caía no Café da Rehov Dizzengoff e era bom estarmos a conversar. Gosto de pensar que em Telavive a vida passa como uma sombra ligeira, uma brisa fresca ao pôr-do-sol.
A vida é a nossa “oportunidade
cósmica”, como alguém disse, e não volta a acontecer. Eu quero voltar a viver essa "oportunidade cósmica" uma vez mais em Telavive. O ontem passou e o amanhã pode não chegar. Resta-me viver o dia de hoje - intensamente.
Sei que o tempo da vida é o de uma chuvada de Inverno, como escreveu o grande poeta japonês, Matsuo Bashô (citando Sôji, que não sei quem era):
“A vida demora tanto
como um aguaceiro de Inverno
diz Sôji.”
Mas
esse aguaceiro é o tempo que nos foi concedido. Por isso eu me sinto feliz por saber que vou voltar a Telavive. Há vida lá e há gente à minha espera. E a Dalit vem visitar-me e vou voltar com ela. Quero ir ver Telavive outra vez!
(*) Matsuo Bashô, ou apenas Bashô, foi o poeta mais famoso do Período Edo do Japão, um dos autores mais famosos da “poesia curta japonesa”, o haiku.