sexta-feira, 18 de agosto de 2023

Porque é tão bom voltar a Telavive!

a nossa casa em Telavive

O que recordo da minha vida em Telavive é a amizade que encontrei. A solidariedade frequente. A curiosidade do outro. O riso quando eu passeava com o meu cão Zac e as pessoas o olhavam e diziam "kelev hamud". Mesmo antes de saber o que significava (e que é "lindo cão, amoroso") percebia que era um elogio ao Zac.

 
Uma pintura de Reuven Rubin

Entrávamos em todas as lojas a espreitar o que havia e era fácil conversar. Os primeiros amigos encontrei-os nas lojas de discos, nas vendas de fruta, no lugar onde comprava o pão - ou os utensílios de que necessitava depois de chegar de São Tomé com pouca coisa em casa a funcionar, à espera que a "mudança" chegasse de barco. 

 

na rehov Ben Yehuda

Podiam ser chávenas ou panelas ou copos mas depressa descobri onde havia. Era na loja da Sara e do Moshé, a meio da Ben Yehuda, não muito longe da nossa casa. 

Também me lembro bem do local onde bebi o primeiro sumo de cenoura, temperado com um fiozinho de azeite, como só aquele senhor fazia. Chamavam-lhe a brincar meshuga, o 'doidinho', por ter os cabelos compridos atados com uma fita e ter tantas ideias.

Ficámos a viver na Rehov Lassalle que fazia esquina com a Ben Yehuda - onde, como disse, havia tudo. Era também que apanhava o sherut - a carrinha de seis lugares mais o condutor que parava onde queríamos, bastava fazer sinal com a mão. Os cães podiam entrar, coisa fundamental, e o Zac adorava ir comigo.

O "sherut" levava-nos pela rua Ben Yehuda abaixo até à rehov Sheinkin, para os lados do mercado - onde havia uma livraria boa e uma loja com imensos discos de Jazz, discos de música e cantores que não conhecia nem de nome, e nunca tinha ouvido. John Coltrane, Miles Davies, Oscar Peterson, Coleman Hawkins, Dexter Gordon - tantos!

 

Por perto, havia um quiosque com sumo de romã cor de rubi e bolinhas de "falafel" - croquettes feitos com uma pasta de grão, temperada com especiarias e frita

Recordo que uma vez que a Gui nos veio visitar quase apanhámos uma indigestão de falafel  acompanhados de sumo de romã!  Havia também a  sopa de beterraba dos judeus russos, o "bortch", que no Verão se bebia gelada.

Esses novos amigos de Telavive queriam saber de mim: de onde vinha, o que fazia e por que razão escolhera viver em Israel. Não era a curiosidade mórbida que por vezes sentimos em certas pessoas, era a vontade real de saber se eu gostava de ali estar e por que razão viera viver com eles.

Talvez porque o judeu tenha dentro o sentimento de não ser amado -  quantas vezes expulsos de mundos que consideravam como "seus".

Encontrei gente e gente que se sentia bem comigo porque sabiam que eu gostava deles. E eles gostavam de mim e do meu cão. E recordo uma história que podia ter corrido mal. Um dia, ao chegarmos os dois à Ben Yehuda, apareceu um jovem pitt-bull, sem açaimo e agressivo que resolveu embirrar com o Zac. 
 Quis mordê-lo e magoou-o. Peguei-lhe logo ao colo (felizmente não pesava tanto como o meu Zev de hoje, um fox-terrier), pu-lo em cima da cabeça e comecei aos gritos.  

A verdade é que toda a gente das lojas apareceu para me ajudar! Afugentaram o cão, ralharam à dona do pittbull e queriam chamar a polícia pois o bicho não devia andar sem açaimo. Tudo se resolveu em paz, a miúda estava tão assustada como eu, só queria ir-se embora.

Ajudaram-me a tirar o Zac da cabeça e eu pude respirar fundo. O Zac, coitadinho, teve pesadelos por causa desse trauma - e eu é que as paguei pois quando me fui encosta, para lhe dar um beijo, toquei na perna magoada. Acordou sobressaltado e mordeu-me o nariz. Nunca mais me esqueci do medo que tive até me ver ao espelho. Deitava tanto sangue que me convenci que ia ficar com um buraco no nariz.

Lá fui no carro sozinha, com um lenço a tapar o nariz, até ao Hospital Ichilov. Viram-me e esperei porque não era grave a situação. Fui bem tratada e, com muita conversa, coseram-me os cortes dos dentinhos dele e voltei para casa.  

No "meu" carro, no maravilhoso Honda vermelho que pouco mais tempo sobreviveu.  De facto, espatifei-o na garagem, numa manhã de calor intenso, com mais de 30 graus. Entrei no carro, liguei-o e perdi os sentidos, suponho - talvez pelo calor. Tinha posto a mudança em marcha atrás para sair e, como era automático, arrancou e foi bater numa parede. Eu, com o barulho voltei a mim mas, confusa, sem perceber nada meti a primeira e acelerei. Claro que fui de encontro ao muro em frente. Sei que acordei realmente quando a  vizinha do primeiro andar entrou na garagem e gritou: "Maria! Puxa o travão de mão"! 

Era tarde de mais, o meu amado Honda vermelho estava desfeito, mas o habitáculo resistira, estava perfeito e não me aconteceu nada. Por acaso, penso que as minhas costas nunca mais ficaram bem - mas não vale a pena falar dos males passados. 

Eu era muito inconsciente em Israel. E teimosa. Amuei, não quis ir ao hospital, voltei para casa e não me levantei da cama durante um dia ou dois. Já nem sei o que o Manuel disse ou não. Sei que ele estava no escritório no terceiro andar e ouviu o barulho todo.

Acabou tudo bem porque o carro estava no seguro. E foi aí que passámos para os carros alemães (mas devo dizer que agora voltei aos japoneses).

As aventuras com o Zac continuavam e começámos a avançar descendo o boulevard Ben Gurion em direcção à rehov Dizengoff.  

E descobrimos os Cafés. Um dos mais amados era o Segafredo Café e muitos amigos passaram por lá e muitas conversas por lá houve. Foi o nosso primeiro Café, meu e do Manuel. 

 

Mais tarde ele passou para o Café Dizza, na esquina da Dizengoff com a Frishman, um Café hoje desaparecido mas naqueles anos cheio de vida cultural! Inesquecíveis os encontros com escritores e artistas. 

 

Quanta gente! Nathan Zach, o poeta, Moshé Zachar o pintor, a bela Pnina que fora a modelo do primeiro "poster" com uma mulherdo IDF - o exército israelita. Ainda era linda.

Enfim, são muitas as razões por que me senti bem em Telavive!

Tive uma grande amiga que foi a minha professora de hebraico. Comecei a aprender a língua quando cheguei a Telavive, no Ulpan. É uma escola de língua hebraica para estrangeiros full-imersion- que, por sorte, ficava na minha rua.

Tinha que ir todos os dias de manhã e à tarde, era muito pesado, passei a ir só à tarde, um dia pareceu-me que era impossível falar hebraico e desisti - antes de ter somado um certo número de lições e teria tido um "título" - mas assim não tive o certificado e arrependi-me toda a vida.  

Continuando por aqui e por ali com o Zac, percebi que conseguia ler tudo o que estava escrito nas lojas, nas publicidades, nos cafés e nos jornais para estrangeiros. 

Quis aprender mais e encontrei a Ruti  que me deu lições em casa. Ficámos amigas.

 
O Zac eu na varanda

E tornou-se mais simples a relação com os meus amigos - eles "apreciavam" que eu tivesse escolhido aprender a língua deles. Mesmo falando mal...

A Ruti era alegre, inteligente e cheia de vida. Vejo-a como uma kibbutznika mas não sei qual foi o passado dela própria nem cheguei a saber dos seus antepassados vindos da Rússia há mais de um século.

 Aprendera, cedo, que num substantivo a desinência final “i” indicava o possessivo, Ruti era “minha Ruth”- mas também que neste caso o diminutivo seria sempre um termo afectivo, de pertença. 

Sei que casara com um poeta russo de que se separara há muito tempo - ele ficara em Jerusalém e ela fora para Telavive com a filha. Dizia-me ele era um pouco louco, “meshuga”, que lhe deixara algumas tristes recordações mas também a coisa mais maravilhosa: uma filha que adorava. 

Brilhavam-lhe os olhos escuros quando falava da Lilit. O nome Lilit tem um duplo sentido pois pode ser a corujinha, símbolo de inteligência e que dá sorte ou, igualmente, a “diabinha Lilith” da Bíblia.

Por curiosidade - ainda tenho guardada uma corujinha de cristal que me ofereceu a Susana Heffez a minha amiga que esteve em Auschwitz dois anos. Amiga de cinco anos nunca esquecida. Vimo-nos um dia quando ela ia passear os cães dela  e eles ficaram amigos do Zac. 

E quantos serões eu e o Manuel passámos em casa dela, com o "rabi", como lhe chamávamos, um judeu médico que viera da América viver para Israel e que era um poço de conhecimentos. Discutíamos toda a noite e ela dizia-me ao ouvido: "faz bem à cabeça discutir!" 

Quando me vim embora,  a Susana foi viver para Paris onde tinha uma filha. Escrevemo-nos e falámos ao telefone. Um dia ela deixou de "aparecer". Soube que tinha morrido

E vêm mais recordações de amigos: a Danit, do Café Panorama que dava sobre a Promenade. Café que hoje não existe e foi substituído pelo "Pôr-do-Sol".

 

 Era muito perto da nossa casa e muitos sábados passávamos ali a conversar com ela, descíamos as escadaria e chegávamos à praia onde, nessas manhãs, vinham grupos de todas as idades cantar, com um velho "bombone" onde ouviam velhas músicas do Kibbutz e se dançavam danças de outros tempos.

A Rina e o Dani Eli Eli, outros grandes amigos desses anos - ela psiquiatra e ele fotógrafo. Íamos encontrar-nos no Café Kassit. O Dani fotografara, anos antes, uma Lisboa pouco turística: a Lisboa das vidas difíceis, da pobreza dos anos de Salazar que não agradou a todos mas era verdadeira. Em Telavive, o Manuel organizou uma exposição e foi na inauguração que nos conhecemos todos. Amigos até ao fim.

A Rina falava muito com o Manuel da sua experiência de "médica da mente" e ele gostava de a ouvir. Dizia-me que certas coisas da novela "Sombras em Telavive" aprendera com as histórias dos doentes dela. 

Fico contente que o livro tenha sido traduzido em hebraico como também o foi "A mulher nua" - pela Dalit Lahav.

 

A vida é feita de laços que se criam e se perdem porque a vida é efémera e há sombras que passam mais depressa do que as outras. Ficam, porém, memórias importantes na nossa via. O nosso cão Zac ficou para sempre no "moshav" onde eles viviam.

Vieram uma vez visitar-nos a Lisboa. Estavam já doentes mas ninguém imaginava que, num espaço de seis meses, estariam ambos mortos com um cancro de pulmão.

Tudo é decisivo em Israel porque tudo é ainda mais efémero do que nos outros lugares do mundo.  Somos sombras, na breve passagem da vida. Mas a vida é também bela e  luminosa.

Dizia-me um amigo: “Maria João, lembre-se que o ontem já passou, o amanhã pode nunca chegar e temos de viver o dia de hoje intensamente.”

Ouvia-o e pensava que era por isso que Telavive é chamada “ha-ir bli hafsakah”, a cidade sem intervalo que não pára 24 horas por dia. Para se ter tempo para viver!

A vida passa como um sonho. Acaba como o sonho que finda ao acordarmos. O sonho bom ou o pesadelo. Mas tem um fim.

Dantes a tarde caía no Café da Rehov Dizzengoff e era bom estarmos a conversar. Gosto de pensar que em Telavive a vida passa como uma sombra ligeira, uma brisa fresca ao pôr-do-sol. 

A vida é a nossa “oportunidade cósmica”, como alguém disse, e não volta a acontecer. Eu quero voltar a viver essa "oportunidade cósmica" uma vez mais em Telavive. O ontem passou e o amanhã pode não chegar. Resta-me viver o dia de hoje - intensamente.

Sei que o tempo da vida é o de uma chuvada de Inverno, como escreveu o grande poeta japonês, Matsuo Bashô (citando Sôji, que não sei quem era):

“A vida demora tanto

como um aguaceiro de Inverno

diz Sôji.”

Mas esse aguaceiro é o tempo que nos foi concedido. Por isso eu me sinto feliz por saber que vou voltar a Telavive. Há vida lá e há gente à minha espera. E a Dalit vem visitar-me e vou voltar com ela. Quero ir ver Telavive outra vez!

 ***
 

(*) Matsuo Bashô, ou apenas Bashô, foi o poeta mais famoso do Período Edo do Japão, um dos autores mais famosos da “poesia curta japonesa”, o haiku.

quarta-feira, 9 de agosto de 2023

LEONARD COHEN O INSATISFEITO

Leonard Cohen o insatisfeito - o caminhante da vida, o viajante à procura de um sentido para caminhar - o homem que espera um chamamento de algures. (1) Que espera um absoluto terreno. Antes do outro "absoluto" - incerto esse – que pode nunca chegar.

Era um caminhante da vida, um caminhante das várias estradas da vida. Sabia que é na vida que tudo se joga. Leonard Cohen era um judeu e um homem religioso à procura de uma resposta - mas um lutador que nunca desistiu de nada.  

Um caminhante que amou, amou, amou... Com raiva e ódio também. As canções de amor e de revolta mostram muito mais do que julgamos saber. Recordo a canção que sempre me atraiu: “First we take Manhattan”.

“They sentenced me to 20 years of boredom
For trying to change the system from within
I'm coming now, I'm coming to reward them
First we take Manhattan, then we take Berlin..."

“Condenado 20 anos de tédio/ por ter tentado mudar sistema de dentro/Volto agora, sim volto para os ganhar de volta/ Primeiro conquistámos Manhattan, depois Berlim...”

 “Guiado, sim guiado por um sinal dos céus/por esta marca de nascença na pele (sim guiado por ela)/ Guiado pela beleza das nossas armas..."

Judeu como se sentia e era -"this birthmark on my skin"- durante a Guerra do Yom Kipur em 1973 vai para Israel fazer uma série de espectáculos grátis para os soldados israelitas  - o álbum "Who by fire" é dessa altura.

o cantor Matti Caspi segura o microfone

Em 1973, durante a Guerra do Yom Kipur, fez uma série de espectáculos grátis para os soldados israelitas. O álbum "Who by fire" é dessa altura e alguns cantores israelitas estavam presentes - como Matti Caspi  ainda hoje conhecido em Israel.

 

Continua a vida na abertura a tudo, escreve canções atrás de canções numa insatisfação contínua. 

 

Vive, ama, é amado e escreve poesias. Canções de amor e de revolta mostram muito mais do que julgamos saber. Canções de protesto, de desilusão, de desânimo.

 
No entanto vão ser as canções de amor que ficarão para sempre, como Susanne ou The blue raincoat serão eternas. Um infinito número de canções de amor ou de raiva, com os sentimentos à flor da pele. 
Amores que se sucedem e que o acompanham, separações que deixam marcas. Romances e poesias que publica.

 

o pequeno Budha (foto de Marisa Volonterio)

Mais tarde, Leonard procura o Zen. Aproxima-se da espiritualidade do Budismo -o que o leva a retirar-se num ambiente "Zen", com o  Mestre para quem cozinhava e onde, “imprescindível, havia uma máquina de café expresso”, como contava. E Leonard Cohen chega a ser monge budista. 

 
Templo, foto de Marisa Volonterio (2017)

Em 1994 Cohen retirara-se par um mosteiro budista, perto de Los Angeles.  Fecha-se, ouve o seu Mestre e, no isolamento e no silêncio, talvez tenha encontrado uma forma de paz - ou de aceitação.

"Flor de lótus" do fotógrafo vietnamita Lê Thanh Tû

Terá sido ordenado monge em 1995 com o nome de Dharma (o silencioso) nome talvez escolhido – quem sabe?- a pensar no silêncio de Deus.

O Mestre de Zen e Amigo

Na constante interrogação e interpelação de um 'deus silencioso' com quem  fala directamente -no modo judaico de orar- procura, intensa e continuamente, uma resposta. O que faz quer na poesia quer na música que cria.

Por vezes a sua interrogação a um deus que se dizia humano é apenas um monólogo, torturado e sofredor. Monólogo destinado ao Deus bíblico a quem cantava os seus salmos de amor e de dúvida, tal como o Rei David. Sem esquecer, porém, os seus demónios.

E as perguntas difíceis: Por quê viver, sofrer, morrer? Por quê ódio, medo, amor, morte?  Qual o sentido do absurdo de viver para se morrer? Essas  perguntas era ao Deus bíblico que as fazia.  

As canções - que quereriam ser um diálogo - não têm resposta e as suas "conversas" são um "monólogo".

 Talvez no Budismo encontrasse a paz.  
 Ou será que não há sentido para nada e temos que aceitar o silêncio? O último álbum é mais uma "conversa" com o Deus silencioso.

O verso da canção intitulada "You want  it darker?" escreve : "I'm ready, my Lord". Como se a "luta" tivesse acabado - ou o combatente cansado da eterna luta de Jacob com o Anjo.

(1)  Leonard Cohen nasceu no Canadá em 1934 em Westmount, cidade na província do Québec da ilha de Montreal e morreu nos Estados Unidos, em 2015, na sua casa de Los Angeles. Além de grande compositor de músicas e canções, publicou romances e alguns livros de Poesia. Leonard Cohen já não vai poder ganhar o Prémio Nobel de Poesia. E lamento-o, confesso. Este poeta 'troubadour' - eu preferia-o a Bob Dylan.